Em 2018, o escritor de ficção científica China Miéville publicou “Um conto de Natal”. A ação acontece em um futuro não muito distante, no qual o direito de festejar o Natal foi privatizado. Após a aprovação de um Ato de Natal pelo parlamento, qualquer pessoa que queira comemorar a data precisa pagar caro, sob pena de prisão.
Mas a resistência popular não respeita festas privadas. Manifestações pelo direito de comemorar o Natal explodem na Londres fictícia que serve de cenário para o conto. Entra em cena, por exemplo, “um bando agressivo, com pinta de zangado, quebrando para-brisas dos carros pelo caminho”. Vestidos de Papai Noel, eles são os Red & White blocs, versão natalina dos Black Blocs. Também marca presença o Partido Cantor Radical dos Homens Gays, “orgulhosos de lutar pelo Natal do Povo!”
E como na luta dos explorados e oprimidos a esperança é a penúltima que morre, uma das canções que os manifestantes entoam é uma adaptação de um antigo sucesso brasileiro, composto por Assis Valente: "Já faz tempo que eu pedi / Mas o meu Papai Noel não vem/ Com certeza já morreu/ E a Internacional / É tudo que a gente tem."
Saudações comunistas e internacionalistas. Até 2025!
Leia também: Papai Noel não é de esquerda, mas existe!
Blog de Sérgio Domingues, com comentários curtos sobre assuntos diversos, procurando sempre ajudar no combate à exploração e opressão.
Doses maiores
▼
20 de dezembro de 2024
13 de dezembro de 2024
A esquerda espectral e os espíritos malignos
Lula já foi descrito como uma espécie de “cavalo de terreiro” das contradições sociais do País. Cavalo no sentido de médium que é “possuído” por entidades espirituais.
No caso em questão, essas entidades seriam os conflitos e contradições de uma das sociedades mais injustas do planeta. E Lula seria alguém que as manifesta de forma barulhenta, porém conciliadora.
O mesmo tipo de conciliação tentado pelo varguismo para modernizar o capitalismo brasileiro, procurando incluir as massas. Lula quer algo parecido, mas usando sua origem e ligação com os movimentos sociais como fiadoras em acordos arrancados junto à classe dominante.
O problema é que seu vocabulário sindical e sotaque sertanejo formam uma combinação indigesta demais para uma burguesia elitista e colonizada. Vargas bateu contra a parede imposta por sua própria classe e se suicidou. Lula recebeu o castigo reservado a muitos de sua origem social: a cadeia.
Uma vez fora da prisão, a nova tarefa assumida por Lula foi a de organizar a direita tradicional contra a extrema-direita. Ocorre que a primeira mal consegue se distinguir da segunda. E a governabilidade petista depende mais do que nunca do Centrão, o que inclui a presença de bolsonaristas na base parlamentar e até em ministérios.
Some-se a tudo isso um congresso que controla quase todo o orçamento federal e uma subordinação suicida à austeridade fiscal que castiga a grande maioria da população.
Tudo isso parece indicar que o terreiro petista vem sendo rapidamente dominado pelos espíritos diabólicos da direita. Enquanto isso, o conjunto da esquerda mal consegue abandonar o plano espectral para se encarnar como força concreta no mundo real.
Leia também: O Lula empossado e o Lula possuído
11 de dezembro de 2024
Um Brasil paralelo disposto a tudo
A Brasil Paralelo é uma produtora de vídeos criada em 2016, tendo se tornado uma das principais difusoras das ideias de direita no país. Seus conteúdos incluem aulas, vídeos e livros de história e filosofia.
Entre as teses que defende, estão o “descobrimento do Brasil” como um evento civilizatório para os povos ameríndios e o golpe de 64 como o episódio que impediu a instalação de uma ditadura comunista no Brasil.
A derrota eleitoral do bolsonarismo em 2022 não diminuiu a influência da produtora extremista. Ao contrário, os números abaixo são do episódio 128, do podcast Rádio Escafandro e deixam claro como a Brasil Paralelo continua firme, forte e perigosa.
Trata-se do maior anunciante brasileiro no Instagram e Facebook. As duas plataformas receberam da produtora R$ 25 milhões em anúncios, nos últimos 4 anos. O que dá R$ 6.250 milhões anuais ou quase R$ 521 mil mensais.
São 4 milhões de seguidores no Youtube e 400 mil assinaturas vitalícias em suas plataformas. Atualmente, a assinatura vitalícia mais barata sai por R$ 1.620 e a mais cara R$ 6.360.
Mais recentemente, a Brasil Paralelo passou a distribuir seu material a centenas de escolas e instituições de caridade, defendendo uma versão falsa e reacionária da história do País para crianças e jovens.
Mas uma coisa não se pode negar. O nome escolhido para a produtora é perfeito. Há um Brasil paralelo reacionário e golpista atuando fortemente. Não apenas nas redes virtuais e escolas, mas nos três poderes, incluindo vários postos no atual governo, e nas Forças Armadas, claro. Estão dispostos a tudo. Estão prontos para o pior.
Leia também: O Orvil e o Brasil Paralelo
9 de dezembro de 2024
Atopia capitalista: tudo que é sólido se dissolve no espaço-tempo
Marx afirmava que enquanto na manufatura e no artesanato, o trabalhador se servia da ferramenta, na fábrica capitalista, ele passou a servir à máquina.
Dois séculos depois, muitos trabalhadores voltaram a usar suas próprias ferramentas. São os celulares, automóveis e outros equipamentos. Mas a jornada laboral invadiu o cotidiano e o controle da produção é um algoritmo implacável, impessoal e inacessível. A massificação operária deu lugar à atomização empreendendorista, aprofundando ainda mais a separação tanto entre o produtor e os produtos de seu trabalho, como entre os próprios trabalhadores.
Com fábricas cada vez mais robotizadas, os trabalhadores foram jogados nas ruas, onde dirigem seus automóveis, motos e bicicletas. Continuam a participar da criação de valor para o capital, mas foram expulsos dos espaços físicos da produção para se deslocarem em alta velocidade pelo fluxo consumista. Muitas vezes, com consequências fatais.
As fábricas e escritórios se esvaziaram. O trabalho está em toda parte e em lugar nenhum. Está em residências rebaixadas a oficinas, nos “coworkings” dos shoppings, em praças e ruas tornadas locais de descanso passageiro. As comunicações ganharam enorme dinamismo, mas são funcionais apenas sob o domínio de uma frenética competição selvagem e individualista. O resultado é um estado que podemos chamar de atopia. Ou seja, um não lugar.
Quando Marx e Engels escreveram que, sob o capital, tudo o que é sólido desmancha no ar, talvez, não imaginassem que até mesmo as referências espaciais se dissolveriam. Mas como na física da relatividade, tempo e espaço são contínuos, é preciso decifrar a dialética dessa materialidade para sintetizar novas forças sociais revolucionárias e emancipadoras.
Leia também: Utopia, atopia, distopia
5 de dezembro de 2024
Pacote fiscal: arrocho dos pobres, parasitismo dos ricos
O assunto do momento é o pacote fiscal do governo Lula. O fato de ter desagradado o chamado “mercado” pode parecer positivo. O que é ruim para os “Faria Limers” costuma ser bom para a grande maioria da população.
O maior motivo de queixa foi a proposta de isentar de imposto de renda pessoas que ganham até R$ 5 mil por mês. Uma medida que pode beneficiar quase 80% da população economicamente ativa do País. Mas, em relação às restrições ao pagamento do Benefício de Prestação Continuada, ninguém da Faria Lima reclamou. O benefício paga um salário mínimo a pessoas em situação de vulnerabilidade social. A economia esperada é de R$ 6,4 bilhões.
Enquanto isso, em outubro passado, foram pagos R$ 111 bilhões, ou R$ 3,7 bilhões por dia em juros da dívida pública. Ou seja, bastaria deixar de pagar dois dias desses juros que garantem muito dinheiro aos capitalistas para nem precisar mexer no BPC, que atende idosos e pessoas com deficiências.
Os orçamentos dos ministérios da Saúde, Educação e Trabalho totalizam R$ 564 bilhões. Bem menos que os R$ 762 bilhões de juros da dívida pagos nos 10 primeiros meses de 2024. A perda da arrecadação com a isenção de R$ 5 mil será cerca de R$ 35 bilhões anuais. Ou apenas dez dias de pagamento de juros.
O pior é que essa montanha de dinheiro não diminui um centavo do montante principal da dívida pública. Tudo isso não passa de um vergonhoso parasitismo dos recursos públicos em benefício dos especuladores e capitalistas em geral, que detêm mais de 90% dos papéis da dívida.
Leia também:
Os gastos sociais sob a ditadura neoliberal
As abstrações criminosas da austeridade neoliberal
4 de dezembro de 2024
A diversidade sexual nas antigas sociedades africanas
Um interessante artigo foi publicado em 2023, na página do Partido Socialista dos Trabalhadores, da Inglaterra. Escrito por Ken Olende, seu título em tradução livre é “Como o Império Britânico exportou a homofobia”. Para provar a afirmação do título, o autor faz um histórico sobre o relativo respeito à diversidade sexual entre vários povos africanos antes do domínio colonial europeu. E dá alguns exemplos dessa situação:
- Nzinga, a mulher que liderou a resistência contra a invasão portuguesa de Angola a partir da década de 1620, era chamada de rei, se vestia como homem e tinha um “harém” de jovens que se vestiam como mulheres e eram suas esposas.
- Entre o povo Zande na África Central, guerreiros mais velhos se casavam temporariamente com guerreiros mais jovens.
- As guerreiras do povo Fon, no antigo Daomé, eram consideradas homens por causa de seu treinamento militar e muitas mantinham relacionamentos com outras mulheres.
- Em Gana, na década de 1940, relações lésbicas eram virtualmente universais entre as mulheres solteiras do povo Akan, às vezes continuando depois do casamento.
- Da mesma forma, entre os Langi, em Uganda, os mudoko dako ou “homens efeminados” eram tratados como mulheres e podiam se casar com homens.
Outros exemplos podem ser encontrados no artigo, mas Olende adverte que eles não são um modelo para o futuro. Apenas mostram que havia sociedades com ideias muito diferentes sobre sexualidade e gênero antes do domínio colonial. Por isso, é possível ter uma sociedade sem homofobia.
Infelizmente, a realidade no continente hoje é outra, com muitos governos e sociedades ainda rendidos ao conservadorismo contemporâneo ocidental.
Leia também: O arco-íris anticapitalista dos zapatistas
3 de dezembro de 2024
A Covid, criada e fortalecida pelo capitalismo canibal
Nancy Fraser encerra seu livro “Capitalismo canibal”, mostrando a pandemia da Covid como um “ponto onde todas as contradições do capitalismo canibal convergiram: onde a canibalização da natureza e do trabalho de cuidado, da capacidade política e das populações periferizadas se fundiram em uma farra letal”.
Para começar, foram os efeitos combinados do aquecimento global e do desmatamento que colocaram o vírus em contato com os seres humanos. Depois, os efeitos da Covid foram agravados por nossos governantes, que a serviço do capital, haviam transferido funções vitais do atendimento na saúde a prestadores de serviços, convênios, farmacêuticas e fabricantes movidos pelo lucro.
Sem a retaguarda dos poderes públicos, o isolamento sanitário despejou novas e importantes tarefas de cuidado sobre famílias e comunidades, principalmente sobre as mulheres. Muitas delas acabaram pedindo demissão para cuidar dos filhos e de outros familiares, enquanto muitas outras foram demitidas.
Trabalhadores cujas funções eram essenciais continuaram ganhando uma ninharia e sendo tratados como descartáveis. Eram profissionais de saúde, trabalhadores de frigoríficos e abatedouros, funcionários de varejistas gigantes, profissionais de limpeza hospitalar, entregadores de refeições, repositores de mercadorias e caixas de supermercados. A maioria deles, mal pagos, precarizados, não sindicalizados, sem benefícios e proteções trabalhistas.
Em cada um desses casos, o racismo e o sexismo estruturais se manifestaram, infectando e matando desproporcionalmente mais não brancos e mulheres.
Desse modo trágico, diz Nancy, a Covid iluminou com um raio intenso todos os terrenos ocultos de nossa sociedade. Portanto, conclui ela, é hora de descobrir como deixar o monstro morrer de fome e acabar, de uma vez por todas, com o capitalismo canibal.
Leia também: O capitalismo canibalizando o planeta
2 de dezembro de 2024
Eunice continua aqui e não está sozinha
O filme “Ainda estou aqui”, dirigido por Walter Salles e brilhantemente protagonizado por Fernanda Torres, merece todos os elogios. Mais do que torcer por sua premiação, o importante é fazer com que chegue a cada vez mais plateias aqui e no mundo.
O livro no qual foi baseado é de Marcelo Rubens Paiva, filho de Eunice e Rubens. Mostra a luta de Eunice para encontrar Rubens, após sua prisão pela ditadura e, mais tarde, pela responsabilização do regime por sua morte.
Mas Eunice não restringiu sua atuação a essa batalha, por mais justa e importante que fosse. Formou-se em direito e passou a combater a política indigenista genocida do regime militar. Em 1987, ajudou a fundar o Instituto de Antropologia e Meio Ambiente, organização que atuou até 2001 na defesa dos povos indígenas.
Sua disposição combativa só foi derrotada pela demência. A mulher que lutou pelo julgamento dos carrascos das vítimas da ditadura e pela preservação de sua memória tornou-se, ela mesma, vítima de amnésia.
A produção de Salles recupera a história não apenas da viúva de um grande homem, mas de uma guerreira pela liberdade e democracia.
No entanto, há muitas outras mulheres que estiveram nas mesmas trincheiras que ela. Infelizmente, muitas ficaram pelo caminho, mortas. Outras sobreviveram a prisões ilegais, tortura e violações. Mas poucas receberam o reconhecimento que merecem. Principalmente, as que estavam na liderança da resistência em favelas, periferias, quilombos, campos, aldeias indígenas e locais de trabalho. Enquanto for assim, Eunice e todas elas continuarão entre nós, inspirando, mas também exigindo, nossa permanência na luta por justiça e reparação.
Leia também: A amenidade assassina dos golpistas nacionais