No relato abaixo de seu livro “M, O Filho do Século”, Antonio Scurati descreve o início da reação fascista na Itália dos anos 1920.
Começa em Bolonha. Em dezembro de 1920, Adelmo Niccolai, deputado socialista, é espancado por fascistas em plena rua. Sua mãe o acompanhava. Também foi atacada.
Em Ferrara, os socialistas convocam uma paralisação para 20 de dezembro, com ato público contra a agressão. No mesmo local, dia e hora, os fascistas também convocam uma manifestação.
Não está claro quem abriu fogo primeiro, mas três fascistas morreram.
Nas eleições de novembro de 1920, em Ferrara, os contrarrevolucionários fizeram menos de 7 mil votos. No entanto, um mês depois, na mesma província, 14 mil pessoas participaram do funeral daqueles três fascistas. As relações de forças estavam se invertendo.
Após os sangrentos eventos de Bolonha e Ferrara, de outubro a dezembro, as filiações fascistas passaram de 1.065 para 10.860. Na Itália, já são 20 mil membros.
Cada vez que um bando fascista queima uma bandeira vermelha numa praça, centenas de pequeno-burgueses se alinham à contrarrevolução. É uma avalanche. O fascismo se espalha como infecção.
“É o pânico, esse maravilhoso parteiro da história!”, diz Mussolini. É o ódio no lugar do medo. Os novos fascistas são todas as pessoas que até ontem tremiam diante da revolução socialista. Pessoas que viviam com medo, comiam medo, bebiam medo, iam para a cama com medo.
Desses odiadores pequeno-burgueses seria formado o exército fascista.
O relato nos desafia a tentar entender em que momento violência e ódio deixam de ser combustível revolucionário para tornar-se poderoso motor da reação fascista.
Continua…
Leia também: Itália, 1920: lentilhas no lugar da revolução
Blog de Sérgio Domingues, com comentários curtos sobre assuntos diversos, procurando sempre ajudar no combate à exploração e opressão.
Doses maiores
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21 de fevereiro de 2020
20 de fevereiro de 2020
Itália, 1920: lentilhas no lugar da revolução
Em maio de 1920, Ferrara era a província mais vermelha da Itália. Tão vermelha que foi renomeada "província escarlate". As ligas proletárias tinham 81 mil membros, entre trabalhadores agrícolas, comerciantes e pequenos proprietários.
Elas ditavam as condições de trabalho, os níveis salariais e até a escolha dos cultivos. Os proprietários, reduzidos a pouco mais do que fornecedores de capital.
Em agosto, negociações na Alfa Romeo, em Milão, terminam em impasse. Os operários começam uma operação tartaruga. O patrão bloqueia a fábrica. Em questão de horas, todas as fábricas milanesas são ocupadas pelos trabalhadores.
Imediatamente, o empresariado aprova um bloqueio em nível nacional. A Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT) responde: mais de 500 mil trabalhadores ocupam 600 fábricas em toda a Itália
Tudo aponta para a guerra civil. “É o socialismo!”, gritam os operários nas fábricas.
Os trabalhadores improvisam comandos armados. Formam a "Guarda Vermelha". Durante quatro semanas, não são mais apenas braços e costas quebradas. Não são mais apêndices das máquinas. Eles merecem sua revolução. Mas a revolução, mais uma vez, não vem.
A CGT deixa a decisão aos líderes do Partido Socialista, que nada decide.
Finalmente, os patrões cedem. Aumentos salariais, melhores condições de trabalho e até controle da produção e participação nos lucros. Estes últimos logo esquecidos. Em troca, os proletários devolvem as fábricas.
Para os trabalhadores, é uma vitória econômica significativa e uma derrota política total. A revolução em troca de um prato de lentilhas.
O relato acima é mais um do livro “M, O Filho do Século”, de Antonio Scurati. Mostra uma avenida sendo aberta para a passagem do fascismo.
Leia também: O fascismo espera. Os socialistas se atrasam
Elas ditavam as condições de trabalho, os níveis salariais e até a escolha dos cultivos. Os proprietários, reduzidos a pouco mais do que fornecedores de capital.
Em agosto, negociações na Alfa Romeo, em Milão, terminam em impasse. Os operários começam uma operação tartaruga. O patrão bloqueia a fábrica. Em questão de horas, todas as fábricas milanesas são ocupadas pelos trabalhadores.
Imediatamente, o empresariado aprova um bloqueio em nível nacional. A Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT) responde: mais de 500 mil trabalhadores ocupam 600 fábricas em toda a Itália
Tudo aponta para a guerra civil. “É o socialismo!”, gritam os operários nas fábricas.
Os trabalhadores improvisam comandos armados. Formam a "Guarda Vermelha". Durante quatro semanas, não são mais apenas braços e costas quebradas. Não são mais apêndices das máquinas. Eles merecem sua revolução. Mas a revolução, mais uma vez, não vem.
A CGT deixa a decisão aos líderes do Partido Socialista, que nada decide.
Finalmente, os patrões cedem. Aumentos salariais, melhores condições de trabalho e até controle da produção e participação nos lucros. Estes últimos logo esquecidos. Em troca, os proletários devolvem as fábricas.
Para os trabalhadores, é uma vitória econômica significativa e uma derrota política total. A revolução em troca de um prato de lentilhas.
O relato acima é mais um do livro “M, O Filho do Século”, de Antonio Scurati. Mostra uma avenida sendo aberta para a passagem do fascismo.
Leia também: O fascismo espera. Os socialistas se atrasam
19 de fevereiro de 2020
O fascismo espera. Os socialistas se atrasam
No início de 1920, Mussolini foi visto passeando tranquilamente em uma luxuosa galeria comercial de Roma. Longe da agitação política, depois dos péssimos resultados de seu partido em eleições recentes. O fascismo parecia estar em um beco sem saída.
Enquanto isso, greves operárias aconteciam aos milhares por toda a Itália. Mobilizavam milhões de trabalhadores.
Porém, um curioso conflito na Fiat, em Turim, envolveu as horas do relógio. O
governo havia restabelecido um horário especial, adotado nos tempos da
guerra. Os trabalhadores, no entanto, decidiram que nesse momento eles
eram donos de seu tempo, não os políticos de gabinete. Exigiram a
manutenção dos horários antigos. Os patrões se negaram. Resultado: uma greve geral de dez dias paralisou 120 mil trabalhadores. Destes, 60 mil assumiram as fábricas e
adiantaram o relógio em uma hora. A questão, claro, não era sobre
ponteiros: não era sobre horários especiais, mas sobre a hora decisiva. A
hora da revolução.
Os líderes do partido
socialista, no entanto, se atrasaram novamente. Muitos deles condenaram
abertamente a iniciativa. Teria sido um movimento fora de hora. Como Mussolini havia previsto, o triunfo eleitoral do
socialismo abriu sua crise interna: os revolucionários
não queriam participação no poder e o reformismo não ousava a
conquista total do poder. Em suma, o socialismo também estava em um beco
sem saída.
Mussolini não tem dúvida: a burguesia reagirá. É
apenas uma questão de tempo. De esperar pacientemente girar o
relógio da história. A hora dele também chegará. E, enquanto isso, dar um passeio pela galeria.
Leia também: Itália: "eleições vermelhas" não barram o socialismo
Leia também: Itália: "eleições vermelhas" não barram o socialismo
18 de fevereiro de 2020
Itália: “eleições vermelhas” não barraram o fascismo
Em novembro de 1919, as eleições italianas
foram "vermelhas". Os socialistas obtiveram mais de 1 milhão e 800
mil votos, conquistando quase um terço do parlamento nacional. O triunfo seria um
prenúncio da revolução.
Já o fracasso fascista foi inversamente
proporcional: dos cerca de 270 mil eleitores de Milão, os fascistas obtiveram
apenas 4.657 votos. Mussolini, somente 2.427 votos. Nenhum candidato fascista
foi eleito. Nem ele. Um completo fiasco.
Nas ruas, os socialistas encenam uma
procissão fúnebre. A multidão grita: "Eis o cadáver de Mussolini"
Roma, 1º de dezembro de 1919. Os parlamentares
assumem seus mandatos. Entre eles, 156 deputados socialistas. Quase todos pela
primeira vez. Muitos deles, filhos de humildes trabalhadores braçais.
Entra o rei Vittorio Emanuele
Orlando para inaugurar a legislatura diante dos cerca de 500 representantes da
nação. Todos ficam de pé e o aplaudem, gritando: "Viva o rei!"
Na ala esquerda do salão, ocupada
pelos socialistas, ninguém se mexe. Permanecem sentados. Terminada a saudação
ao monarca, eles se levantam e marcham para fora do parlamento. Seu líder, Nicola
Bombacci, caminha à frente. Ao passar pelo trono, olha para o soberano e grita:
"Viva a república socialista!"
A demonstração não impressiona Mussolini.
Ao contrário. Para ele, o sucesso dos socialistas os esmagará. Eles prometeram
demais na campanha eleitoral. Gritaram "vida longa a Lenin!". Agora, precisam
fazer a revolução.
Diante da indefinição quanto a priorizar
o caminho eleitoral ou a via revolucionária, os socialistas acabarão por se
perder, aposta ele. Os acontecimentos dos anos seguintes mostrariam que,
infelizmente, Mussolini estava certo.
17 de fevereiro de 2020
O alívio proporcionado pela bestialidade fascista
Recém-lançado no Brasil, “M, O Filho
do Século”, de Antonio Scurati, é uma biografia política de Mussolini.
Em certo momento, surge a pergunta: “Quem
são os fascistas?”. Segundo Scurati, “Benito Mussolini, criador do movimento,
considera a questão sem sentido”. “Somos antipartido! Somos antipolíticos”,
diria. Afinal:
O importante é ser algo que permita
evitar os obstáculos da consistência, o peso dos princípios. As teorias e a
consequente paralisia, Benito Mussolini, de bom grado, as deixa para os
socialistas.
Os Fasci não têm ideia do futuro,
não sabem para onde ir. Mas esse defeito será sua salvação, não sua condenação.
Os fascistas não querem reescrever o
livro da realidade, apenas querem seu lugar no mundo. E eles terão isso. É
apenas uma questão de promover o ódio sectário, de exacerbar ressentimentos.
Então nada será impossível. Não há mais esquerda ou direita. Só é necessário
alimentar certos humores que emergem neste crepúsculo da guerra. Nada mais.
Isso é tudo.
Eles podem e devem, portanto, se dar
ao luxo de serem reacionários e revolucionários de acordo com as circunstâncias.
Eles não prometem nada e manterão sua promessa.
O problema teórico do programa
político é resolvido erradicando-o como uma erva daninha: os fascistas só
precisam da ação, qualquer tipo de ação. Então tudo é simplificado. Nesses
momentos, quando o pensamento é liberado para a ação, a vida interior é
miniaturizada, reduzida aos reflexos mais simples, move-se do centro nervoso
para a periferia. Que alívio...
É isso o que muitos procuram
hoje. O alívio da bestialidade política. Um sentimento tornado tragicamente possível
pelas disparidades econômicas e pela barbárie social do capitalismo.
14 de fevereiro de 2020
Indústria americana, capital chinês, exploração global
Os trabalhadores de
Ohio, Estados Unidos, têm saudades do tempo em que tinham empregos em grandes
fábricas. A cidade fica no chamado “cinturão enferrujado”, onde antes as indústrias
do “cinturão do aço” criavam muitas ocupações.
Em 2016, é inaugurada uma
fábrica chinesa de para-brisas na cidade. São dois mil empregos, dos quais
cerca de 20% reservados a operários vindos da China.
O otimismo se espalha
pela população local. Os empregos estavam voltando. E graças exatamente a que
vem sendo apontado como responsável pela maior parte do desemprego estadunidense.
Mas o capitalista chinês
à frente do empreendimento tem uma condição fundamental para manter a fábrica
funcionando. Nada de sindicatos. “Eles aumentam os custos”, diz Cao Dewang.
A princípio, os recém-contratados
estão muito felizes. Voltaram à vida produtiva, ainda que trabalhando por menos
da metade do que recebiam antes. Melhor que nada, afinal.
Mas logo surgem as contradições.
Os operários chineses têm uma cultura laboral própria. Muita submissão aos patrões
e chefes. Trabalho incessante, folgas apenas aos domingos e horários de almoço contados
em minutos.
Os trabalhadores
locais não aceitam esse ritmo. Também questionam o monopólio chinês dos cargos
de chefia. Os conflitos se multiplicam. Começa uma campanha por uma organização
sindical no local. A empresa faz terror e chantagem para impedir e é bem
sucedida.
Muito resumidamente este
é o enredo do documentário “Indústria Americana”, de Julia Reichert e Steven
Bognar. Vencedor do Oscar, merece ser visto. Mostra como a epidemia capitalista
se espalhou a tal ponto que o capital chinês dá aulas de exploração ao
imperialismo ianque.
A indústria é global. A
resistência também deve ser.
Leia também:
Precisamos
debater a China. E muito
13 de fevereiro de 2020
Fraturas na ditadura democrática estadunidense
A mais perfeita ditadura
do mundo funciona há séculos sob o domínio de um partido único, com duas alas: a
republicana e a democrata.
A ditadura estadunidense
funciona tão bem que elege presidentes em um colégio eleitoral que, frequentemente,
ignora a vontade popular. O último deles foi Trump. Com três milhões de votos
populares a menos que Hillary Clinton, esse sistema não foi contestado nem mesmo
por ela.
Este forte aparato
político funciona como um muro contra alternativas mais democráticas. Principalmente,
contra forças de esquerda. É este muro que coloca do mesmo lado Bush, Trump, Obama,
Clinton...
Mas surgem sinais de rachaduras
nesse paredão. Uma onda rebelde de esquerda vem varrendo grande parte da sociedade
estadunidense. À frente dela, o senador Bernie Sanders.
Sanders luta para ser o
candidato democrata nas eleições presidenciais defendendo uma plataforma
política considerada radical. Na verdade, apenas propõe políticas de redistribuição
de renda, ampliação dos serviços públicos, taxação da riqueza e limitações à especulação
financeira. Mas basta isso para ser considerado um incendiário.
Sanders conta com forte
apoio em categorias sindicais recentemente envolvidas em grandes greves e lutas.
Suas propostas também vêm conquistando jovens, latinos, negros e muçulmanos.
Para muitos
comentaristas, Sanders representa a maior chance de uma vitória democrata nas próximas
eleições. Mas o maior inimigo dele hoje não são os republicanos. É a direção de
seu próprio partido, que prefere ver Trump reeleito a permitir a vitória de um “incendiário”.
Daí, as recentes sabotagens contra sua candidatura nas primárias democratas.
Há possíveis fraturas
na poderosa muralha conservadora estadunidense. E isso é muito importante para
os socialistas no mundo todo.
Leia também:
Privacidade hackeada, democracia compradaDonald Trump: tragédia nada acidental
Realmente, Obama é de chorar
12 de fevereiro de 2020
Sobre parasitas e bichos escrotos
O sucesso de Bong Joon
Ho, com seu filme “Parasita”, na última edição do Oscar recebeu aprovação quase
unânime. Mas muito dessa recepção parece dever-se mais à qualidade da produção como
entretenimento de alta qualidade do que à crítica social implícita em sua trama.
Tornou-se lugar-comum
afirmar que o filme retrata a impossibilidade de ascensão social em uma sociedade
desigual como a sul-coreana. Uma realidade que só deixaria aos debaixo a
possibilidade de “parasitar” a riqueza dos de cima.
Mas um texto de Max
Balhorn, publicado pelo portal Outras Palavras, pode ajudar a ir além dessa constatação um tanto óbvia. Ele
afirma, por exemplo, que:
...o
que torna a crítica de Bong Joon Hon à vida sob o capitalismo tão condenatória
não é o mero fato de ele destacar as desigualdades, mas sua representação da
desmoralização dos trabalhadores sob o neoliberalismo de maneira geral. Presos
em eternos ciclos de pobreza, os Kim estão constantemente à procura de emprego,
um sinal de Wi-Fi grátis e uma maneira de escapar do cheiro de “trapo cozido”
que os marca como pobres...
Ao mesmo tempo em que fornece
informações importantes sobre a situação socioeconômica contraditória na Coreia
do Sul, Balhorn alerta:
O
fato de Parasita também ter se saído tão bem com o público do Ocidente sugere
que as condições descritas em Seul não estão tão distantes da realidade das
pessoas ao redor do mundo.
Por outro lado, pedindo
licença a Bong para utilizar sua metáfora de modo invertido, poderíamos dizer que,
no Brasil, os parasitas sempre se concentraram no andar de cima. Ainda que, ultimamente,
saiam diretamente dos esgotos.
11 de fevereiro de 2020
As tropas do fascismo estão prontas
Em seu início, na Itália e na Alemanha,
o fascismo recrutou muitos veteranos da Primeira Guerra. Ex-soldados, jogados
de volta a suas cidades, sem emprego e perspectivas.
Muitos deles sentiam que tinham arriscado suas vidas por nada. Nos acordos de paz celebrados após o conflito,
os vencedores impuseram condições degradantes à Alemanha.
No caso da Itália, havia um
agravante. O país pertencia ao lado vitorioso, mas teve suas principais
reivindicações territoriais desprezadas pelos aliados.
A culpa era dos governos e das elites,
diziam muitos desses veteranos. Consideravam-se os únicos defensores da pátria
contra a arrogância imperialista, de um lado, e a ameaça soviética, do outro.
Mussolini e Hitler, também ex-combatentes,
souberam capitalizar toda essa revolta. Organizaram os veteranos em tropas
extremamente violentas a serviço de seus fins. Direcionaram a brutalidade que os soldados aprenderam nas trincheiras contra seus alvos preferenciais:
comunistas, socialistas, sindicalistas, judeus, ciganos, homossexuais.
No Brasil, não temos ex-combatentes à disposição da extrema-direita. As agressões a nossa soberania independem
da ocorrência de guerras e costumam ser ignoradas por nossos “patriotas”. Além disso, muitos dos atos
violentos que ocorrem nas ruas são cometidos não por militares desmobilizados,
mas pelos da ativa. Tanto no exercício de suas funções como fora delas, na
condição de milicianos.
Apesar dessas diferenças todas, o
fascismo local já conta com tropas a sua disposição. Sem respeito por nada ou ninguém
que lhes seja estranho. Para comprová-lo, basta lembrar mais uma das muitas evidências
de como elas operam.
Trata-se da imagem que mostra um PM
com o joelho apoiado na barriga de uma mulher grávida, após tê-la jogado ao
chão.
Leia também: Policiais contra o fascismo
10 de fevereiro de 2020
Na Síria, as profundezas da estupidez humana
Sob o chão da cidade síria
de Ghouta, nas proximidades de Damasco, há uma grande rede de túneis e abrigos.
É assim que a população local foge ao bombardeio intenso e indiscriminado causado
pela aviação russa.
Um dos alvos das
bombas é um hospital. Parte de suas instalações também está no subterrâneo. Por
isso, é conhecido como “A Caverna” (“The Cave”), mesmo nome do documentário de Feras
Fayyad, finalista da última edição do Oscar.
Mas muitas atividades
do hospital acontecem na superfície. Principalmente, primeiros socorros e cirurgias.
Os feridos chegam aos montes. Entre eles, muitas crianças. Muitos bebês. Vê-los
aterrorizados e manchados de sangue é como sentir uma mão forte e impiedosa a
apertar o coração.
Na direção da unidade,
a Dra. Amani. Eleita e reeleita para o cargo pelo corpo de funcionários, sua
autoridade costuma ser questionada pelo simples fato de ser mulher.
“Lugar de mulher é em
casa, cuidando do marido e filhos”, diz um dos pacientes, que prefere ignorar a
situação desesperadora de um hospital sob bombardeio constante para se queixar
do sexo de sua diretora.
Amani e suas
companheiras de trabalho trazem as cabeças cobertas, como manda a tradição muçulmana.
Não negam sua religião, mas sentem na alma como ela pode transformar-se em opressão.
Há homens bons, porém.
O cirurgião-chefe trabalha ouvindo música clássica em um celular. Nas
frequentes vezes em que falta anestésico, ele pede ao paciente que se concentre
no som da orquestra para suportar as dores. Mas o estrondo das bombas não cessa.
“A Caverna” mostra como podem ser profundas as trevas a que pode chegar a estupidez humana.
Leia também: Para entender a guerra na
Síria, leia Fisk
7 de fevereiro de 2020
Na sala de jantar, cadáveres dos campos de concentração
Outro trecho do livro “A Ordem do
Dia”, de Eric Vuillard, recém-lançado no Brasil.
Na primavera de 1944, Gustav Krupp jantava
em seu luxuoso palácio na Villa Hügel, onde sempre viveu com sua família.
De repente, o velho patriarca da
indústria pesada alemã se levantou. Esticou um dedo longo e fino em direção ao
fundo da sala, logo atrás do filho e murmurou: "Mas quem são todas essas
pessoas?"
O que ele viu, emergindo lentamente
das sombras, foram dezenas de milhares de cadáveres, trabalhadores forçados que
a SS havia fornecido para suas fábricas. Eles surgiram do nada.
A guerra tinha sido lucrativa para grandes
capitalistas como Krupp. E uma das fontes desses lucros era a exploração do trabalho
dos prisioneiros de campos de concentração. A Bayer fez uso da mão de obra que os
nazistas lhe disponibilizaram em Mauthausen. A BMW fez o mesmo em Dachau,
Papenburg, Sachsenhausen, Natzweiler-Struthof e Buchenwald. A
Daimler em Schirmeck. A IG Farben em Dora-Mittelbau, Gross-Rosen,
Sachsenhausen, Buchenwald, Ravensbrück, Dachau, Mauthausen. Também operou uma fábrica gigantesca
em Auschwitz: a IG Auschwitz, cujo nome aparecia no organograma da empresa sem o
menor pudor. A Agfa recrutava trabalho escravo em Dachau. A Shell em
Neuengamme. A Schneider em Buchenwald. A Telefunken em Gross-Rosen
e a Siemens em Buchenwald, Flossenbürg, Neuengamme, Ravensbrück, Sachsenhausen,
Gross-Rosen e Auschwitz. Todas
fizeram uso dessa mão de obra de custo tão baixo.
Mas essas enormes corporações não
são monstros antediluvianos. Não são criaturas que desapareceram nos anos
cinquenta. Elas ainda existem. Suas fortunas são imensas.
Por isso, os cadáveres continuam no fundo da sala. E não surgiram do nada.
Leia também:
A paz dos campos de concentração e
dos cemitérios
6 de fevereiro de 2020
Do nirvana ao inferno pelas mãos do grande capital
Abaixo, um episódio descrito
no início do livro “A Ordem do Dia”, de Eric Vuillard, recém-lançado no Brasil.
Havia vinte e quatro
deles. Gustav Krupp, magnata da indústria pesada, estava lá. Em suas palavras, aquela
reunião representa “o nirvana da indústria e das finanças”.
Hermann Goering, presidente
do parlamento alemão, entra na sala sorrindo.
As eleições acontecerão
em 5 de março. As vinte e quatro esfinges ouvem atentamente. "A próxima
campanha eleitoral é decisiva", diz. “Devemos pôr um fim à instabilidade
do regime; atividade econômica requer calma e firmeza”.
Os vinte e quatro
cavalheiros concordam com a cabeça, religiosamente.
E se o partido nazista
obtiver a maioria, acrescenta Goering, essas eleições serão as últimas nos
próximos dez anos. Talvez, acrescenta com uma risada, nos próximos cem anos. Um
movimento de aprovação cruzou a audiência.
O novo chanceler
finalmente entrou na sala. Hitler estava sorrindo, descontraído. Seu discurso
durou meia hora:
...era
necessário acabar com um regime fraco, remover a ameaça comunista, suprimir os
sindicatos e permitir que cada patrão fosse um Führer em sua empresa.
Mas fazer campanha eleitoral
exige dinheiro.
Era 20 de fevereiro de
1933. Nessa reunião foi selado um pacto com os nazistas. Para os Krupps, os
Opels, os Siemens apenas um episódio bastante comum da vida empresarial. Uma simples
e banal arrecadação de fundos.
Entre os presentes, Schnitzler,
Witzleben, Schmitt, Finck, Rosterg. Ou melhor, BASF, Bayer, Agfa, Opel, IG
Farben, Siemens, Allianz, Telefunken...
Hoje, são nossos automóveis,
lavadoras, produtos químicos, seguros, baterias, elevadores, eletrodomésticos...
Diante da ascensão nazista
permaneceram “impassíveis, como vinte e quatro máquinas de calcular nos portões
do inferno”.
Leia também: Extremista é o mercado
5 de fevereiro de 2020
Não há antifascismo radical sem anticapitalismo radical
E isso acontece, diz o
autor:
Porque
o capitalismo entra em crise. Porque força milhões ao desemprego e à pobreza, criando
condições favoráveis ao crescimento do ressentimento. Além disso, o próprio
capitalismo baseia-se em uma série de ideias que incluem racismo e elitismo. Desse
modo, preenche constantemente o reservatório de valores reacionários sobre os quais
o fascismo se baseia para crescer. A luta antifascista é necessária, mas é por
natureza uma luta difícil e repetitiva. Parafraseando Rosa Luxemburgo, o antifascismo
seria como o trabalho de Sísifo: enquanto um grupo fascista parece entrar em
declínio, outro nasce e é preciso detê-lo.
Ou seja, ressalta
Renton, “os antifascistas precisam reconhecer que enquanto o capitalismo
sobreviver, o fascismo se repetirá. A única maneira de acabar com os ratos é
destruir o esgoto em que vivem”.
E conclui, afirmando que
só é possível parar o fascismo “lutando por uma sociedade onde o potencial de
toda a humanidade seja totalmente realizado e todas as formas de opressão sejam
varridas”.
Enfim, não há como
realmente derrotar o fascismo sem combater o capitalismo em todas as suas dimensões.
Seja na luta contra a exploração econômica, seja na resistência às opressões sociais,
o importante é deixar claro que o sistema como um todo precisa ser combatido para
que o fascismo como fenômeno social desapareça.
Não há como ser radicalmente
antifascista sem ser radicalmente anticapitalista.
Leia também: Como
combater o fascismo nas ruas
4 de fevereiro de 2020
Como combater o fascismo nas ruas
Vejamos o que fala o livro “Fascism: Theory and Practice”, de Dave Renton, sobre a ocupação violenta das ruas pelos
fascistas.
Marchas, intimidações
físicas e grandes manifestações são muito importantes para os fascistas. Portanto,
é principalmente nessa arena que é preciso dar-lhes combate.
O próprio Hitler chegou
a alertar:
Apenas
uma coisa poderia nos ter detido - se nossos inimigos tivessem entendido nossos
princípios e, desde o primeiro dia, tivessem destruído com a máxima brutalidade
o núcleo de nosso movimento.
Onde os fascistas ainda
são pequenos, isolados e rachados, seria um desperdício de energia perseguir apenas
alguns deles. Mas onde já estão tentando controlar as ruas, é necessário confrontá-los.
Confrontos físicos, no
entanto, devem ser entendidos em sua dimensão específica. A violência não faz
parte da visão de mundo dos antifascistas. Nós não procuramos criar uma
sociedade onde a violência seja natural ou comum. Glorificar a violência, jamais.
Por esses motivos, o
confronto físico contra o fascismo deve abranger um grande número, deve ser
primordialmente não violento e não deve envolver apenas antifascistas “profissionais”.
O objetivo principal é construir uma oposição verdadeiramente de massa.
Renton cita como exemplo
dessa oposição de massa o Rock Contra o Racismo e a Liga Antinazista, movimentos
nascidos em 1979, quando o fascismo ressurgia forte na Inglaterra.
Essas frentes uniam comunistas,
socialistas, trabalhistas, punks, militantes negros e sindicalistas. Suas atividades
reuniam dezenas de milhares e, nas eleições daquele ano, o partido fascista não ultrapassou
1,5% dos votos.
Ou seja, derrotar os
fascistas é possível, desde que não entreguemos a eles justamente o palco principal
de nossas maiores vitórias: as ruas.
3 de fevereiro de 2020
Como combater o fascismo no campo das ideias
No livro “Fascism:
Theory and Practice”, de Dave Renton, ficamos sabendo que o fascismo é um
movimento de massa que se organiza em torno das queixas de pessoas comuns. Principalmente,
da classe média. Mas como sua ideologia defende interesses diferentes dos delas,
é sempre possível detê-lo.
Sua principal
fragilidade é a incapacidade de ser consequente na luta contra o capital. Desse
modo, o fascismo tem sérias dificuldades para manter-se organizado entre trabalhadores
ou assalariados das camadas intermediárias que estão genuinamente revoltados com
o mundo em que vivem. Por isso, é fundamental que os antifascistas sejam também
anticapitalistas.
Além disso, diz o
autor:
Às
vezes, os fascistas tentam defender suas ideias dentro de organizações
democráticas, como sindicatos e entidades estudantis. Nesses momentos, os
antifascistas devem insistir para que não tenham direito à palavra. Como os
fascistas se opõem à liberdade de expressão de negros, judeus, feministas,
socialistas, sindicalistas, lésbicas e gays, e como, quando falam, incentivam a
violência racial e representam uma ameaça para todos, a estratégia mais eficaz
é insistir para que eles não sejam ouvidos.
O fato, diz Renton, é que:
...os
partidos fascistas devem ser tratados diferentemente de outras formas de
organização política. O fascismo é truculento e antidemocrático. Defende uma
ideologia que oferece soluções enganosamente simples e brutais para problemas
reais. Por esses motivos, deve ser vetado. O fascismo não é apenas mais uma
ideologia política, é um inimigo da vida democrática.
Mas outra característica
importante do fascistas é a forma extremamente violenta com que ocupam as ruas.
Diante disso, como devem responder as forças antifascistas?
É o que veremos na
próxima pílula.