A
violência seria a grande responsável pelos raros períodos de diminuição da
desigualdade social na história humana.
Esta
é a hipótese que o historiador austríaco Walter Scheidel defende em seu livro
“A Grande Niveladora: Violência e a história da desigualdade da Idade da Pedra
ao século 21”, ainda sem tradução para o português.
Como
se vê pelo título, trata-se de um levantamento histórico tão extenso quanto
ousado. Mas muitas observações e conclusões convidam a refletir sobre certos
fenômenos sociais e históricos.
É
o caso do desenvolvimento das armas como importante fator na diminuição da
truculência social entre os mais antigos agrupamentos humanos.
O
historiador admite que alterações fisiológicas e mentais sofridas por nossa
espécie teriam diminuído o peso da agressividade egoísta frente à colaboração
solidária. Mas considera mais importante o papel de inovações na aplicação da
violência.
É
o caso das armas, cujo surgimento teria permitido aos membros mais fracos das
primeiras comunidades humanas imporem-se aos mais fortes.
No
lugar da luta corpo a corpo, em que o tamanho físico é decisivo, o combate à
distância por meio de armas como as atiradeiras. Não há melhor exemplo que o de
Davi abatendo Golias.
Outro
elemento importante foi a elaboração de estratégias bélicas pensadas e executadas
coletivamente pelos membros de menor envergadura para derrotar indivíduos
grandes, mas isolados.
Eram
os inícios da política como ciência. Antes como agora, muito relacionada à
violência.
Mas
cabe uma advertência: maior nivelamento social nem sempre é sinônimo de
bem-estar para todos. Também pode significar colapso civilizacional generalizado.
A
guerra como fator de igualdade social
Segundo Scheidel, o
papel da guerra é mais decisivo nas sociedades modernas devido ao recrutamento
em massa. Um fenômeno histórico novo.
O alistamento
generalizado leva grande parte da população a sacrificar suas vidas. Diante
disso, os setores dominantes são obrigados a pagar mais impostos e aceitar
políticas governamentais mais distributivas.
Mas outra das
consequências das guerras modernas é a democratização. Parece estranho, mas
Sheidel cita Max Weber:
A
disciplina militar significou o triunfo da democracia, porque a comunidade
desejava e foi compelida a garantir a cooperação das massas não-aristocráticas
e, portanto, colocar em suas mãos armas e, juntamente com o poder das armas, é
preciso estender direitos políticos. (História Geral da Economia - 1923)
De fato, a maioria das
guerras modernas ocorre devido a choques surgidos entre setores da própria
classe dominante, seja em nível nacional ou mundial. Para resolver o conflito,
as facções ou governos envolvidos utilizam a população como bucha de canhão.
Mas ao fazer isso, são obrigados a armá-la.
Terminada a guerra, é
preciso desarmar os dominados antes que acabem se voltando contra aqueles que
os enviaram para a morte. A solução passa por um afrouxamento da dominação
política e melhores condições de vida.
Resumindo
grosseiramente, justiça social sob o capitalismo dificilmente acontece sem o
sacrifício de muitas vidas e o dedo popular no gatilho.
O
nivelamento social precedido pela barbárie
O Estado de Bem-Estar
Social na Europa do Pós-Guerra seria um exemplo claro dos efeitos de nivelação
social provocados pela guerra.
A Segunda Guerra
exigiu imensos sacrifícios humanos e radicalizou as contradições sociais em
cada país em que ocorreu. Também fez surgir a ameaça soviética ao domínio
imperialista ocidental. Diante disso, prevaleceu o princípio da entrega de
alguns anéis para salvar os dedos.
Mas o caso do Japão é
outro exemplo importante. Terminada a guerra, o país foi ocupado por forças
estadunidenses. Entre as medidas impostas pelos invasores, reforma agrária,
liberdade de organização sindical, direito de greve, desconcentração do capital
em poder da burguesia tradicional japonesa e impostos sobre os mais ricos.
Em mensagem pelo Ano
Novo de 1948, o chefe das tropas invasoras, general MacArthur, declarou que sua
missão no Japão era desmontar um sistema controlado “por uma minoria de
famílias feudais e explorado em seu benefício exclusivo”.
Por trás das belas
palavras e das medidas aparentemente louváveis da ocupação estadunidense, um
grande objetivo: quebrar o sistema econômico que permitiu ao Japão montar sua
máquina de guerra e impedir que o país voltasse a ameaçar os interesses
ianques.
O autor parece acertar
ao apontar a guerra como um importante fator de diminuição das injustiças
sociais no Japão. Mas a um custo em vidas extremamente elevado, incluindo um
covarde bombardeio nuclear.
Scheidel não chega a
afirmar isso, mas o caso japonês é mais uma demonstração de que qualquer
diminuição da desigualdade social sob o capitalismo costuma ser precedida pela
mais terrível barbárie.
As
revoluções transformadoras e o achatamento social
A violência envolvida
nas revoluções transformadoras é outro fenômeno histórico capaz de diminuir
radicalmente as desigualdades sociais, afirma Scheidel.
Mas essas rupturas
radicais estariam restritas à modernidade. Mais especificamente, ao século 20 e
às revoluções Russa e Chinesa. Segundo o historiador, ambas levaram a uma
redução das desigualdades mais parecida com um “achatamento social”.
Um nivelamento por
baixo, em que as necessidades mais básicas foram atendidas, mas ficaram muito
distante da elevação generalizada do bem-estar imaginada pelos líderes dessas
revoluções e dos socialistas em geral.
Tanto num caso como no
outro, medidas adotadas de cima para baixo, forçaram uma coletivização da
economia nacional que custou milhões de vidas e inviabilizaram a democratização
da produção e da política.
Mas essas medidas
somente foram adotadas em resposta aos ataques e pressões imperialistas, que
sufocaram as duas tentativas até matar sua origem revolucionária.
O capitalismo jamais
deixou de imperar nas duas sociedades. Nem a União Soviética nem a República
Popular da China conseguiram superar o principal instrumento de exploração
capitalista, o trabalho assalariado.
Para que o nivelamento
social se transformasse em verdadeira justiça social seria preciso que
revoluções socialistas ocorressem também nas economias mais industrializadas.
Seria a revolução
permanente defendida por Trotsky, cujo caráter violento diminuiria conforme as
burguesias nacionais fossem derrubadas.
A violência que acabou
imperando nas duas experiências foi produto de uma regressão capitalista
imposta por fora e assumida por dentro, não da implantação do socialismo.
Trata-se de novas vitórias
da barbárie capitalista, a nos obrigar cada vez mais, e de novo, a escolher
entre ela e o socialismo.
O
quinto cavaleiro do apocalipse nivelador
Scheidel afirma que a violência enquanto fator de nivelação social se manifestaria na história humana como
quatro cavaleiros do apocalipse: guerras, epidemias, colapso estatal e
revoluções.
Mas no final da obra,
o autor afirma que esses quatro cavaleiros já não têm tanto poder.
No mundo atual, as
guerras, além de estarem reduzidas a conflitos regionais, tornaram-se mais
robotizadas e a cargo de exércitos menores, compostos por mercenários. Dependem
muito menos tanto do alistamento em massa.
As epidemias
dificilmente causariam o efeito devastador demonstrado antes da modernidade. Os
colapsos dos Estados também teriam ficado no passado mais distante. E,
finalmente, as revoluções estariam fora de nosso horizonte histórico.
O problema é que o
autor não apresenta qualquer evidência de que meios menos traumáticos possam
tomar o lugar desses episódios niveladores.
Por outro lado, jamais
na história humana a desigualdade social chegou aos extremos atuais. Em cifras
absolutas pode haver menos violência, miséria, mortes e doenças. Mas em termos
relativos, nunca tão poucos detiveram o controle de tanta riqueza. Nunca tantos
tiveram seu destino decidido por tão poucos.
Tudo isso poderia ser
apenas o fracasso de um projeto civilizacional baseado na justiça social
universal. Mas também é resultado de uma determinada relação que estabelecemos
com o restante da natureza.
É aí que surge um
quinto cavaleiro do apocalipse. Um personagem que Scheidel não cita em seu
livro. É o colapso ambiental. Sua montaria vem a todo galope, açoitada pela
vocação destruidora e suicida do capitalismo. E em seu rastro, pode não restar nada
mais do que terra arrasada. Nivelada.
Violência na história: a parteira e o carrasco
Marx dizia que a
violência é “a parteira da história”. A afirmação faz todo sentido desde que
feitas algumas considerações.
Nascimentos podem
ocorrer sem parteiras, mas são impossíveis sem a mãe. E nesse caso o papel cabe
à espécie humana, destinada a parir sua própria história. Além disso, fazer
história para Marx é deixar para trás a pré-história da exploração e opressão
das grandes maiorias pelas minorias. É fazer a espécie se reconhecer como digna
de si mesma.
A igualdade social a
que Sheidel se refere manifestou-se, geralmente, como colapsos sociais que
resultaram de acontecimentos que fugiram ao controle humano: guerras, doenças,
barbárie política.
Somente na
modernidade, a busca pela igualdade social ganhou caráter consciente e foi
entendido como direito a ser estendido ao conjunto da espécie. E apenas no
século 20, essa busca foi assumida pelos únicos setores capazes de cumprir essa
tarefa: os explorados, responsáveis pela subsistência do conjunto da
humanidade, e suas revoluções transformadoras.
A maioria das
revoluções comunistas foram iniciadas quase sem violência. Foi a reação
conservadora a elas que provocou banhos de sangue e pariu ditaduras políticas.
Foram tentativas de elevar a existência humana acima do rio bárbaro da história
das sociedades de classes, logo afogadas.
Infelizmente, a
parteira da história continua sendo importante porque à beira do leito materno
há um carrasco.
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