Doses maiores

12 de outubro de 2011

Queremos a preguiça de Deus

“A raça humana é uma semana do trabalho de Deus”, diz a canção de Gilberto Gil. Depois disso ele descansou, conta a Bíblia. Não quis mais saber de trabalhar.

Então, por que suas criaturas desenvolveram tanto apego ao trabalho? Como diz Paul Lafargue, em seu livro “O direito à preguiça”, de 1883:
Homens cegos e limitados quiseram ser mais sábios do que o seu Deus. Homens fracos e desprezíveis quiseram reabilitar aquilo que o seu Deus amaldiçoara.
Até Cristo, continua Lafargue:
... pregou a preguiça no seu sermão na montanha: “Contemplai o crescimento dos lírios dos campos, eles não trabalham nem fiam e, todavia, digo-vos, Salomão, em toda a sua glória, não se vestiu com maior brilho.”
O autor marxista diz que o problema começou com a “civilização capitalista”. Nela:
... o trabalho é a causa de toda a degenerescência intelectual, de toda a deformação orgânica (...). Olhem para o nobre selvagem, que os missionários do comércio e os comerciantes da religião ainda não corromperam com o cristianismo, com a sífilis e o dogma do trabalho, e olhem em seguida para os nossos miseráveis criados de máquinas.
Para ele, o culto ao trabalho é uma vitória ideológica da burguesia. Os patrões conseguiram impor aos operários não apenas um trabalho torturante, explorador e alienante. Mas o entusiasmo por ele.

Muitos poderiam alegar que isso já não é verdade. Afinal, lazer, viagens, diversão e esportes ganham cada vez mais nossa atenção. O tempo livre teria conquistado terreno em relação ao ganha-pão chato e cansativo?

Infelizmente, não. O tempo livre é que entrou para o circuito das mercadorias sob domínio da indústria cultural. Foi tomado por atividades que proporcionam pouco prazer e geram muitos lucros. É um aprofundamento do que Lafargue denunciou.

Verdadeiro tempo livre só quando transformarmos avanços tecnológicos em avanços sociais. Quando dermos um fim à busca do lucro como motor social. Deus fez o que fez e entregou-se à preguiça. Queremos o mesmo.

Conheça Paul Lafargue e suas obras clicando aqui

Leia também: Greve no domingo pelo direito à preguiça

2 comentários:

  1. Como sempre, muito bom a sua reflexão, caro Sérgio. Sei que pode haver uma licença poética no seu texto, mas problematizaria sobre a visão romântica de Lafargue sobre o trabalho. Acho anacrônico a visão do "selvagem" em comparação ao "escravo do capitalismo", já que são sociedades de desenvolvimento tecnológico distintos. Além disso, antes mesmo da consolidação do capitalismo, aliás, antes mesmo de seu nascimento, a contemplação e o exercício intelectual era direito de poucos e o trabalho, visto antes do capitalismo como algo ruim, meio que uma punição divina, era executado pelos subalternizados, sem um culto ao mesmo, mas ainda assim, executado...

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  2. Caro David, o texto de Lafargue não diz que antes do capitalismo o trabalho tinha conotação positiva. Ao contrário, diz que sempre foi considerado um mal necessário, mas somente sob o capitalismo teria passado a ser tratado como atividade enobrecedora. Esta teria sido uma das maiores vitórias ideológicas da burguesia.
    Obrigado pelo comentário.
    Abraço!

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