Doses maiores

31 de janeiro de 2017

Trump e a locomotiva chinesa

Yanis Varoufakis foi ministro das Finanças da Grécia. Renunciou quando o governo de que participava traiu compromissos eleitorais e passou a negociar com as instituições financeiras que vinham asfixiando a economia grega.

Em 20/01, ele publicou “Trump encarará realmente o dragão chinês?” no portal Outras Palavras. O artigo procura mostrar o potencial altamente explosivo dos ataques do presidente recém-empossado à China. Afinal, diz ele, Trump dirige um país “incapaz de qualquer ato relevante sem articulação com a China.”

Para começar, argumenta ele, os Estados Unidos foram “salvos pelo Dragão” depois da crise de 2008. Segundo Varoufakis, os líderes chineses criaram “uma bolha insustentável de investimentos para dar uma chance de ação conjunta à Europa e Estados Unidos”.

Mas como nenhum dos dois nada mais fez que continuar despejando dinheiro nos mesmos bancos que quebraram seus mercados, a economia mundial continuou patinando. Aí, chegou 2015 e “a China teve que impulsionar, mais uma vez, a criação de crédito”. Resultado:

Hoje, o boom do crédito da China é sustentado por garantias quase tão ruins quanto àquelas em que a Bear Stearns, Lehman Brothers, e os demais bancos estavam confiando em 2007.

É essa interdependência econômica que Trump parece estar desconsiderando. Qualquer solavanco na economia chinesa chacoalha toda a economia global. Mas é ainda mais perigosa para os Estados Unidos, que transferiu grande parte de seu parque industrial para o gigante asiático.

O fato é que, se a China puxa o trem do capitalismo mundial atualmente, os trilhos do sistema continuam levando rumo ao abismo. E Trump pode estar jogando ainda mais lenha na caldeira dessa locomotiva desgovernada.

Leia também: As raízes capitalistas da possível crise chinesa

30 de janeiro de 2017

Pós-verdade ou pré-conceito?

A “pós-verdade” está na moda. Ganhou até um verbete no Dicionário Oxford de 2016, que a define como produto de “circunstâncias nas quais fatos objetivos são menos influentes para determinar a opinião pública do que apelos a emoções e crenças pessoais".

O ecossistema perfeito para sua reprodução seria a internete.

Um exemplo de usuário dependente da “pós-verdade” seria Donald Trump, especialista em fazer afirmações sem fundamentos. Não por acaso, recentemente uma assessora dele chamou algumas mentiras divulgadas por seu governo de “fatos alternativos”.

Mas a verdade é que há pouca novidade nisso tudo. E um artigo do sociólogo Muniz Sodré ajuda a demonstrar isso. Em “Diversidade e diferença”, publicado na “Revista Científica de Información y Comunicación”, em 2006, ele afirmava:

Você vê alguém com um turbante na cabeça e pensa que já sabe tudo sobre ele, que é, por exemplo, árabe, logo, islamita, logo investido de determinada disposição frente ao mundo. O racismo apresenta-se geralmente como esse “saber automático” sobre o Outro. Os preconceitos funcionam assim na prática...

É este “saber automático” que congela a imagem ou a primeira impressão na forma de uma verdade absoluta. Impede que o entendimento da realidade se transforme em um conceito que possa se abrir ao debate. Fica preso no nível do pré-conceito.

É com base nesse mecanismo ideológico, por exemplo, que a mídia estadunidense há anos vem transformando turbantes em símbolos de terrorismo. São este e muitos outros “fatos alternativos” que permitiram a Trump chegar aonde chegou.

Portanto, a pós-verdade não passa do velho preconceito. E a grande mídia ainda é sua maior divulgadora, nas redes virtuais ou não.

Leia também: O saber automático por trás do preconceito

27 de janeiro de 2017

Em meio à confusão neoliberal, dois presidentes ilegítimos

Em 27/01, Antonio Luiz M. C. Costa publicou na Carta Capital artigo mostrando como “o consenso neoliberal” anda “de pernas para o ar”. Um trecho:

Com o Reino Unido, o mais tradicional arauto do livre-comércio, entregue ao nacionalismo, os Estados Unidos às vésperas de empossar um presidente em confronto aberto com as organizações multilaterais e a União Europeia em risco de desintegração, sobrou Xi Jinping, herdeiro da revolução maoísta e líder do maior partido comunista do planeta, para abrir os trabalhos e salvar a globalização da orfandade.

Xi prometeu manter suas fronteiras abertas, defendeu o Acordo de Paris contra a mudança climática e deu lições de liberalismo contra a guerra comercial: “O protecionismo é como se trancar em um quarto escuro: vento e chuva ficam do lado de fora, mas também a luz e o ar. Cortar os fluxos de capital, produtos e pessoas entre economias e canalizar as águas do oceano para baías e lagos isolados é impossível”.

Diante dessa confusão toda, como fica a política externa do governo golpista? Segundo seu formulador, José Serra, é hora de abandonar alinhamentos sem “conotação ideológica”. Com destaque para a “reaproximação” com os Estados Unidos.

Mas o que fez Temer no dia de sua posse? Viajou para a China, alvo principal dos ataques de ninguém mais que Donald Trump. Ou seja, a política externa de Serra bateu de frente com a de seu parceiro comercial prioritário “não ideológico”.

Felizmente, em relação a suas políticas internas, os dois países têm em comum algo muito importante. Ambos são governados por presidentes escolhidos por sistemas políticos sem legitimidade popular.

Um pouco de auto-ajuda para a esquerda

“Por que diabos as pessoas apoiam a direita?”, pergunta o jornalista mexicano Alberto Rodriguez em texto publicado pelo portal IHU-Online, em 21/10.

Rodriguez encontrou uma possível resposta ao conversar com Gernot Ernst, um neurobiólogo e cientista social norueguês que é consultor científico do Partido da Esquerda Socialista de seu país. Contra a direita, diz ele:

A esquerda argumenta. Mas nos esquecemos da organização. E para a organização precisamos de mais tempo. Perdemos os trabalhadores onde não temos sindicatos, e com certeza, nesses lugares, devem haver companheiros que sofrem e lutam. Essa é a nossa força. Quando estarmos ajudando em pequenas coisas, eles irão escutar, irão recordar o que é o mais importante e irão lutar também.

Ernst também dá algumas sugestões que Rodriguez chama de "Dicas do Dr. Gernot Ernst para evitar que as pessoas apoiem a direita, e que, sim, apoiem a esquerda":

Exemplifique para as pessoas normais. Explique os problemas e argumente com base nas experiências de pessoas comuns, com os quais o público se sente identificado.

Menos discurso, mais perguntas. Evite impor suas ideias. Pergunte, para que as pessoas descubram a verdade por si mesmas.

Utilize exemplos históricos. As pessoas não têm consciência histórica. Recorde-os o que aconteceu no passado, para que não cometam os mesmos erros, e recordem os velhos êxitos.

A direita manipula, a esquerda organiza. É válido você utilizar alguns dos métodos da direita, tais como o uso de imagens e definições. Mas não se esqueça do mais importante: a organização social é a chave.

Sim, parece receita de auto-ajuda. Mas é bem melhor que nossas fórmulas de auto-destruição.

Leia também: Por uma obscenidade de esquerda

25 de janeiro de 2017

A opressão pornográfica do Capital

Em 18/01, Francisco Daudt abordou, na Folha, o esdrúxulo projeto-de-lei contra a masturbação e a pornografia proposto por um deputado federal do DEM-SP.

Segundo o colunista, o prazer sexual solitário é “uma grande professora de independência e autonomia”. Daí, não ser surpresa que aqueles que queiram “controlar as pessoas” também queiram “controlar a masturbação”.

Faltou dizer que a proposta do parlamentar se opõe somente à pornografia gratuita. Ou seja, muito provavelmente a iniciativa envolve interesses mercadológicos nada pudicos.

Por isso mesmo, seria bom colocar Herbert Marcuse nessa conversa. Foi isso que fez o blog “Política para quem precisa” ao destacar o conceito de “dessublimação repressiva”, criado pelo filósofo alemão para explicar:

...como a sociedade atual transforma a sexualidade em mercadoria e com isso cria indivíduos mais dóceis para a dominação. A sublimação é o mecanismo que transfere a pulsão sexual para formas de criação intelectual como a ciência e a arte, tornando possível a civilização e tornando o indivíduo consciente do conflito com o “princípio de realidade” repressivo da sociedade dividida em classes. A dessublimação oferece uma falsa satisfação da pulsão sexual por meio da oferta ilimitada de produtos de consumo os mais variados (inclusive corpos na pornografia), desviando uma energia criativa que seria sublimada, impedindo o desenvolvimento intelectual, neutralizando assim o conflito do indivíduo com a sociedade e encaminhando dessa forma um tipo de repressão mais eficiente, porque disfarçado de “liberdade de escolha”.

Ou seja, se a proposta do parlamentar merece nosso total repúdio, também é preciso denunciar a “libertinagem opressiva” com que a lógica do capital violenta a vida erótica de milhões, diariamente.

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Mesmo com 50 tons, cinza ainda é cinza

24 de janeiro de 2017

Encarceramento em massa e Nuremberg

Em 19/01, Laura Carvalho citou, na Folha, um estudo dos sociólogos Katharine Beckett e Bruce Western, sobre a situação carcerária nos Estados Unidos. Dados do período entre 1975 e 1995 constataram que a taxa de encarceramento costuma ser maior nos estados americanos onde os programas sociais são mais fracos.

A colunista também cita "The Spirit Level", livro de Richard Wilkinson e Kate Pickett publicado em 2009. Nele, dados referentes a um “conjunto de países ricos indicam que, quanto maior o nível de desigualdade, maior também é a taxa de encarceramento por habitante”.

Levantamentos semelhantes no Brasil muito provavelmente chegariam a resultado parecido. Principalmente, nas últimas décadas, quando a permanente e crescente desigualdade social correspondeu à explosão da população carcerária. Explosão no duplo sentido, aliás.

Uma diferença importante no caso brasileiro é o amadorismo na exploração do trabalho dos detentos. Muito mais profissionais, os Estados Unidos colocam seus presidiários para trabalhar, gerando enormes lucros para grandes empresas.

Por enquanto, nossa barbárie parasita as atividades das facções dos presídios. Parte do produto dos crimes cometidos nas ruas fica com dirigentes do sistema prisional. Outra parcela vai para as campanhas eleitorais de quem grita que “bandido bom é bandido morto!”. O grosso mesmo circula pelo sistema bancário sem maiores problemas.

Mas haveremos de avançar. Quem sabe seguindo o exemplo de empresas como a BMW. Durante a Segunda Guerra, a fábrica alemã escravizou mais de 17 mil prisioneiros “considerados de raça inferior”. Depois da guerra, os responsáveis foram julgados de forma relativamente branda em Nuremberg. Talvez, porque o tribunal representasse aqueles que condenavam os nazistas, mas não seus valores.

Leia também: Onde nascer negro é quase um crime

23 de janeiro de 2017

1917: o ano que não terminou

Em 31/12, Adriana Carranca citou em sua coluna do Globo o livro “A quarta revolução: a corrida global para reinventar o Estado”, de John Micklethwait e Adrian Wooldridge.

Segundo a colunista, a obra mostraria “como a desilusão com os governos ocidentais se tornou endêmica e põe em risco o modelo de Estado como conhecemos, com o centro da gravidade — e de poder — mudando rapidamente”.

Neste cenário, Wooldridge enxergaria semelhanças entre a situação “que levou ao colapso da ordem liberal em 1917 e hoje”. “Nada mal para as celebrações dos cem anos da Revolução Russa e da chegada de Lênin ao poder”, diz a colunista.

Mas segundo Adriana, Wooldridge destaca uma importante diferença. Hoje, afirma ele, “os primeiros tiros estão sendo disparados pela direita e não pela esquerda, pelos Brexiteers no Reino Unido e Donald Trump nos EUA.”

Pode ser. É preciso lembrar, porém, que nas primeiras décadas do século passado uma revolução socialista na Rússia estava fora de qualquer radar da esquerda mundial.

Como acreditar que um levante anticapitalista seria vitorioso num país dominado pela economia camponesa e preso às trevas de uma ditadura monárquica? Somente os bolcheviques enxergaram no desigual desenvolvimento econômico russo a oportunidade para tomar o poder.

Combinações históricas como essa são muito raras. Mas não faltam contradições de alto potencial explosivo num mundo dilacerado por desequilíbrios cada vez mais descomunais: enorme concentração de riqueza, desastres ambientais, violência urbana, guerras permanentes, entre outros.

Ou seja, os conflitos que abalaram o mundo há 100 anos se tornaram ainda mais agudos e decisivos. 1917 não acabou porque não acabamos com o capitalismo.

19 de janeiro de 2017

Machado, o Diabo e sua igreja

No conto "A Igreja do Diabo", Machado de Assis descreve como o maior inimigo de Deus resolveu fundar sua própria religião. Para atrair fiéis, a ladainha diabólica era a seguinte:

Se tu podes vender a tua casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéu, coisas que são tuas por uma razão jurídica e legal, mas que, em todo caso, estão fora de ti, como é que não podes vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé, coisas que são mais do que tuas, porque são a tua própria consciência, isto é, tu mesmo?

A igreja logo alcançou sucesso. Afinal, sua doutrina mostrou-se extremamente compatível com tempos em que tudo pode encarnar-se na forma mercadoria. E, talvez, tenha sido ela a inspirar inúmeros outros empreendimentos religiosos que também reconhecem no comércio da fé a importância devida.

O fato é que tudo ia bem até que...

... notou o Diabo que muitos dos seus fiéis, às escondidas, praticavam as antigas virtudes. Não as praticavam todas, nem integralmente, mas algumas, por partes, e, como digo, às ocultas. Certos glutões recolhiam-se a comer frugalmente três ou quatro vezes por ano, justamente em dias de preceito católico; muitos avaros davam esmolas, à noite, ou nas ruas mal povoadas; vários dilapidadores do erário restituíam-lhe pequenas quantias...

Deus, procurado pela perversa e desconsolada criatura, assim respondeu:

Que queres tu, meu pobre Diabo? (...) Que queres tu? É a eterna contradição humana.

E o que esperamos nós, crentes ou não? Seguidores de divindades imaculadas ou sujas? Apenas que a eterna contradição humana continue a salvar nossas almas.

Leia também: Até Machado achava escola um saco

18 de janeiro de 2017

Apanhado de pílulas sobre a situação nas prisões

As terríveis e frequentes rebeliões nas penitenciárias brasileiras têm como uma de suas principais causas o encarceramento em massa. Principalmente, de pretos e pobres.

O assunto começou a ser abordado pelas pílulas em outubro de 2012, com Carandiru, PCC e acumulação primitiva de violência. O texto fala sobre o nascimento da organização criminosa que nasceu como reação ao massacre do Carandiru.

Depois veio PCC é criação do conservadorismo tucano, que aponta a política de segurança ultraconservadora dos governos tucanos paulistas como grande responsável pelo fortalecimento do PCC.

A cumplicidade entre o Estado e cortadores de cabeça discute como o desentendimento entre as “autoridades” de dentro das prisões e as autoridades que estão fora delas causa não apenas rebeliões no sistema carcerário, mas aumenta a violência nas ruas.

O lugar dos tucanos é atrás das grades considera as relações entre o PCC e o PSDB como uma espécie de PPP (Parceria Público-Privada).

O texto Quando a inocência não compensa expõe dados que mostram que dos mais de 500 mil presos brasileiros, 38% estão detidos sem julgamento. A grande maioria, pobre, jovem e preta.

A pílula Lévi-Strauss e os homens que vomitamos coloca em dúvida o pretenso caráter pacífico e ordeiro das sociedades em que vivemos em comparação às ditas “primitivas”.

Segundo Das prisões ocidentais para o Estado Islâmico, do PCC ao Estado Islâmico, o crime e o terrorismo agradecem pelo encarceramento racista da pobreza promovido por estados laicos.

Fabricando bandidos e terroristas, fala sobre o documentário “Sem Pena”, que exibe depoimentos de presidiários sem sentença ou condenados a penas desproporcionalmente maiores em relação aos crimes cometidos.

17 de janeiro de 2017

Ainda atualizando números sobre riqueza concentrada

Se no mundo são oito os bilionários com patrimônio equivalente ao da metade mais pobre da população mundial, no Brasil meia-dúzia possui riqueza equivalente às sacrificadas economias de metade dos brasileiros. É mais um dado do relatório recém-divulgado pela Oxfam.

A ONG britânica se baseou em informações sobre bilionários da revista "Forbes" e sobre riqueza no mundo do banco Credit Suisse.

As seis pessoas mais ricas do Brasil são:

- Jorge Paulo Lemann, Marcel Herrmann Telles e Carlos Alberto Sicupira, todos sócios da Ambev (Skol, Brahma e Antarctica) e de marcas como Budweiser, Burger King e Heinz;
 - Joseph Safra, dono do banco Safra;
- Eduardo Saverin, cofundador do Facebook;
- João Roberto Marinho, herdeiro do grupo Globo.

Detalhe: Na sexta posição, João Roberto Marinho aparece empatado com seus dois irmãos, José Roberto e Roberto Irineu, cada um com R$ 13,92 bilhões. Se fosse considerado o patrimônio dos três juntos, a desigualdade seria ainda maior, garante a Oxfam.

Para arrematar, uma informação vinda de outra fonte. Os dados estão em relatórios do Banco Central e constam da reportagem “Quatro bancos concentram 72,4% dos ativos das instituições financeiras”, de Murilo Rodrigues Alves e Fernando Nakagawa, publicada no Estadão, em 16/01.

Os quatro tubarões são Banco do Brasil, Itaú, Caixa Econômica Federal e Bradesco. Será que é por isso que temos os serviços bancários mais caros e as taxas de juros mais altas do mundo? Provavelmente.

Por sorte, o Banco Central está de olho nessa bagunça aí. Segundo a reportagem, “a instituição reconhece que há ‘algum nível’ de concentração no sistema bancário brasileiro”. Ah, bom!

Leia também: Atualizando números da concentração de riqueza

Atualizando números da concentração de riqueza

O mais recente estudo da ONG britânica Oxfam mostrou que somente oito bilionários acumulam riqueza equivalente à da metade mais pobre da população mundial. No total, essa super-elite tem US$ 426 bilhões. Já à metade mais pobre da humanidade, restam US$ 409 bilhões.

Segundo matéria de Lucianne Carneiro, publicada no Globo em 15/01, o número de bilionários nessa condição era de 62, em 2015. O número baixou para oito depois de incluídos novos dados de países como China e Índia. É que foram adicionados muito mais pobres à conta.

Enquanto isso, a matéria “Tudo por um milionário”, publicada por Ana Paula Ribeiro na mesma edição do Globo, revela uma desigualdade mais próxima de nós. Trata-se do segmento nacional do chamado “private banking”. São “107 mil brasileiros - pouco mais que a população de Japeri, no Rio”.

A reportagem afirma que esses clientes dispõem “de cerca de R$ 816 bilhões em aplicações financeiras. Na média, cada um tem R$ 7,4 milhões aplicados”. Em forte contraste, a grande maioria dos outros correntistas têm aplicações no valor médio de R$ 13,7 mil.

Esta enorme disponibilidade financeira permitiu, por exemplo, que um cliente “private” do Bradesco utilizasse o cartão de crédito para comprar um apartamento de R$ 1,5 milhão. Ou que outro conterrâneo igualmente “vip” seja proprietário do imóvel que abriga a loja da Prada na Avenida Champs-Élysées, em Paris.

Esse pessoal obtém empréstimos pagando juros muito inferiores aos praticados no mercado, diz a reportagem. É o que se costuma chamar de "operação estruturada". Já ao sistema que permite tamanha concentração de riqueza, poderíamos chamar de “roubo estruturado”.

Leia também: O sermão dos peixes loucos

13 de janeiro de 2017

Realmente, Obama é de chorar

Correram o mundo as imagens de Obama às lágrimas durante seu discurso de despedida da Casa Branca. Certamente, fizeram muita gente chorar. Mas as lamentações relacionadas ao presidente que está de saída nem sempre ocorrem por simpatia a suas realizações.

É o caso do filósofo estadunidense Cornel West, que também é militante pelos direitos civis e líder dos Socialistas Democráticos da América. Professor da Universidade de Harvard, ele publicou o artigo “É lamentável o triste legado de Barack Obama” no The Guardian, em 09/01.

Os trechos abaixo servem como amostra para o que diz o restante do texto:

A falta de coragem de Obama para enfrentar os criminosos de Wall Street e seu lapso de caráter ao ordenar os ataques de drones deflagraram involuntariamente revoltas populistas de direita no país e terríveis rebeliões fascistas islâmicas no Oriente Médio. E, (...) com cerca de 2,5 milhões de imigrantes deportados, as políticas de Obama prenunciaram os planos bárbaros de Trump.

West também atribui ao atual presidente grande parte da responsabilidade pela eleição de seu sucessor. Segundo ele, é provável que Bernie Sanders tivesse chances maiores de derrotar o republicano. Mas sua candidatura “foi esmagada por Clinton e Obama nas desleais primárias do Partido Democrata”.

O resultado foi a vitória de “um presidente branco mentiroso e repugnante”, cuja posse West considera ser o início de uma “era neofascista”. Um período marcado por “uma economia neoliberal de esteroides, uma atitude repressiva reacionária a ‘alienígenas’ domésticos, um arsenal militar ansioso por uma guerra e a negação do aquecimento global”.

Mas digno de lamento, mesmo, é o fim definitivo da democracia estadunidense.

Leia também: Ficar à esquerda para escolher qual direita apoiar

12 de janeiro de 2017

O joio e o trigo na Revolução Russa

“Centenário da revolução de 17 merece mais história e menos propaganda”, diz Elio Gaspari, em artigo publicado na Folha, em 11/01.

O colunista cita algumas imprecisões históricas que cercam a revolução liderada pelos bolcheviques. Mesmo partindo de alguém que escreveu quatro grossos volumes dedicados a isentar o empresariado dos crimes cometidos pela ditadura de 1964, a advertência é válida.

Para começar, é preciso admitir que, muitas vezes, a própria esquerda divulga versões equivocadas, que alimentam uma visão autoritária, truculenta e grosseira da revolução. Ao fazer isso, no lugar de atrair novos militantes para a luta socialista, pode afastá-los. O que acaba sendo muito conveniente para os defensores da ordem.

Uma das imprecisões mais correntes sobre a Revolução de Outubro é destacada pelo próprio Gaspari. Segundo ele, seria injusto abordá-la como se “tudo parecesse ter começado com o golpe de outubro de Lênin e dos comunistas”. Realmente, basta ler os testemunhos de Leon Trotsky, por exemplo, para desmentir esta visão simplista.

Mas há outras imprecisões. Várias delas tão persistentes que se transformaram em mitos. É o caso da ideia de que a revolução foi obra de um partido comandado pelas mãos de ferro de Lênin. Ou da imagem da vitória bolchevique como produto da intervenção do poderoso e lendário Exército Vermelho.

Contra tais equívocos, recomenda-se a leitura de obras históricas bem documentadas. É o caso de “The Bolsheviks Come to Power” (“Os Bolcheviques Chegam ao Poder”), de Alexander Rabinowitch, ainda sem tradução. E a ele que recorreremos para tentar separar o trigo da história do joio da propaganda. Ainda que a convivência entre ambos seja inevitável.

11 de janeiro de 2017

A inegável autoridade do presidente do País

Trechos de reportagem publicada no Globo de 11/01: 

O acordo que a equipe econômica do governo federal negocia com o Rio para socorrer as finanças estaduais inclui redução tanto da jornada de trabalho, quanto dos salários dos servidores públicos.

A proposta, diz a notícia, será levada “ao presidente Michel Temer e, depois, ao Supremo Tribunal Federal (STF) para homologação. O plano será apreciado pela presidente da Corte, ministra Cármen Lúcia”. E revela:

A decisão de buscar a homologação pelo STF é inédita. Qualquer medida prevendo mudanças na forma de pagamento das dívidas de estados com a União requer uma alteração da Lei de Responsabilidade Fiscal — portanto, precisa necessariamente passar pelo Congresso. No entanto, técnicos do governo avaliam que o quadro é urgente e que não se pode esperar tanto tempo. Eles afirmam que cabe ao Supremo decidir se há base jurídica para o acordo.

Ou seja, cabe à “mais alta corte do País” autorizar o desrespeito a uma lei. Mas se lembrarmos a recente decisão do Supremo sobre o afastamento de Renan Calheiros, tudo isso nada tem de extraordinário.

Então funciona assim. A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) foi criada para tornar sagrado o pagamento da ilegítima e astronômica dívida pública. Mas, agora, é em nome do pagamento dessa mesma dívida que a LRF precisa ser desrespeitada. E, ainda por cima, com o aval de um tribunal que deveria cuidar apenas de questões constitucionais, não de finanças públicas.

Neste embrulho jurídico mal-ajambrado só uma autoridade conta com a inabalável confiança das principais instituições nacionais e “agentes do mercado”. O presidente do País, sr. Henrique Meirelles!

Leia também:
O comitê secreto que manda no País

10 de janeiro de 2017

Revolução não é bolão (conclusão)

Voltamos ao artigo ”How Will CapitalismEnd?” em que Wolfgang Streeck considera o fim do capitalismo inevitável. Um de seus trechos diz:

Em contraste com a década de 1930, não há hoje nenhuma fórmula político-econômica no horizonte, à esquerda ou à direita, que possa fornecer às sociedades capitalistas um novo regime coerente de regulação. (...) as partes se encaixam cada vez menos no todo.

Para o autor, o sistema capitalista sofre hoje de “pelo menos cinco desordens cada vez mais agudas, para as quais não há cura: o crescimento decrescente, a oligarquia, a inanição da esfera pública, a corrupção e a anarquia internacional”.

Desse modo, conclui ele, é hora de “permitirmos que o capitalismo desmorone por si mesmo”.

De fato, as enormes contradições apontadas por Streeck já provocam consequências sociais gravíssimas. Mas nos limitarmos a esperar que desemboquem em um “colapso final” equivale a escolher a catástrofe generalizada como única saída.

No máximo, poderíamos organizar apostas sobre a data em que ocorrerá o inesquecível evento.

Felizmente, a dialética da luta de classes nos mostra exatamente o contrário disso. Apesar da desorientação generalizada entre as forças de esquerda, há muita resistência anticapitalista por parte dos explorados e oprimidos mundo afora.

Precisamos participar dessas lutas com a humildade lúcida de quem sabe que não há um desfecho seguro. Mas também com a coragem de afirmar que sem a ação das maiorias pela destruição do capitalismo, acabaremos quase todos na mesma sepultura.

Continuamos, portanto, diante do dilema histórico popularizado por Rosa Luxemburgo já no início do século 20: “Socialismo ou barbárie”. Não tem bolão porque a aposta é uma só.

Leia também: Revolução não é bolão (continuação)

9 de janeiro de 2017

Como brilha o cinema de Ken Loach

Ken Loach tem 80 anos, 30 filmes e muita coerência política. Suas produções procuram denunciar as contradições e crueldades do capitalismo, sem serem aborrecidas ou apocalípticas. Além disso, ele sabe colocar o dedo em algumas feridas da esquerda socialista, com sua tendência ao autoritarismo e burocratização.

Loach gosta de lembrar um ditado inglês segundo o qual “você não pode ficar neutro entre os bombeiros e o fogo” para dizer que, muitas vezes, é preciso ficar do lado do fogo. É o que mais uma vez ele demonstra com “Eu, Daniel Blake”, filme que recebeu uma Palma de Ouro em Cannes.

A trama mostra o calvário vivido por um marceneiro veterano diante do sistema de seguridade inglês em tempos neoliberais. Impossibilitado de trabalhar por problemas cardíacos, Daniel é jogado num labirinto burocrático que o impede de fazer valer seus direitos. Viúvo e sem descendentes, o que o alivia de seus tormentos é a convivência com uma mãe solteira e seus filhos, para quem se torna pai e avô.

Se o final é triste, não é pessimista. Em meio a tantas dificuldades e injustiças, Daniel e sua família de adoção ainda encontram várias pessoas solidárias na medida de suas possibilidades. São pontos iluminados que abrandam a escuridão que oprime.

Alguns povos antigos achavam que as estrelas eram buracos na casca negra da noite. Por eles, a luz diurna continuava a vazar insistentemente. É assim que brilha o cinema de Ken Loach.

Leia também: Uma nação que vive de suas mortes escuras

5 de janeiro de 2017

Do Homo Sapiens ao Homer Simpson

“2017 pode registrar aumento significativo do trabalho automatizado”, diz matéria publicada na BBC News, em 01/01.

A reportagem diz, ainda, que pesquisa recente da Universidade de Oxford, no Reino Unido, “sugere que cerca de metade dos postos de trabalho existentes hoje nos Estados Unidos serão automatizados até 2033”.

E não se trata apenas de profissões braçais. Marketing, Medicina, Direito e Jornalismo também estão na lista, afirma o texto. Ou seja, mais desemprego.

Por trás de todo esse processo está o algoritmo. Este onipresente mecanismo que transforma rotinas de trabalho em comandos de computador e possibilita a criação da chamada “Inteligência Artificial”.

Yuval Harari, em seu livro “Homo Deus”, diz mais ou menos o seguinte sobre o assunto:

Os antigos caçadores-coletores dominavam grande variedade de aptidões para poderem sobreviver (...). No entanto, nos últimos milhares de anos nós nos especializamos. Um motorista de táxi ou um cardiologista se especializam num nicho muito mais estreito do que o de um caçador-coletor, o que facilita sua substituição por inteligência artificial.

Ainda segundo ele, as pesquisas científicas sobre a mente e a experiência humanas “em geral são realizadas com pessoas de sociedades ocidentais, instruídas, ricas e democráticas”. Uma amostra pouco representativa da humanidade. Portanto, o “estudo da mente humana pressupôs, até o presente, que o Homo sapiens é Homer Simpson”, diz Harari.

A explicação peca, principalmente, por menosprezar o salto decisivo em direção à simplificação mental dado pelo capitalismo. A Inteligência Artificial tornou-se tanto mais ameaçadora quanto mais imperativa tornou-se uma lógica que nos reduziu a apertadores de parafusos. E, muito recentemente, também dos botões “curtir”.

4 de janeiro de 2017

Revolução não é bolão (continuação)

No artigo ”How Will Capitalism End?” Wolfgang Streeck resume os argumentos de um livro lançado por ele, recentemente.

Comecemos citando o trecho em que o autor afirma ser necessário “voltar a pensar no capitalismo como um fenômeno histórico que não tem apenas um começo, mas também um fim”.

Difícil discordar. Se até o Sol tem prazo para acabar, por que não uma criação humana que, ainda por cima, acarreta frequentes e desastrosas consequências.

O autor cita Geoffrey Hodgson, para quem “o capitalismo só pode sobreviver enquanto não for completamente capitalista”. Ou seja, quanto menos obstáculos se apresentarem no caminho do sistema, mais veloz seria sua corrida rumo ao abismo. Ou nas palavras do próprio Streeck: “É como se o capitalismo estivesse morrendo de uma overdose de si mesmo”.

Em Marx, hipótese semelhante está implícita na teoria da queda tendencial da taxa de lucro. Mas trata-se apenas de uma tendência, que pode ser evitada de várias maneiras. Ainda que todas causem mais destruição social e ambiental.

Os problemas surgem quando Streeck sugere que aprendamos a pensar que o fim do capitalismo chegará, sem que precisemos responder à “questão do que deve ser colocado em seu lugar”.

Uma conclusão frontalmente oposta ao que defende o marxismo, segundo o qual, exatamente por ser o capitalismo um produto humano, é nossa obrigação histórica construir uma alternativa a ele.

Mas Streeck não pretende facilitar as coisas. Segundo ele, “o capitalismo desorganizado está desorganizando não só a si mesmo, mas também sua oposição, privando-a da capacidade de derrotá-lo ou resgatá-lo”.

Falta muita dialética nisso aí. Mas fica para uma próxima pílula.

Leia também: Revolução não é bolão

3 de janeiro de 2017

Uma nação que vive de suas mortes escuras

Em 2016, Nate Paker lançou o filme “O Nascimento de uma Nação”, dirigido e estrelado por ele. A produção estadunidense dramatiza uma rebelião de escravos ocorrida em 1831, que foi rapidamente massacrada e teve seus líderes enforcados.

O título do filme é o mesmo do clássico dirigido David W. Griffith, lançado em 1915. Mas, ao contrário de Parker, Griffith mostrava os negros como animais brutos e estupradores de mulheres brancas. Além disso, apresentava a Ku-Klux-Klan como uma organização de heróis justiceiros.

A trama dos dois filmes se passa no século 19, mas o racismo americano vem de data muito anterior. Já em 1776, a declaração da independência dos Estados Unidos descrevia os indígenas como seres “selvagens e impiedosos, que adotavam como regra de guerra a destruição sem distinção de idade, sexo e condições”.

As linhas acima foram escritas tendo como inspiração os ideais de George Washington, Benjamin Franklin e Thomas Jefferson, considerados “pais fundadores” da “América Livre”. E, de fato, é a essa tradição que a classe dominante americana é leal. Exemplos não faltam.

Bush considerou o furacão Katrina um castigo divino contra a população negra de Nova Orleans. Obama foi, no mínimo, omisso diante dos terríveis episódios de violência racista que marcaram seu governo. A eleição de Trump foi comemorada pela Klu-Klux-Klan.

Quando Griffith lançou seu filme, negros eram espancados, enforcados e queimados em macabros espetáculos públicos. Cem anos depois, Parker estreou sua produção num país em que os negros são oito vezes mais sujeitos a serem assassinados do que brancos.

A “América” branca e elitista só consegue trazer à luz incontáveis mortes escuras.

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