Doses maiores

31 de julho de 2024

O neoliberalismo desde baixo

O filósofo Rodrigo Nunes publicou o artigo “Pequenos fascismos, grandes negócios”, em outubro de 2021, na revista “piauí”. Em determinado trecho, ele lembra que a cientista social argentina Verónica Gago cunhou a expressão “neoliberalismo desde baixo”, por ele resumida como:

...uma condição em que as classes populares, cada vez mais habituadas à privatização dos riscos e aos discursos de legitimação da ordem econômica promovidos pelo neoliberalismo, internalizam a lógica do “empreendedor de si mesmo” e passam a conceber nesses termos suas próprias estratégias de vida.

Mesmo em condições normais, o mercado sempre produz muito mais perdedores que vencedores. Aliás, a ficção de que ele seria um espaço em que os indivíduos florescem exclusivamente por seus méritos normalmente serve para que os vencedores disfarcem todas as vantagens que tiveram (na forma de riqueza intergeracional, boas conexões e acesso privilegiado ao poder político, por exemplo). Mas a força da ideologia do empreendedorismo provém do fato de que a identificação com ela não só não precisa de uma base material (ela se refere mais a uma atitude que a uma atividade), como tende a tornar-se mais forte, e não mais fraca, diante da impossibilidade de se realizar. Quando se crê que o êxito depende exclusivamente do esforço individual, o fracasso não é experimentado como sinal de que os dados estão viciados, mas como culpa, vergonha e chamamento para dar ainda mais duro.

Desse modo, o neoliberalismo cria raízes no chão social, ao mesmo tempo em que o ressentimento que suas frustações geram permite ao extremismo de direita funcionar como válvula de escape e mecanismo de reforço do sistema.

Leia também: Neoliberalismo, o exterminador do futuro

30 de julho de 2024

O caótico planejamento soviético

“Conhecemos muito sobre o socialismo, mas pouco sobre organização e distribuição na escala dos milhões. Isso os antigos líderes bolcheviques não nos ensinaram”. Estas palavras foram citadas por Leigh Phillips e Michael Rozworski no seu livro “The People's Republic of Walmart”. Lênin as escreveu em 1923, quando o tamanho do desafio de governar a economia de um país gigante como a Rússia começava a se revelar.

De fato, afirmam os autores, a deterioração da situação da União Soviética em seu início, foi, pelo menos em parte, devido a essas lacunas no marxismo clássico, em relação às quais os arquitetos do novo sistema mal tinham ideia sobre como preencher.

Mas no final da década de 1920, outro problema começava a surgir. Centenas de burocratas envolvidos na elaboração dos planos, bem como os gerentes de fábricas, minas ou ferrovias, temiam por seus empregos, suas famílias e suas vidas.

Todos os níveis da sociedade, mas especialmente aqueles envolvidos em atividades gerenciais ou de planejamento, viviam com medo da polícia secreta, dos campos de prisioneiros e do pelotão de fuzilamento. Em tais circunstâncias, a qualidade das informações necessárias a um planejamento eficaz ficou fortemente comprometida. Na verdade, aquilo que deu certo no planejamento soviético não ocorreu graças ao stalinismo, mas apesar dele.

As coisas só foram melhorar no breve período de relativa “desestalinização” sob o comando de Kruschev. Nessa época, surgiriam inovações em planejamento que, ironicamente, viriam a ser quase universalmente adotadas posteriormente por grandes corporações capitalistas e levariam aos algoritmos que hoje "governam o mundo".

Voltaremos ao tema em uma próxima pílula.

Leia também: Sistemas de saúde e planejamento democrático

29 de julho de 2024

Nordeste: o flagelo das cercas

Malditas sejam todas as cercas! Malditas todas as propriedades privadas que nos privam de viver e de amar! Malditas sejam todas as leis, amanhadas por umas poucas mãos, para ampararem cercas e bois e fazerem da terra escrava e escravos os homens!

As palavras acima são de Dom Pedro Casaldáliga, bispo de São Félix do Araguaia, falecido em 2020. Recentemente, foram repetidas na novela “Renascer”, da Globo, pelo personagem Tião Galinha, magistralmente interpretado por Irandhir Santos. Representam um protesto contra o latifúndio que, mesmo quando é produtivo, destrói o meio ambiente, nele incluídos os milhões de pobres que vivem do cultivo da terra.

A trama da novela se desenrola em Ilhéus, no litoral baiano. Mas os estragos causados pelas cercas e as propriedades que as protegem são universais. Há mais de 150 anos, Marx já denunciava os “cercamentos” ingleses dos séculos 17 e 18. Um processo de privatização das terras que eram cultivadas comunitariamente pelos camponeses há séculos. Um roubo que jogou milhões na miséria e os obrigou a trabalhar para a classe dos capitalistas, que começava a surgir.

No Nordeste brasileiro, tornou-se comum falar em “flagelo da seca”, em referência à escassez de chuvas. Mas antes que os latifundiários se apropriassem de suas terras, a população que vivia nelas há milhares de anos evitava as consequências da seca deslocando-se para outras regiões e retornando quando cessava a estiagem. Uma prática inviabilizada pelas cercas.

Flagelo, mesmo, é o das cercas. O que escasseia não é a água, mas a justiça. E o que abunda é a destruição ambiental e a exploração social.

Leia também: O povo nordestino e a “ingnorânça” das elites

26 de julho de 2024

Pílulas antigas sobre os jogos olímpicos

Olimpíadas e nazismo marchando juntos

As Olimpíadas modernas foram criadas em 1896 por Pierre de Coubertin, um aristocrata francês. Não é por acaso que elas surgem junto com o imperialismo. Essas coisas andam lado a lado.


Doping, genética? Não. Dinheiro, mesmo

Quando o esporte fonte de enormes lucros, os atletas começam a usar drogas para ganhar milésimos de segundo em suas performances.


Olimpíadas e machismo

O criador da versão moderna dos Jogos, Pierre de Coubertin, considerava a participação feminina algo “impraticável, desinteressante, antiestético e incorreto”.


Olimpíadas: nada a ver com esportes

Vários eventos ficaram esquecidos, soterrados pela mídia e pelo consumismo que envolvem as Olimpíadas há muitas décadas. Por exemplo, o massacre de centenas de estudantes durante os Jogos do México, em 1968.

25 de julho de 2024

Lênin e a dialética das revoluções

Em dezembro de 1917, Gramsci publicou um artigo chamado “A revolução contra o Capital”. O “Capital” de que fala o título era a famosa obra de Marx. O revolucionário italiano considerava a façanha bolchevique uma negação das conclusões simplistas deduzidas das elaborações de Marx.

Segundo tais conclusões, revoluções socialistas somente seriam possíveis em nações altamente industrializadas, como Inglaterra, França, Alemanha. Países “atrasados”, como a Rússia, teriam que superar algumas etapas. Primeiro, industrialização e democracia, a cargo da burguesia. Depois, socialismo e liberdade, conquistados pelos trabalhadores.

Marx nunca disse que a revolução só seria possível em países em que o capitalismo alcançasse seu auge. O mais importante não é o nível de desenvolvimento do capitalismo, mas seu caráter contraditório. Tanto é assim que Marx achava mais provável acontecer uma revolução na Alemanha, cujo desenvolvimento industrial era bem menor que o da Inglaterra, mas que apresentava contradições mais radicais entre o que o capitalismo prometia e aquilo que entregava.

A partir desse entendimento, Lênin criou a “teoria do elo mais fraco da cadeia imperialista”, segundo a qual o capitalismo é uma totalidade mundial cuja integridade pode ser abalada pelo rompimento de seus elementos mais frágeis. Na época, a Rússia seria um desses elos fracos.

Essa dinâmica do funcionamento capitalista escapava a muitos marxistas dos países da Europa ocidental. Por eles, não apenas a revolução russa não teria ocorrido, como qualquer outra seria adiada indefinidamente. Aliás, foi o que aconteceu.

A mesma dialética explica tanto a ousadia da vanguarda de um país “atrasado” como a tacanhez de sua equivalente nos países “avançados”. É a dialética das revoluções.

Leia também: Lênin contra cancelamentos

24 de julho de 2024

Neoliberalismo, o exterminador do futuro

Dois textos. O primeiro é uma entrevista com o historiador marxista indiano Vijay Prashad, publicada recentemente na revista Jacobina, com o titulo “Não oferecer uma utopia é uma limitação imediata da esquerda”.

Referindo-se aos neoliberais, Prashad diz que a utopia deles funciona porque ela não é sobre a realização. É sobre competição. Eles dizem, por exemplo, que seu filho pode se tornar um grande sucesso e ser melhor que os filhos dos outros. Mas se ele não conseguir, o problema é dele. A utopia neoliberal está estruturada de uma forma tão inteligente que ela não falha. Só os indivíduos falham.

Já em nossa utopia, diz Prashad, o fracasso não é possível. Em uma sociedade socialista, não há fracassados. O problema é que tornou-se fortemente dominante a ideia de que nossa utopia já fracassou com o fim da União Soviética e as dificuldades de outras experiências ditas socialistas.

O outro texto é “Identitarismo enfraquece capacidade política da esquerda”, artigo de Leonardo Avritzer, publicado na Folha. Nele, o autor afirma que um dos maiores problemas da esquerda atual é o identitarismo. Com sua redução do fenômeno colonial ao “homem branco”, diz ele, trata-se de “uma teoria equivocada do presente na qual só o passado tem peso e nenhuma proposta de futuro comum é apresentada”.

As duas elaborações falam sobre a dificuldade da esquerda em se livrar do peso do passado. Seja aquele do socialismo real, seja o do colonialismo. São debates centrais, mas longe de chegarem a sínteses que armem os explorados e oprimidos.

Enquanto isso, o neoliberalismo vai acanhando nossos horizontes e exterminando nosso futuro.

Leia também: O apocalipse na sala de estar

22 de julho de 2024

O protocolo Aníbal e os filhos de Abraão

O Protocolo Aníbal (...) é um procedimento introduzido em 1986 pelas Forças de Defesa de Israel para evitar a captura de soldados israelenses pelas forças inimigas. De acordo com uma versão, o protocolo diz que “o sequestro de soldados deve ser interrompido por todos os meios, mesmo ao preço de atacar, ferir ou destruir as nossas próprias forças”.

O texto acima introduz o verbete da Wikipédia para um dos mais terríveis procedimentos das forças armadas israelenses. O protocolo Aníbal permaneceu em sigilo até 2003, quando o foi revelado por uma investigação do jornal israelense Haaretz.

Vários eventos envolvendo mortes e ferimentos de soldados e até civis israelenses podem ter ocorrido em diversos momentos. Uma das últimas vezes teria sido durante o ataque do Hamas em 7 de outubro de 2023, quando reféns israelenses afirmaram ter sido atacados por helicópteros de seu próprio país.

Em 2014, o jornalista israelense Uri Arad publicou um artigo sobre o protocolo. Segundo ele:

A santidade da vida do indivíduo não é mais importante. Agora, em vez de o governo servir a seus cidadãos, são os cidadãos que são obrigados a pagar com suas vidas para servir aos interesses do governo. O nome disso simplesmente é fascismo.

Deus ordenou a Abraão que sacrificasse seu próprio filho. Talvez, o episódio tenha servido como uma inspiração deturpada e doentia para o protocolo Aníbal. No último momento, o patriarca judeu foi impedido de cometer o terrível ato. Um regime covarde e genocida que sacrifica vidas humanas para manter-se no poder também precisa ser detido. Em defesa da humanidade e de seu próprio povo.

Leia também: Amazon e Google unidas no patrocínio ao genocídio

20 de julho de 2024

Lênin contra cancelamentos

Logo após a Revolução Russa de 1917, um dos debates que tomou conta do partido bolchevique envolvia a necessidade da construção de uma cultura proletária. Uma proposta que pretendia negar radicalmente a “decadente cultura burguesa”. Tudo o que representava aquilo que a revolução havia derrotado deveria ser simplesmente substituído pela “cultura proletária” ou “Proletkult”.

Lênin era frontalmente contrário a essa política e escreveu uma proposta de resolução intitulada “Sobre a Cultura Proletária”. Publicado em 9 de outubro de 1920, um trecho do texto afirmava:

O marxismo ganhou seu significado histórico universal como a ideologia do proletariado revolucionário porque não rejeitou de forma alguma as conquistas mais valiosas da época burguesa, mas, ao contrário, assimilou e reformulou tudo o que era de valor em mais de dois mil anos de desenvolvimento do pensamento e da cultura humanos. Somente o trabalho posterior nessa base e nessa direção, inspirado pela existência prática da ditadura do proletariado como a luta do proletariado contra toda exploração, pode ser considerado como o desenvolvimento de uma cultura verdadeiramente proletária.

A resolução foi aprovada pelo 1º Congresso de Toda a Rússia da Proletkult, realizado em outubro de 1920. Mas essa elaboração acabaria sendo derrotada na década seguinte pela imposição do realismo socialista. Uma concepção grosseira, parte integrante da onda contrarrevolucionária que tomou conta da sociedade soviética.

De qualquer modo, é importante lembrar como Lênin concebia a forma dialética em que o velho e o novo se relacionam. Afinal, se o principal líder de uma ruptura radical como a revolução bolchevique era contra cancelamentos, quem somos nós pra dizer o contrário.

Leia também: Lênin, ocupado demais fazendo a revolução

18 de julho de 2024

O apocalipse na sala de estar

“Os fundamentos míticos do capitalismo” é o título de um artigo muito interessante recentemente publicado por Gil-Manuel Hernández i Martí, professor da Universidade de Valência. O autor relaciona uma série de mitos da tradição ocidental a temas como capitalismo, antropocentrismo e aquecimento global.

Além disso, apresenta o conceito de “capitalismo catabólico”. Catabolismo, diz Martí, refere-se a “mecanismos metabólicos de degradação através dos quais um ser vivo devora a si mesmo”.

Ao canibalizar-se, afirma, “o capitalismo catabólico transforma a escassez, a crise, o desastre e o conflito numa nova esfera de obtenção de lucro. Ou seja, a mercantilização do apocalipse acaba gerando lucrativas expectativas de negócios”.

Parece um pouco complicado. Mas outro conceito talvez possa ajudar. Trata-se do termo “realismo capitalista”, criado por Mark Fisher e descrito por Martí como “uma condição cultural e política em que o capitalismo permeou tão profundamente a sociedade que é percebido como a única forma possível de organizar a vida. Assim, mesmo quando as pessoas reconhecem os problemas e os fracassos do capitalismo, é-lhes difícil imaginar e trabalhar alternativas significativas, devido à hegemonia esmagadora do pensamento capitalista”.

Em outras palavras, o capitalismo matou o futuro, enquanto vai destruindo o presente. Para não falar na transformação do passado em uma maçaroca de episódios soltos e isolados. Tudo isso agravado pelo caos informacional que a extrema direita vem colocando a serviço do sistema que afirma combater.

Talvez, uma imagem que consiga traduzir toda essa confusão seja a que ilustra esta pílula. Afinal, nada mais esclarecedor dos tempos atuais que colocar à venda a explosão de uma bomba atômica como objeto de decoração.  

Leia também: O apocalipse é lucrativo demais para ser adiado

17 de julho de 2024

Sistemas de saúde e planejamento democrático

Em 1948, o primeiro sistema de saúde universal, público e gratuito do mundo entrou em vigor no Reino Unido. Era o Sistema Nacional de Saúde. NHS, na sigla em inglês.

Em seu livro “The People's Republic of Walmart”, Leigh Phillips e Michael Rozworski consideram o NHS uma prova de que um “planejamento democrático” pode coexistir com o capitalismo.

Mas para isso pesaram vários fatores. O papel do Estado tornou-se fundamental durante a guerra. A classe trabalhadora britânica emergiu do conflito fortalecida. Seus votos garantiram a eleição de um governo trabalhista que aproveitou a experiência das clínicas geridas pelos próprios trabalhadores em todo o Reino Unido para criar o novo sistema assistencial.

Quando a crise econômica dos anos 1970 colocou os trabalhadores na defensiva, começaram os retrocessos. A partir do governo Thatcher, o sistema passou a ser desmontado com a adoção de mecanismos de mercado em seu funcionamento.

Mas coube a um trabalhista completar o serviço. No final dos anos 1990, Tony Blair introduziu em definitivo a lógica mercantil no sistema. Atualmente, ele funciona a duras penas em meio a terceirizações e consórcios com clínicas privadas.

O NHS demonstrou que a assistência médica pode ser prestada de acordo com as necessidades humanas, no lugar dos ganhos privados. O SUS faz o mesmo e também foi produto de uma conjuntura marcada pelo avanço das lutas populares.

Nossos autores vêm essas experiências como “um embrião do novo mundo que se desenvolve dentro dos limites do nosso velho e cansado mundo”. Mas em sua incansável defesa dos interesses da classe dominante, o Estado aproveita qualquer oportunidade para sufocá-las.

Leia também: Inovação tecnológica e planejamento estatal

16 de julho de 2024

Inovação tecnológica e planejamento estatal

Inovações não parecem algo que possa ser impulsionado pelo Estado. Mas coube a Mariana Mazzucato mostrar que quase todos os principais avanços tecnológicos atuais são produto de planejamento estatal. Em seu livro “O Estado Empreendedor”, a economista ítalo-americana pergunta: “Quantas pessoas sabem que o algoritmo que levou ao sucesso do Google foi financiado por uma doação da National Science Foundation, do setor público estadunidense?”.

Outro exemplo é a Agência de Projetos de Pesquisa Avançada de Defesa (DARPA, na sigla em inglês), criada em 1958 pelos estadunidenses, em resposta ao estrondoso sucesso do lançamento do Sputnik pelos soviéticos, no ano anterior.

A DARPA financiou a dispendiosa fabricação de protótipos de chips de computador na Universidade do Sul da Califórnia ao longo das décadas de 1960 e de 1970.

Mazzucato lista algumas tecnologias cruciais que tornam os smartphones “inteligentes”: microprocessadores, chips de memória, discos rígidos, monitores de cristal líquido, baterias de lítio, a internete, protocolos HTTP e HTML, o GPS, reconhecimento de voz e telas sensíveis ao toque. Cada uma delas, diz ela, apoiada pelo setor público em fases-chave de seu desenvolvimento.

O relato acima está no livro “The People's Republic of Walmart”, Leigh Phillips e Michael Rozworski e mostra como grande parte dessas inovações nada tinha a ver com incentivos de mercado. Foi produto de decisões estratégicas do Estado tomadas em meio a ferozes disputas imperialistas. São evidências de que a inovação impulsionada pela concorrência capitalista é uma falácia.

Por outro lado, os interesses a que serve o planejamento estatal atualmente o tornam incapaz de assegurar bem-estar para a maioria. Este será o tema da próxima pílula.

Leia também: Bancos Centrais no comando

15 de julho de 2024

Decolonialismo de extrema direita

O título acima é de um artigo publicado pela historiadora britânica Miri Davidson. O texto está em inglês, mas pode ser lido por tradução automática.

Não deixa de ser surpreendente vincular a extrema direita a um movimento que combate as tragédias causadas pela dominação violenta de populações inteiras por parte das potências coloniais. Um campo de conhecimento e de luta surgido graças ao empenho militante de forças da esquerda.

Em seu texto, a historiadora cita o caso da extrema direita francesa, que considera a sociedade europeia como vítima de uma “colonização de imigrantes árabes e africanos” que estaria substituindo os “nativos” brancos e cristãos.

Essas teorias também ganharam uma multidão de adeptos nos Estados Unidos. Principalmente, entre os republicanos, com Trump propondo medidas de deportação em massa, caso seja reeleito em novembro.

Enquanto isso, em Israel, Netanyahu usa o genocídio para "descolonizar" os territórios ocupados há milênios por palestinos, defendendo um Estado em que judeus sejam considerados legítimos habitantes e os árabes, invasores.

Mas este processo não é tão recente. Não à toa, o Partido Nazista se chamava Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães. Agora, como antes, a ideia é tirar proveito dos descontentamentos, ressentimentos e revoltas populares diante do funcionamento socialmente destrutivo e contraditório do sistema capitalista. Virar do avesso as manifestações, expressões e palavras-de-ordem antissistema para transformá-las em armas do sistema.

Essa tática, porém, só se torna realmente vitoriosa graças às frustrações deixadas pelas derrotas da esquerda. Em especial, dos setores que ocupam postos governamentais e parlamentares empenhados em se credenciar como salvadores do sistema.

Não existe luta anticolonial de direita. Muito menos, anticapitalismo capitalista.

Leia também: A origem fascista do nazismo de esquerda

11 de julho de 2024

Lênin, ocupado demais fazendo a revolução

No 100º ano da morte de Lênin, é importante destacar uma de suas obras mais importantes: “O Estado e a Revolução”.

Em seu livro “Lênin: Responding to Catastrophe, Forging Revolution“, Paul Le Blanc lembra que a obra foi escrita a partir de algumas conclusões de Marx e Engels sobre a experiência da Comuna de Paris. A mais importante delas, a de que a dominação política pela classe trabalhadora exigiria uma nova máquina estatal radicalmente democratizada.

No livro, Lênin diz:

A partir do momento em que todos os membros da sociedade, ou pelo menos sua grande maioria, aprenda a administrar eles próprios o Estado, tomem este trabalho nas suas mãos, organizem o controle sobre a insignificante minoria capitalista, sobre a pequena nobreza que deseja preservar seus privilégios e sobre os trabalhadores que foram completamente corrompidos pelo capitalismo – a partir deste momento, a necessidade de qualquer tipo de governo começa a desaparecer completamente.

Além disso, o líder bolchevique afirma: “Para Marx, o proletariado precisa apenas de um Estado que esteja constituído de tal forma que comece a definhar imediatamente”. Infelizmente, até hoje, isso nunca se concretizou.

Mas Lênin jamais concluiu a segunda parte de “O Estado e a Revolução”. Em um posfácio à obra, escrito em novembro de 1917, logo depois da vitória dos sovietes, ele explica o motivo:

A redação da segunda parte deste panfleto (...) provavelmente terá de ser adiada por muito tempo. É mais agradável e útil viver a “experiência da revolução” do que escrever sobre ela.

Quanto a isso, Lênin tinha toda razão. Muito melhor que teorizar sobre revoluções, é realizá-las.

Leia também: Lênin, o revolucionário que sabia recuar

Bancos Centrais no comando

Em seu livro “The People's Republic of Walmart”, Leigh Phillips e Michael Rozworski lembram que os neoliberais consideram qualquer tentativa de planejamento estatal da economia como uma forma de intervenção completamente ineficiente.

Mas, dizem os autores, o capitalismo também tem algo semelhante a um sistema de planejamento econômico centralizado. É o sistema financeiro. Phillips e Rozworski citam as palavras do economista J. W. Mason:

Os excedentes econômicos são alocados pelos bancos e outras instituições financeiras, cujas atividades são coordenadas por seus controladores, não pelos mercados… Os bancos são os equivalentes privados do planejamento central da era soviética. Suas decisões sobre empréstimos determinam quais novos projetos receberão uma parte dos recursos da sociedade.

Os bancos decidem, por exemplo, sobre empréstimos para a construção de uma nova fábrica, financiamentos imobiliários ou empréstimos estudantis. Além, claro, de estabelecer as condições em que esses débitos serão quitados. Cada empréstimo é uma abstração que mascara algo concreto como ocupações para trabalhadores, moradias para a população ou cursos de graduação.

E adivinhem o que está no centro de qualquer sistema financeiro contemporâneo? O Banco Central, o banco dos banqueiros. A ironia aqui é que se trata de uma agência governamental que só presta contas ao mercado, não recebe um voto popular, mas intervém pesadamente na economia. Quanto a isso, os discursos da elite contra intervenções estatais emudecem.

É um sistema em grande escala, tecnocrático e sistêmico. Mas não tem nada de conspiratório. Seu domínio decorre da implacável lógica capitalista. Mas, claro, qualquer ameaça a suas determinações poderá enfrentar a truculência repressiva do Estado. Outra intervenção estatal muito bem recebida pela classe dominante.

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9 de julho de 2024

Amazon e Google unidas no patrocínio ao genocídio

Em 04/07, a Amazon completou 30 anos de fundação. Terceira maior empregadora do mundo, grande parte de sua mão de obra é precarizada e sofre com terríveis condições de trabalho. Em seus galpões gigantes, o calor e o frio podem ser insuportáveis, dependendo da época do ano. As jornadas superiores a 10 horas têm intervalos que não ultrapassam os 30 minutos para refeições. O ritmo alucinante das tarefas é ditado por algoritmos, máquinas e robôs. Em muitas de suas unidades, os trabalhadores percorrem dezenas de quilômetros por dia sem parar.

Toda essa exploração explica a maior parte do sucesso da gigante que surgiu como serviço de entregas. Mas os créditos costumam ser atribuídos à suposta genialidade do criador da empresa, Jeff Bezos. 

Além das entregas, a empresa oferece serviços de armazenamento de dados, produção de filmes e séries, além de aplicativos de leitura e de assistentes virtuais. Mais recentemente, porém, surgiu um item vergonhoso no catálogo da Amazon. 

Em 26 de junho passado, seis manifestantes interromperam um evento promovido pela empresa, em Washington. Eles denunciavam um projeto chamado Nimbus, que envolve computação em nuvem e inteligência artificial para uso das Forças Armadas israelenses. "Sua tecnologia está patrocinando o genocídio", gritou um dos manifestantes, segurando a bandeira da Palestina. A iniciativa também envolve a Google e conta com apoio das forças armadas estadunidenses.

Amazon e Google são fortes concorrentes em algumas áreas de tecnologia de ponta. Mas quando se trata de auxiliar o aparelho estatal e a máquina bélica do imperialismo sempre é possível combinar esforços e lucrar juntas com repressão e genocídio.

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8 de julho de 2024

Derrotas da direita que a direita comemora

A vitória dos trabalhistas não é motivo para comemorar. Bem, é uma boa notícia que os conservadores de direita tenham perdido, mas é uma má notícia que a direita e o Partido Trabalhista tenham vencido. Um partido neoliberal.

As palavras acima são de um recente artigo de Ken Loach, combativo cineasta britânico. Referem-se ao recente resultado das eleições britânicas, que consagrou o líder trabalhista Keir Starmer. Segundo Loach, “um político de direita, intransigente e orientado para o livre mercado”.

Loach lembra a situação de outros países também. Na França, Macron é considerado de centro, mas é de direita, diz ele. As medidas de austeridade fiscal e o alinhamento ao imperialismo de seu governo pavimentaram o caminho para o crescimento da extrema direita francesa.

O mesmo vale para os Estados Unidos, onde há dois portadores de demências distintas disputando o comando de um sistema político e social cheio de patologias como o racismo, o completo abandono dos mais pobres e a guerra a povos do mundo inteiro.

A verdade é que o neoliberalismo colocou os governos das principais economias do mundo em piloto automático. Mesmo os que são eleitos contra seu ideário, dificilmente conseguem deter a continuidade de suas políticas.

No Brasil, nossa barreira contra o bolsonarismo fascista é frágil. Sólidas, mesmo, somente as fundações do neoliberalismo. No atual governo elas estão disfarçadas de “arcabouço fiscal” e podem tornar o terreno social e político ideal para novas ofensivas ultraconservadoras.

Os neoliberais puro-sangue continuam preferindo a eficácia destrutiva do fascismo. O cerco ao governo petista vem se fechando rapidamente. Nada a comemorar por aqui também.

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5 de julho de 2024

República Popular da Amazon

Friedrich Hayek é considerado um guru do neoliberalismo. Para ele, nenhum planejamento estatal da economia de mercado é possível devido à enorme quantidade e complexidade de suas variáveis. O único fator regulador possível seriam os preços em livre concorrência.  

Pois bem, segundo Leigh Phillips e Michael Rozworski, em seu livro “The People's Republic of Walmart”, a era do “big data” está provando que Hayek estava errado. Principalmente quando se olha para o que uma Amazon faz com a massa caótica de dados produzida por suas operações de venda e entrega.

Segundo os autores, a Amazon não rastreia apenas transações de mercado. Além daquilo que você compra, a empresa coleta dados sobre como você navega, os caminhos que percorre entre os itens, quanto tempo permanece em cada página, o que coloca e tira do carrinho de compras e muito mais.

Os métodos de planejamento da Amazon não são soluções completas para problemas que jamais seriam totalmente resolvidos. São simplesmente as melhores aproximações. Não é uma luta para derrotar o caos, mas para torná-lo manejável. A empresa sabe que isso é melhor que esperar que o jogo dos preços resolva as coisas.

A Amazon desenvolveu ferramentas e métodos que poderiam ser radicalmente reconfigurados para serem utilizados no planejamento das coisas públicas. Hayek jamais imaginou as vastas quantidades de dados que atualmente podem ser armazenadas e manipuladas sem precisar participar das transações do mercado.

É mais um exemplo do que Marx dizia sobre a necessidade de libertar forças produtivas com enorme potencial de emancipação social das amarras impostas por relações de produção baseadas na opressão e exploração humanas.   

Leia também: A mão pesada do planejamento nas corporações capitalistas

4 de julho de 2024

A mão pesada do planejamento nas corporações capitalistas

Em seu livro “The People's Republic of Walmart”, Leigh Phillips e Michael Rozworski demonstram que praticamente todos os grandes monopólios capitalistas adotam a planificação econômica em seu modo de organização. Algo parecido com o que faziam os soviéticos, por exemplo.

Mas uma grande corporação tentou fazer diferente. Entre 2010 e 2017, quase 2.300 lojas da Sears fecharam. O motivo? A desastrosa decisão do presidente da varejista de desagregar suas divisões em unidades concorrentes, criando um mercado interno.

A ideia era usar a Sears como uma grande experiência para mostrar que a “mão invisível” da livre concorrência superaria o planejamento central típico de qualquer empresa. O problema é que as diferentes unidades caíram em uma selvagem competição entre si, pouco se importando com a empresa como um todo.

O fato é que mesmo os mais fervorosos defensores do mercado livre preferem o planejamento à liberdade de mercado quando se trata da gestão de grandes corporações privadas. Mas trata-se de um planejamento autoritário. Tudo é definido rigidamente nas organizações capitalistas, desde a distribuição do dinheiro entre os departamentos até o tempo exato necessário para montar um hambúrguer. E em todos os casos, o planejamento determina qual trabalhador individual fará qual tarefa, quando, onde e como.

Os enormes lucros dessas empresas mostram que o planejamento econômico também pode funcionar para a sociedade como um todo, desde que voltado para o bem comum, aproveitando os avanços da cibernética e com os meios de produção sob controle dos trabalhadores.

O planejamento estatal é incompatível com o capitalismo, não com a administração socializada das necessidades, capacidades e potencialidades da sociedade humana.

Leia também: A República Popular do Walmart

3 de julho de 2024

As abstrações criminosas da austeridade neoliberal

Sob o capitalismo, as coisas tendem a se tornar abstratas. O trabalho humano, que produz coisas úteis e concretas, se transforma em abstração mercadológica. Mero valor de troca descarnado.

Aposentadoria por tempo de contribuição, aposentadoria especial, por idade rural, por idade urbana, por incapacidade permanente. Auxílio-doença, auxílio-acidente, salário-maternidade, pensão por morte e benefício de prestação continuada.

A relação acima elenca alguns dos benefícios pagos a mais de 39 milhões de segurados do INSS. Pessoas concretas, cuja força de trabalho é superexplorada pelas minorias que controlam os meios de produção do País.

Mas tudo isso é abstraído quando jornalistas, governantes e economistas a serviço do capital reclamam que no primeiro quadrimestre deste ano, os gastos previdenciários somaram R$ 80,7 bilhões, aumentando 17% em relação ao mesmo período do ano passado. Por outro lado, esses mesmos capachos do controle das contas públicas jamais dão a mesma ênfase aos R$ 116 bilhões que o governo federal pagou de juros da dívida pública em igual período. Só de juros! Nenhum centavo serviu para abater o principal do débito.

Eles também alertam para o fato de que o déficit da previdência atingiu R$ 306 bilhões em 2023, mas nada dizem sobre a dívida pública federal ter ultrapassado R$ 6,5 trilhões no mesmo ano.

Fato concreto: despesas previdenciárias se destinam a pessoas que trabalham duro, ganham pouco e têm seus direitos constantemente suprimidos. Outro fato concreto: a dívida pública alimenta uma minúscula elite que parasita os recursos públicos.

Essa dura realidade é ocultada pelas abstrações criminosas impostas pelos carrascos da austeridade neoliberal, encarniçados em seu empenho para cortar ainda mais direitos sociais.

Leia também: Dobrando a aposta neoliberal no fascismo

2 de julho de 2024

Festas juninas, festejos indígenas

O mês de junho recém partiu, levando embora os festejos de arraial. Mas como as brasas das fogueiras continuam quentes, ainda há tempo de trazer uma informação que, talvez, seja desconhecida por muita gente. As festas juninas têm a ver mais com tradições indígenas do que com costumes europeus.

É o que mostra recente reportagem do portal G1, segundo a qual:

Antes da chegada dos colonizadores, o mês de junho já era especial para indígenas que viviam pelo Nordeste. Por isso, diversos elementos do São João nordestino são associados à ancestralidade originária.

Os povos Cariri, Tarairiú e Tupi, por exemplo, agradeciam os frutos da colheita com festejos organizados, em geral, por volta de junho.

Mas para os cariris, assim como para os tarairiús, a festa também comemorava o início de um novo ano, marcado pelo aparecimento das estrelas plêiades. Era a festa de Batí ou festa da “Estrela”, no idioma cariri.

Claro que os colonizadores fizeram tudo para suprimir essas tradições locais. Como, de resto, aconteceu com muitas outras características culturais fundamentais dos povos originários.

Mas na própria Europa, houve um processo parecido em relação às tradições populares consideradas pagãs, incluindo as próprias festas juninas de lá. A reportagem cita o professor da Universidade Federal da Paraíba, Ângelo Antônio:

A gente sabe que ali nos primeiros séculos do cristianismo houve uma acoplagem desse calendário pagão, que estava muito ligado aos ritos de passagem das estações, das colheitas, rituais de fertilidades, e que vão sendo de uma maneira ou de outra reapropriados pela lógica católica.

E assim caminha a chamada civilização. Atropelando e apagando importantes tradições populares.

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1 de julho de 2024

Plano Real: democracia tutelada e fascismo

Os 30 anos do Plano Real estão sendo comemorados com muita festa e unanimidade pelas grandes mídias. Segundo os promotores dessas celebrações, o único objetivo da política econômica é controlar a inflação, mesmo que isso implique manter uma das piores concentrações de riqueza do planeta.

Um bom texto para entender esse fenômeno é “Por outra história do Real”, publicado por Luiz Filgueiras no portal Outras Palavras. Mas lembremos rapidamente a que finalidades realmente serviu o surgimento do Real.

Na época da inflação galopante da década de 1980, as lutas sindicais estavam no centro do cenário social, com greves grandes e frequentes. Os trabalhadores se envolviam em conflitos diretos com um adversário visível, os patrões.

Quando a inflação diminuiu drasticamente, em meados dos anos 90, as greves também se reduziram e a defesa de conquistas e direitos contra a lógica dos mercados mudou para a arena eleitoral.

Logo a seguir, impôs-se a austeridade fiscal, que levou a vida de milhões a depender de decisões de entidades multilaterais, grandes corporações financeiras e outras instituições semelhantes. Todas situadas em lugares isolados da experiência cotidiana e totalmente impenetráveis à pressão popular.

A democracia foi definitivamente dissociada da economia. O mandato dos bancos centrais tornou-se mais importante que os dos governantes e parlamentares. A já limitada vontade popular expressa pelo voto quase completamente tutelada pelos dogmas do neoliberalismo.

Era a mais recente metamorfose de uma democracia que sempre foi de fachada. Uma dominação secular autoritária que continua a convocar as feras do fascismo para defendê-la, cada vez que suas promessas de prosperidade se revelam falsas e despertam a revolta popular.

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