Doses maiores

5 de julho de 2024

República Popular da Amazon

Friedrich Hayek é considerado um guru do neoliberalismo. Para ele, nenhum planejamento estatal da economia de mercado é possível devido à enorme quantidade e complexidade de suas variáveis. O único fator regulador possível seriam os preços em livre concorrência.  

Pois bem, segundo Leigh Phillips e Michael Rozworski, em seu livro “The People's Republic of Walmart”, a era do “big data” está provando que Hayek estava errado. Principalmente quando se olha para o que uma Amazon faz com a massa caótica de dados produzida por suas operações de venda e entrega.

Segundo os autores, a Amazon não rastreia apenas transações de mercado. Além daquilo que você compra, a empresa coleta dados sobre como você navega, os caminhos que percorre entre os itens, quanto tempo permanece em cada página, o que coloca e tira do carrinho de compras e muito mais.

Os métodos de planejamento da Amazon não são soluções completas para problemas que jamais seriam totalmente resolvidos. São simplesmente as melhores aproximações. Não é uma luta para derrotar o caos, mas para torná-lo manejável. A empresa sabe que isso é melhor que esperar que o jogo dos preços resolva as coisas.

A Amazon desenvolveu ferramentas e métodos que poderiam ser radicalmente reconfigurados para serem utilizados no planejamento das coisas públicas. Hayek jamais imaginou as vastas quantidades de dados que atualmente podem ser armazenadas e manipuladas sem precisar participar das transações do mercado.

É mais um exemplo do que Marx dizia sobre a necessidade de libertar forças produtivas com enorme potencial de emancipação social das amarras impostas por relações de produção baseadas na opressão e exploração humanas.   

Leia também: A mão pesada do planejamento nas corporações capitalistas

4 de julho de 2024

A mão pesada do planejamento nas corporações capitalistas

Em seu livro “The People's Republic of Walmart”, Leigh Phillips e Michael Rozworski demonstram que praticamente todos os grandes monopólios capitalistas adotam a planificação econômica em seu modo de organização. Algo parecido com o que faziam os soviéticos, por exemplo.

Mas uma grande corporação tentou fazer diferente. Entre 2010 e 2017, quase 2.300 lojas da Sears fecharam. O motivo? A desastrosa decisão do presidente da varejista de desagregar suas divisões em unidades concorrentes, criando um mercado interno.

A ideia era usar a Sears como uma grande experiência para mostrar que a “mão invisível” da livre concorrência superaria o planejamento central típico de qualquer empresa. O problema é que as diferentes unidades caíram em uma selvagem competição entre si, pouco se importando com a empresa como um todo.

O fato é que mesmo os mais fervorosos defensores do mercado livre preferem o planejamento à liberdade de mercado quando se trata da gestão de grandes corporações privadas. Mas trata-se de um planejamento autoritário. Tudo é definido rigidamente nas organizações capitalistas, desde a distribuição do dinheiro entre os departamentos até o tempo exato necessário para montar um hambúrguer. E em todos os casos, o planejamento determina qual trabalhador individual fará qual tarefa, quando, onde e como.

Os enormes lucros dessas empresas mostram que o planejamento econômico também pode funcionar para a sociedade como um todo, desde que voltado para o bem comum, aproveitando os avanços da cibernética e com os meios de produção sob controle dos trabalhadores.

O planejamento estatal é incompatível com o capitalismo, não com a administração socializada das necessidades, capacidades e potencialidades da sociedade humana.

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3 de julho de 2024

As abstrações criminosas da austeridade neoliberal

Sob o capitalismo, as coisas tendem a se tornar abstratas. O trabalho humano, que produz coisas úteis e concretas, se transforma em abstração mercadológica. Mero valor de troca descarnado.

Aposentadoria por tempo de contribuição, aposentadoria especial, por idade rural, por idade urbana, por incapacidade permanente. Auxílio-doença, auxílio-acidente, salário-maternidade, pensão por morte e benefício de prestação continuada.

A relação acima elenca alguns dos benefícios pagos a mais de 39 milhões de segurados do INSS. Pessoas concretas, cuja força de trabalho é superexplorada pelas minorias que controlam os meios de produção do País.

Mas tudo isso é abstraído quando jornalistas, governantes e economistas a serviço do capital reclamam que no primeiro quadrimestre deste ano, os gastos previdenciários somaram R$ 80,7 bilhões, aumentando 17% em relação ao mesmo período do ano passado. Por outro lado, esses mesmos capachos do controle das contas públicas jamais dão a mesma ênfase aos R$ 116 bilhões que o governo federal pagou de juros da dívida pública em igual período. Só de juros! Nenhum centavo serviu para abater o principal do débito.

Eles também alertam para o fato de que o déficit da previdência atingiu R$ 306 bilhões em 2023, mas nada dizem sobre a dívida pública federal ter ultrapassado R$ 6,5 trilhões no mesmo ano.

Fato concreto: despesas previdenciárias se destinam a pessoas que trabalham duro, ganham pouco e têm seus direitos constantemente suprimidos. Outro fato concreto: a dívida pública alimenta uma minúscula elite que parasita os recursos públicos.

Essa dura realidade é ocultada pelas abstrações criminosas impostas pelos carrascos da austeridade neoliberal, encarniçados em seu empenho para cortar ainda mais direitos sociais.

Leia também: Dobrando a aposta neoliberal no fascismo

2 de julho de 2024

Festas juninas, festejos indígenas

O mês de junho recém partiu, levando embora os festejos de arraial. Mas como as brasas das fogueiras continuam quentes, ainda há tempo de trazer uma informação que, talvez, seja desconhecida por muita gente. As festas juninas têm a ver mais com tradições indígenas do que com costumes europeus.

É o que mostra recente reportagem do portal G1, segundo a qual:

Antes da chegada dos colonizadores, o mês de junho já era especial para indígenas que viviam pelo Nordeste. Por isso, diversos elementos do São João nordestino são associados à ancestralidade originária.

Os povos Cariri, Tarairiú e Tupi, por exemplo, agradeciam os frutos da colheita com festejos organizados, em geral, por volta de junho.

Mas para os cariris, assim como para os tarairiús, a festa também comemorava o início de um novo ano, marcado pelo aparecimento das estrelas plêiades. Era a festa de Batí ou festa da “Estrela”, no idioma cariri.

Claro que os colonizadores fizeram tudo para suprimir essas tradições locais. Como, de resto, aconteceu com muitas outras características culturais fundamentais dos povos originários.

Mas na própria Europa, houve um processo parecido em relação às tradições populares consideradas pagãs, incluindo as próprias festas juninas de lá. A reportagem cita o professor da Universidade Federal da Paraíba, Ângelo Antônio:

A gente sabe que ali nos primeiros séculos do cristianismo houve uma acoplagem desse calendário pagão, que estava muito ligado aos ritos de passagem das estações, das colheitas, rituais de fertilidades, e que vão sendo de uma maneira ou de outra reapropriados pela lógica católica.

E assim caminha a chamada civilização. Atropelando e apagando importantes tradições populares.

Leia também: Os idiomas artificiais e o extermínio das línguas indígenas

1 de julho de 2024

Plano Real: democracia tutelada e fascismo

Os 30 anos do Plano Real estão sendo comemorados com muita festa e unanimidade pelas grandes mídias. Segundo os promotores dessas celebrações, o único objetivo da política econômica é controlar a inflação, mesmo que isso implique manter uma das piores concentrações de riqueza do planeta.

Um bom texto para entender esse fenômeno é “Por outra história do Real”, publicado por Luiz Filgueiras no portal Outras Palavras. Mas lembremos rapidamente a que finalidades realmente serviu o surgimento do Real.

Na época da inflação galopante da década de 1980, as lutas sindicais estavam no centro do cenário social, com greves grandes e frequentes. Os trabalhadores se envolviam em conflitos diretos com um adversário visível, os patrões.

Quando a inflação diminuiu drasticamente, em meados dos anos 90, as greves também se reduziram e a defesa de conquistas e direitos contra a lógica dos mercados mudou para a arena eleitoral.

Logo a seguir, impôs-se a austeridade fiscal, que levou a vida de milhões a depender de decisões de entidades multilaterais, grandes corporações financeiras e outras instituições semelhantes. Todas situadas em lugares isolados da experiência cotidiana e totalmente impenetráveis à pressão popular.

A democracia foi definitivamente dissociada da economia. O mandato dos bancos centrais tornou-se mais importante que os dos governantes e parlamentares. A já limitada vontade popular expressa pelo voto quase completamente tutelada pelos dogmas do neoliberalismo.

Era a mais recente metamorfose de uma democracia que sempre foi de fachada. Uma dominação secular autoritária que continua a convocar as feras do fascismo para defendê-la, cada vez que suas promessas de prosperidade se revelam falsas e despertam a revolta popular.

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