Doses maiores

31 de agosto de 2022

Por uma ecologia da organização política

Rodrigo Nunes encerra seu livro “Do transe à vertigem” preocupado com a questão ecológica. Segundo ele, daqui para frente:

...só pode haver combate à pobreza que seja também parte da construção de outro sistema global, só pode haver luta contra a fome que dê passos na transição para outro regime energético, econômico e social.

Mas a ecologia também serve como metáfora para outra grande preocupação do autor. São as questões organizativas da esquerda. Mais especificamente, aquele que ele considera ser “um trauma que atravessa a história da esquerda desde o século 20”. Qual seja, “o medo de que a organização de que se necessita para mudar o mundo seja também aquilo que pode nos impedir de fazê-lo”.

Obviamente, ele está se referindo às contradições causadas pelo modelo de partido rígido e hierarquizado adotado por grande parte do movimento socialista no último século e meio. Contradições que se tornaram mais agudas onde a esquerda tornou-se governo.

Mas, para Nunes, é possível explorar essas contradições de modo que a esquerda deixe de “conceber sua unidade em termos de homogeneidade e centralização de comando” e passe a compreendê-la “em termos ecológicos, como uma forma de cooperação que não exclui a diferença, o dissenso e a competição”.

Nas preocupações acima, o autor antecipa brevemente a proposta principal de seu livro seguinte. Uma teoria ecológica da organização política dos de baixo como resposta à ameaça de um apocalipse ambiental provocado pelo capitalismo. Estes são os temas centrais de "Nem vertical nem horizontal", obra mais recente de Nunes, que, em breve, também comentaremos aqui.

Leia também: Respostas moderadas para tempos extremados

30 de agosto de 2022

Nossas contribuições para o emburrecimento geral

É costume dizer que um dos principais efeitos do fascismo é o emburrecimento das sociedades nos quais ele se fortalece. Conspirações absurdas, dúvidas sobre fatos científicos e históricos comprovados, polêmicas intermináveis que envolvem somente preconceitos e crendices. Essas coisas tornam o debate público tóxico e inútil.  

Mas este fenômeno somente ganha força quando a esquerda abandona a disputa da hegemonia em um terreno fundamental, o do senso comum. Esta é uma preocupação presente, por exemplo, no trabalho da socióloga Esther Solano.

Professora da Unifesp, Ester vem pesquisando há anos o universo do “bolsonarismo popular moderado”. Ou seja, das pessoas de menor renda que votaram em Bolsonaro sem se identificar com suas posições mais extremas. Em recente entrevista concedida ao podcast  “Ilustríssima Conversa”, ela fez a seguinte afirmação:

A esquerda faz bem em lutar, por exemplo, pelas famílias LGBT e monoparentais. Elas [eleitoras moderadas de Bolsonaro] entendem e reconhecem a importância disso, mas dizem: "Parece que a esquerda só luta por esse tipo de família. A gente também queria a esquerda lutando e visibilizando a nossa família tradicional. No final das contas, nós também temos direito a ter uma dignidade familiar.

Aí, já não se trata mais de lidar com fanáticos proferindo absurdos, mas da necessidade de unir as lutas por dignidade para todos os setores explorados e oprimidos. Assumir que alguns desses setores já deixaram tais lutas para trás ou que são conservadores irrecuperáveis acaba deixando lacunas no senso comum que são aproveitadas pelos fascistas e reacionários em geral.

Em casos como esses, nós também estamos contribuindo para o emburrecimento geral.

Leia também: Bolhas ideológicas e disputa de hegemonia

29 de agosto de 2022

1822: independência às custas da escravidão

A Revolução Pernambucana de 1817 foi o último movimento separatista do período colonial. Defendia as liberdades republicanas, mas seus líderes fizeram questão de divulgar um documento no qual garantiam aos grandes proprietários rurais: “Patriotas! Vossas propriedades serão sagradas”, referindo-se aos escravos.

No terceiro volume da trilogia “Escravidão”, Laurentino Gomes cita um trecho do documento conhecido como “Rascunho de dom Pedro sobre a escravidão, 1823”, escrito pelo responsável pela libertação do país do domínio português.

“Ninguém ignora que o cancro que rói o Brasil é a escravatura, é mister extingui-la”, dizia Pedro I. Segundo ele, a escravidão distorcia o caráter brasileiro porque tornou nossos “corações cruéis e inconstitucionais e amigos do despotismo”. Observava também que “todo senhor de escravo desde pequeno começa a olhar ao seu semelhante com desprezo”

Mas, afirma o autor:

...o Brasil estava de tal forma viciado e dependente da mão de obra escrava que, na prática, sua abolição na Independência revelou-se impraticável. Defendida em 1823 por José Bonifácio e pelo próprio dom Pedro, ela só viria 65 anos mais tarde, já no finalzinho do século.

O fato é que os lucros do negócio escravista eram astronômicos. Em 1810, diz Gomes, um escravo comprado em Luanda por 70 mil réis, era revendido em Minas Gerais, por até 240 mil réis, ou três vezes e meia o preço pago por ele na África. Em 1812, metade dos trinta maiores comerciantes do Rio de Janeiro eram traficantes de escravos.

É assim que a emancipação em relação ao jugo português só valeu para uma pequena minoria branca, às custas, principalmente, da manutenção do trabalho escravo.

Leia também: Escravocratas de alto a baixo

26 de agosto de 2022

As versões sutis e discretas do fascismo

Em seu livro “Labirintos do Fascismo”, João Bernardo afirma que o fascismo só venceu onde o movimento operário já estava derrotado por suas próprias contradições internas. Mas se esta era uma condição necessária, nem por isso seria suficiente.

Outra condição fundamental para o crescimento do fascismo, diz ele, reside em determinações econômicas. Nos países onde o capitalismo está mais avançado, a forma de exploração acontece pela mais-valia relativa. Ou seja, o trabalho é explorado principalmente pelo aumento da produtividade.

Já nos países onde a industrialização é menor impera a mais-valia absoluta, em que a exploração se dá pelo aumento do volume de trabalho. Por exemplo, pela ampliação da jornada de trabalho.

Desse modo, diz Bernardo, o trabalho de um operário dos países industrializados equivale ao esforço de vários trabalhadores de países predominantemente agrícolas. Portanto, a exploração bruta tem que ser muito maior. E quanto mais brutalidade, mais agudas as contradições de classe. Mais violento tende a ser o sistema de dominação.

Seria por isso que o fascismo, a mais truculenta das formas de dominação, jamais se estabeleceu nos países onde a mais-valia relativa norteava o crescimento econômico. Casos de Estados Unidos, Inglaterra e França, em meados do século passado.

Nesses lugares, esse tipo de exploração levou o capitalismo a incorporar os mecanismos do totalitarismo, sem precisar alterar substancialmente as instituições da democracia representativa.

Para esse tipo de sociedade, conclui Bernardo, o fascismo teria se mostrado desnecessário porque “a evolução da democracia capitalista permitiu-lhe alcançar de um modo completamente diferente - discreto e sutil - alguns dos objetivos do fascismo”.

Faz sentido, mas o debate segue aberto.

Leia também: Os intermináveis labirintos do fascismo.

25 de agosto de 2022

Sementes que brotam, tratores que queimam

Eles vestem verde e carregam armas. Andam pela floresta queimando coisas. Estão furiosos com a morte de seus companheiros, mas buscam serenidade no exemplo de bravura dos que tombaram.

São dezenas e carregam espingardas, pistolas, facões, arcos e flechas. São os Guardiões da Floresta. Seu território é o Arariboia. Fica no Maranhão, na zona de transição entre o Cerrado e a Amazônia. Dois dos biomas mais destruídos pela cobiça e truculência da poder econômico.

O grupo tem dez anos, o que mostra que a omissão do Estado é antiga. Em tempo de Bolsonaro, a omissão transformou-se em ação cúmplice.

Eles visitam aldeias para convencer seus membros a não se associarem às atividades de destruição ambiental promovidas pelo poder econômico. Nesses momentos, são as mulheres guardiãs que assumem a frente no diálogo com a comunidade. Mas elas também não dispensam o uso de armas.

Entre suas tarefas, está a destruição de equipamentos dos criminosos ambientais. Madeireiros ilegais, principalmente. Caminhões e tratores ardem. É o único tipo de queimada que alivia o coração dos indígenas e da floresta.

Em junho de 2022, os araribóia receberam no Maranhão seus parentes amazonenses do Vale do Javari para aprender com eles como se defender. O encontro foi promovido por Bruno Pereira. Pouco depois, ele seria covardemente assassinado. “Quando uma árvore tomba, muitas sementes caem no chão e brotam novamente”, disseram os indígenas ao homenagear sua memória.

Os Guardiões da Floresta têm suas próprias tradições e sabedoria. Mas estão fazendo como os Panteras Negras, zapatistas e quilombolas. E eles estão certos.

Com base em reportagem de Daniel Camargos para o Repórter Brasil

Leia também: Tristeza e revolta por Bruno e Dom

24 de agosto de 2022

Sobre ricos, intelectuais e camelos na Bíblia

Mais relatos do livro “God Is Disappointed In You” (“Deus está decepcionado com você”), de Mark Russell. Novamente retirados do Evangelho de Mateus.

Um homem, ouvindo Jesus falar, se aproximou e perguntou: “O que preciso fazer para entrar no Reino de Deus?”. Para começar, você deveria vender tudo e me seguir!” "Tudo? Eu não sei, Jesus. Quero dizer, meu patrimônio está realmente explodindo... Ei, aquilo é um bode de duas cabeças?” Quando Jesus se virou para olhar, o rico saiu de fininho.

"Viram só?" Jesus disse aos seus discípulos, rindo: “É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus”.

Em outra ocasião, um grupo de intelectuais aristocratas chamados saduceus ficou incomodado em ver aquele caipira grosseiro recebendo o tratamento de rock star. Para provocá-lo, um deles perguntou: “Digamos que o marido de uma mulher morra e ela se case novamente. Quando todos se encontrarem no céu, de quem ela será esposa?”.

“Mas esse é realmente o seu grande argumento? Que o céu não pode ser real porque Deus não conseguiu organizar a papelada? Vocês não passam de um bando de hipócritas! Você fala comigo sobre a palavra de Deus e o melhor que pode fazer é tentar me testar com um detalhe técnico? Você não tem amor, nem compreensão, tudo que você tem é a lei. Mas você segue as leis de Deus enquanto ignora seus mandamentos. Você é como alguém que morre de nojo de uma mosca morta em um copo d’água, mas ignora que há um camelo morto no fundo do poço.”

23 de agosto de 2022

Respostas moderadas para tempos extremados

Assim como o chavão “dialogar com o centro”, “radicalizar” em abstrato tampouco quer dizer grande coisa. O mais provável é que acabe significando apenas a radicalização da própria identidade.

Ser politicamente radical é ser radical em relação a uma situação concreta. Não é demarcar uma posição independentemente de qualquer contexto, mas descobrir aqui e agora qual é a posição mais transformadora capaz de conquistar um máximo de adesão e produzir os maiores efeitos. De maneira que, num momento futuro, objetivos maiores e melhores sejam possíveis.

Por outro lado, se uma quantidade crescente de pessoas vem assumindo posições que antes seriam tidas como “extremas”, sejam à direita ou à esquerda, é em primeiro lugar porque o “centro” não consegue mais convencê-las de que tem condições de manter suas promessas. É por isso que o meio-termo entre neoliberalismo conservador e neoliberalismo progressista perdeu sua aura de ponto de equilíbrio.

Os parágrafos acima foram retirados do livro “Do transe à vertigem”, de Rodrigo Nunes. Nele, o autor procura discutir um momento da história humana que pode deixar no chinelo a famosa “Era dos Extremos”, de Eric Hobsbawm.

Afinal, o que dizer de um período em que as figuras de maior destaque e poder são gente como Bolsonaro, Trump, Putin, Johnson e Orban, entre outros?

Tal situação, diz Nunes, mostra que a maioria das vozes que, hoje, se dizem “realistas” repetem dogmas de uma realidade que sequer existe mais.

Nesse cenário extremado, a moderação de Lula pode ser tão decisiva para sua vitória quanto um fator fortemente limitante para seu governo. Já uma derrota seria igualmente decisiva, mas completamente desastrosa.

Leia também: Junho de 2013: oportunidade pedagógica desperdiçada

22 de agosto de 2022

As eleições como lava-jato de criminosos fascistas

Divulgado no dia 20/08/2022, levantamento do Datafolha mostrou que 75% dos brasileiros acreditam que a democracia é melhor que outros regimes políticos. Os que apoiam a ditadura em certas circunstâncias são 7%. Para 12%, tanto faz a forma de regime.

Os números devem ter desagradado os adeptos de Bolsonaro. Mas também podem revelar as fortes contradições do chamado “jogo democrático”. O próprio capitão fascista luta desesperadamente pela reeleição pelo voto. E muitos dos seus seguidores também. Nos quartéis, nas milícias, em igrejas que demonizam religiões afro, nas quadrilhas presentes em parlamentos e governos, toda essa ralé criminosa está de olho em outro mandato ou na renovação do atual.

É a lógica eleitoral imperando mesmo entre os fascistas. Até porque o fascismo nunca foi contra eleições, só contra a democracia. E eleições, por si só, têm pouco a ver com democracia.

Para comprovar isso, é interessante ler recente entrevista concedida pelo sociólogo José Cláudio Alves, professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

O título do depoimento já diz muita coisa: “A estrutura miliciana é uma malha que recobre o país como um todo”. Ele está falando da vida cotidiana, mas também da institucionalidade política.

Mais especificamente, do que chamou de “lavagem de cidadania”. Como é isso? Alves explica que se trata de:

...pessoas que tiveram suas trajetórias marcadas por assassinatos, homicídios, lógicas absolutamente terroristas de controle do território, da imposição da força pela morte e o terror, lavam tudo isso nas urnas em pleitos democráticos.

Se as urnas funcionam cada vez mais como um lava-jato de trogloditas criminosos pra quê ditadura?

Leia também: Eleições: engajamento virtual x militância presencial

19 de agosto de 2022

Eleições: engajamento virtual x militância presencial

O TikTok caminha rapidamente para ter o maior número de usuários do mundo, ultrapassando Facebook, Instagram, Youtube, etc.

É por isso que as redes virtuais concorrentes estão tentando imitar o aplicativo chinês. Vêm priorizando cada vez mais vídeos curtos no lugar de fotos e textos.

O problema é que isso torna as redes ainda menos interativas. As informações ficam mais soltas e sem contextualização. Além disso, vídeos são mais difíceis de fiscalizar quanto a conteúdos falsos e caluniosos. Uma beleza para a extrema-direita, com seu apego à difusão de fake news.

Um exemplo é a hashtag #StopTheSteal, compartilhada no TikTok por trumpistas, alegando que a eleição de Biden foi fraudada. Bloqueada pelos moderadores ela voltou com a grafia modificado para #StopTheSteallll e já tinha quase um milhão de visualizações até ser novamente desativada.

Semana passada, houve eleição presidencial no Quênia. Um dos candidatos apareceu num vídeo falso do TikTok segurando uma faca e vestindo uma camisa ensanguentada. A legenda o descrevia como um assassino. O vídeo recebeu mais de 500 mil visualizações antes de ser removido.

Enquanto isso, em terras brasileiras, a presença de Bolsonaro nas redes continua muitas vezes maior que a de Lula, líder nas pesquisas eleitorais. A participação de Anitta e Janones na campanha petista melhorou a situação, mas a reação veio com atraso.

A situação não seria tão preocupante se o engajamento virtual superior do bolsonarismo estivesse sendo compensado pela presença militante nas ruas, bairros e locais de trabalho em favor da candidatura petista. Por enquanto, isso não vem acontecendo. Os comícios são fundamentais, mas insuficientes. É urgente enfrentar esse desafio.

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18 de agosto de 2022

Os intermináveis labirintos do fascismo

“Labirintos do Fascismo” é “um livro interminável”, diz seu autor, João Bernardo. Mas não porque tenha mais de 1.450 páginas. O caráter inconclusivo da obra, diz ele, deve-se ao fato de que o fascismo “foi destruído militarmente sem estar política e ideologicamente esgotado”.

Ele é um marxista português e militante antifascista de primeira hora. Afirma, porém, que não pretende abordar o fascismo a partir de fora, “mas desde o seu interior, nas encruzilhadas sociais e políticas em que se gerou e nos percursos paradoxais, quando não delirantes, em que prosseguiu a sua ideologia”.

Uma das teses centrais do livro é apresentada já na introdução. Para ele, os fascistas jamais conseguiram “ascender em confronto direto com as movimentações revolucionárias dos trabalhadores, mas somente após essas movimentações terem sido desarticuladas pelas suas contradições internas”.

Bernardo lembra Clara Zetkin que, ao discursar no Congresso da Internacional Comunista, em junho de 1923, advertiu:

O fascismo não é de modo nenhum a vingança da burguesia contra um proletariado que se tivesse insurreccionado de maneira combativa. Sob um ponto de vista histórico e objetivo, o fascismo ocorre sobretudo porque o proletariado não foi capaz de prosseguir a sua revolução.

Referindo-se à ascensão do nazismo nos anos 1930, o autor diz que o triunfo do fascismo só é compreensível se recordarmos que nessa ocasião as formas sociais inovadoras criadas pelo movimento operário haviam sido derrotadas e tinham degenerado.

Ou seja, as vitórias do fascismo teriam sido produto das derrotas do proletariado revolucionário para si mesmo.

Aos poucos, e na medida do possível, voltaremos a essa obra cheia de elementos importantes e provocativos.

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17 de agosto de 2022

Junho de 2013: oportunidade pedagógica desperdiçada

Em um dos ensaios de seu livro “Do transe à vertigem”, Rodrigo Nunes pergunta: “Como chegamos aqui? De Junho de 2013 a Bolsonaro”.

Resumindo superficialmente a resposta do autor, comecemos pela obsessão que boa parte da esquerda teria por identificar quem está por trás de cada evento ou processo. Assim, diz Nunes, em vez de tramas com seus fluxos e conflitos, um só Plano abarca tudo. Em vez de golpes e contragolpes, um só Golpe que se desdobra em “golpes dentro do golpe”.

O problema, afirma ele, é que tais explicações desprezaram dois fatores fundamentais do último período. Primeiro, a crise econômica mundial iniciada em 2008 e a timidez das respostas políticas que ela recebeu. Segundo, a falência do sistema representativo, que deixou de oferecer uma representação minimamente legítima da sociedade e passou a funcionar como dispositivo de blindagem de determinados interesses econômicos. Daí decorre o terceiro elemento: a crise do “centrismo”, isto é, do consenso ideológico que reuniu direita e centro-esquerda desde os anos 1990.

Agravando esse quadro, afirma nosso autor, o PT hipotecou um enorme capital político em erros grosseiros, como a usina de Belo Monte e os megaeventos esportivos, que, além de se prestarem a grandes desvios de dinheiro público, deixaram uma herança, pior que pífia, nefasta.

E a maior oportunidade pedagógica que a política brasileira conheceu em muito tempo acabou sendo aproveitada predominantemente pela direita, que, ademais, podia contar com a simpatia da mídia e de interlocutores institucionais para impulsionar sua mensagem, conclui Nunes.

E, como sabemos, o que não se aprende pedagogicamente, dificilmente será assimilado através do caos e do pânico.

Leia também: O melancólico apego petista a seus erros

16 de agosto de 2022

Faça caridade sem ostentação

Mais trechos do livro “God Is Disappointed In You” (“Deus está decepcionado com você”), no qual Mark Russell pretende resumir a Bíblia em menos de 300 páginas.

Chegando aos Evangelhos, o autor os introduz desse modo: Centenas de anos se passaram e o Messias, cuja vinda foi prometida durante todo o Antigo Testamento, nunca veio. Enquanto isso, Israel era jogado como uma batata quente de um império para outro. Os persas tomaram Israel dos babilônios e depois o entregou aos gregos, que foram conquistados pelos romanos.

Messias fracassados iam e vinham. Alguém começava a falar alto e liderava uma revolta até que os romanos a esmagasse impiedosamente. Depois, penduravam os pretendentes a messias em cruzes colocadas nas estradas, onde serviriam como outdoors humanos, lembrando a quem passasse que era melhor permanecer leal ao Império Romano. Então, os judeus começaram a se perguntar se o verdadeiro Messias alguma vez viria, e, se o fizesse, poderia evitar se tornar um outdoor humano.

Foi nesse mundo que nasceu um bebê chamado Jesus. Os Evangelhos relatam sua vida e ensinamentos. O primeiro desses relatos é o de Mateus, do qual merece destaque o seguinte trecho:

“Quando você doar aos necessitados, faça isso porque é uma pessoa decente e atenciosa, não porque há uma multidão assistindo”, disse Jesus. “Eu vejo esses caras no mercado que fazem um grande show dando moedas para um cego e penso, ‘Merda, por que não trouxe uma banda de música junto com você?’. É quando ninguém está olhando que Deus presta atenção em nós”.

Em uma próxima pílula, mais ensinamentos do evangelho de Mateus.

Leia também: O Senhor dos Exércitos e seus profetas rabugentos

15 de agosto de 2022

Escravocratas de alto a baixo

O Império Brasileiro foi, entre todos os governos da América Latina, o que mais deu apoio ao Sul escravista dos Estados Unidos durante a Guerra da Secessão. Contrariando o desejo do presidente Lincoln, para quem os confederados eram rebeldes a serem trazidos de volta ao seio da União pela força das armas, o Brasil concedeu à Confederação o status formal de nação beligerante, reconhecimento que poucos outros países concordaram em adotar. Nessa condição, navios sulistas foram acolhidos em portos brasileiros, onde receberam proteção contra eventuais hostilidades.

O trecho acima é do último volume da trilogia “Escravidão”, de Laurentino Gomes.

Mas os ianques nortistas não eram muito melhores. Lincoln, por exemplo, nomeou como diplomata no Brasil James Watson Webb, que afirmou o seguinte em uma carta:

É do interesse dos Estados Unidos e absolutamente necessário para sua tranquilidade interna que se livre da instituição da escravidão, mas também (...) se torna indispensável que o negro liberto seja exportado para fora de nossas fronteiras (...). A ausência [de negros] seria uma benção para os Estados Unidos, que se livrariam de uma maldição que quase os destruiu.

Enquanto isso, Matthew Fontaine Maury, comandante da Marinha sulista durante a guerra civil, defendia a ocupação da Amazônia brasileira por colonos norte-americanos e seus escravos. Para ele, somente assim a região seria habitada por um povo com a energia e a iniciativa necessárias para subjugar a floresta no lugar da raça imbecil e indolente que ocupava a Amazônia.

Tudo isso mostra como o racismo escravocrata imperava entre os brancos de sul a norte, no norte, e de norte a sul, no sul.

Leia também: Escravidão: os rugidos que fazem os senhores tremerem

11 de agosto de 2022

O melancólico apego petista a seus erros

O título do livro “Do transe à vertigem”, de Rodrigo Nunes, diz respeito a um dos seus ensaios que compara dois filmes: “Terra em transe”, de Glauber Rocha, e “Democracia em vertigem”, de Petra Costa. O objetivo é “investigar as imagens da derrota política” representada pelas deposições de João Goulart, no primeiro filme, e de Dilma Rousseff, no segundo.

Comparando os dois momentos históricos, nosso autor nota que João Goulart foi deposto dias “depois de anunciar um ambicioso programa de reformas estruturais”. Já a queda de Dilma não ocorreu “por conta de forças externas a seu governo, mas pelas mãos de seus próprios parceiros de coalizão e dos antigos aliados do PT entre o grande capital brasileiro”.

No entanto, se “Terra em Transe” é implacável em sua crítica aos erros da esquerda dos anos 1960, o documentário de Petra teria se limitado a culpar os inimigos e alguns fatores conjunturais pela deposição de Dilma. Entre eles, as manifestações de 2013.

De modo que a produção acaba reproduzindo o discurso oficial do PT, segundo o qual seu governo caiu devido a “suas qualidades e não por seus defeitos”. Como se para melhorar a vida de milhões de pessoas pobres o único caminho fosse o partido aliar-se a forças que viriam a traí-lo.

Assim, conclui Nunes, a impressão com que ficamos é de que o processo de aprender com a derrota na verdade nem começou, e ainda precisa superar um apego melancólico às vitórias e possibilidades de um passado recente, mas que já passou.

E apego melancólico a erros é tudo o que não precisamos no momento.

Leia também: Identitarismo pra todos os lados

10 de agosto de 2022

A encrenca que nos aguarda, se der tudo certo

Vamos falar sobre golpe de estado. Não daquele que Bolsonaro ameaça protagonizar, mas daquele que permitiu que ele chegasse à Presidência.

Há quem duvide do caráter golpista da deposição de Dilma Rousseff devido a seu trâmite parlamentar. Como se existissem apenas golpes com tanques nas ruas e fechamento de parlamentos.

O golpe foi institucional. Produto da ação conjunta do parlamento com a cúpula judiciária, sob pressão das Forças Armadas e cumplicidade de aliados do próprio governo deposto.

Óbvio que o alvo imediato era o mandato petista. Mas seu objetivo maior, a destruição das conquistas sociais que ainda restavam na legislação e o aumento da repressão sobre os movimentos sociais e forças progressistas em geral.

O caráter institucional do golpe, porém, acabou permitindo ao PT uma sobrevida política que tornou seu retorno ao governo central uma possibilidade muito concreta. Por outro lado, dobrou a aposta petista nas vias institucionais e na política de conciliação de classes.

Enquanto isso, expandiu-se ainda mais a presença de representantes fiéis ao ideário ultraconservador na máquina estatal. Principalmente, a dos fardados.

Uma vitória eleitoral de Lula não representará uma derrota do golpe, mas somente de sua força principal. Um novo governo petista será ainda mais refém de uma “governabilidade” conservadora. Já não se tratará apenas de arbitrar os interesses das várias frações do capital, enquanto tenta aliviar o sofrimento da grande maioria pobre. Será cobrado do PT na Presidência um papel mais firme no combate às conquistas sociais e, principalmente, às lutas populares.

Tudo isso enfrentando uma oposição abertamente fascista. Tudo isso naquele que somos obrigados a considerar o cenário mais otimista.

Leia também: Lula: nosso homem infiltrado na direita

9 de agosto de 2022

O Senhor dos Exércitos e seus profetas rabugentos

Jeremias é mais um profeta do Antigo Testamento da Bíblia citado por Mark Russell em seu livro “God Is Disappointed In You” (“Deus está decepcionado com você”).

Segundo Russell, Jeremias ficava na rua e gritava com riqueza de detalhes como o Reino de Judá seria invadido pelos babilônios, como cadáveres encheriam os campos feito estrume de vaca e como todos que eles conheciam logo seriam mortos ou escravizados. Seus sermões não eram exatamente para agradar a multidão.

Jeremias odiava ser profeta. Certamente, porque era o homem mais odiado em Judá. Mas toda essa impopularidade não o tornava menos certo. Os babilônios realmente invadiram o Reino de Judá, esmagaram seus exércitos e escravizaram seu povo.

Outro profeta dos primeiros livros da Bíblia é Sofonias. Por ele, Deus mandava recados do tipo:

Estou guardando minha pior vingança para você, meu “povo escolhido“, porque você está sempre me traindo. E não é apenas o povo de Israel que precisa se preocupar. Também os filisteus, moabitas, etíopes, assírios...

Só não entendo por que temos que continuar passando por tudo isso, dizia Sofonias em nome de Deus. Se vocês, seres humanos, não fossem tão terríveis, eu cuidaria de vocês como antigamente. Mas quem sabe, alguns terremotos e ataques de raios chamem sua atenção. Só espero que quando eu terminar com toda essa matança, possamos ficar numa boa. Eu realmente queria que vocês gostassem de mim.

Talvez, os trechos acima expliquem porque muitos cristãos truculentos se inspirem em certas passagens do Antigo Testamento e adotem apenas um dos apelidos de Deus na Bíblia: o Senhor dos Exércitos.

Leia também: Um profeta muito irado

8 de agosto de 2022

Lula: nosso homem infiltrado na direita

Durante os governos petistas, seus defensores no interior da esquerda justificavam suas inúmeras rendições aos interesses da burguesia afirmando que se tratava de governos em disputa.

Verdade, eram governos em disputa. Mas nessa disputa só entravam pra valer as várias alas do capital. Aos trabalhadores cabia apoiar, desde que assistissem tudo passivamente.

Bem, o resultado já sabemos. Veio a crise econômica e as tais alas do capital resolveram descartar o “governo dos trabalhadores” dando um golpe institucional, coroado com a eleição de um fascista. A resistência foi tão fraca que não logrou nem mesmo impedir a prisão vergonhosa de Lula.

Passados quatro anos dessa imensa derrota histórica, estamos entrando em um novo momento crucial para luta de classes no País. A possibilidade de uma vitória do PT nas eleições presidenciais é grande e significaria um revés para as forças golpistas.

O problema é que um novo governo Lula será ainda mais dominado por alianças tão amplas que arrisca acolher até setores bolsonaristas. É a reedição piorada daquele governo cujos rumos estavam em disputa apenas por frações da classe dominante.

Para entender melhor todo esse processo vale a pena assistir à entrevista que o canal Tutaméia fez com o professor de Ciência Política da Unicamp, Armando Boito.

Segundo o entrevistado, há principalmente duas frações burguesas disputando a hegemonia no bloco do poder. Uma da burguesia “interna”, que não é anticapitalista ou anti-imperialista. A outra, abertamente entreguista. E Lula procura organizar uma ampla frente em defesa do primeiro setor.

Ou seja, na melhor das hipóteses, Lula é nosso homem infiltrado na direita. Sozinho e muito mal acompanhado.

5 de agosto de 2022

Identitarismo pra todos os lados

Um dos fenômenos abordados pelo livro “Do transe à vertigem”, de Rodrigo Nunes, é o “identitarismo”. Segundo nosso autor:

Ao contrário da história que a “esquerda anti-identitária” costuma contar, não foi porque passou a se preocupar com o “particular” (negros, mulheres, indígenas, gays…) que a esquerda abriu mão do “universal” (um projeto alternativo de sociedade); foi quando deixou de articular uma ideia própria do todo que ela preencheu o vazio com bandeiras setoriais.

O chamado identitarismo seria, portanto, uma espécie de sintoma, mais do que um mal em si. Ao mesmo tempo, é um fenômeno com raízes no mundo objetivo.

O fato, diz Nunes, é que vivemos a “hipervisibilidade de uma vida social cada vez mais midiatizada” que valoriza a afirmação abstrata de princípios acima do desenvolvimento da capacidade de aplicar esses princípios ao mundo.

É essa postura que acabou prevalecendo entre grupos que acham que afirmar sua identidade de cor, gênero, orientação sexual e menosprezar a luta de classes e a resistência anticapitalista, basta para lutar por transformação social.

Por outro lado, grande parte da esquerda ou se limita a tentar administrar um sistema cada vez mais inadministrável ou idealiza uma revolução distante da vida concreta. Desse modo, também acabam por recair em uma espécie de identitarismo “classista” ou “militante”.

Como diz Nunes, “exigir que as pessoas se convertam a identidades cada vez mais estritas ou abracem ideais cada vez menos tangíveis” são apenas dois caminhos diferentes para cair no isolamento.

Resumindo grosseiramente, cada vez mais confundimos a necessidade de mobilizar as pessoas com a ambição, condenada à frustração, de torná-las iguais a nós.

4 de agosto de 2022

Um profeta muito irado

Deus está vindo e não parece muito feliz. Vem derretendo montanhas e rasgando vales, e se pegar vocês com algum outro deus, alguma coisa vai ser esmagada. E quando Deus começa a esmagar, ninguém fica feliz. Samaria e Jerusalém serão reduzidas a escombros. Seus filhos serão vendidos como escravos. Seus cabelos vão cair. Não é uma visão muito agradável, certo?

Não me entendam mal, eu amo nossa terra. Realmente amo. Mas não posso mais ignorar o que vocês andam aprontando. Não sou daqueles profetas que faz previsões doces. Se eu quisesse ser amado, profetizaria a distribuição de vinho grátis. Mas vocês precisam saber sobre a ira divina, mesmo que me odeiem por isso.

Talvez o maior problema é que vocês pensam em Deus como alguém a ser subornado. Mas ele não precisa de mais carne de javali ou óleo de lamparina. 

Na verdade, Deus quer apenas três coisas de vocês. Estão ouvindo? Aqui está a religião judaica em poucas palavras: 1) Construir uma sociedade justa onde os ricos e poderosos não tratem o resto de nós como gado. 2) Seja humilde. Você nunca é tão santo que não possa melhorar um pouco. E, finalmente, 3) Por tudo o que é sagrado, ajudem-se de vez em quando. Vocês não entendem? Estamos aqui na Terra para tornar a vida melhor uns para os outros.

As palavras acima são do profeta bíblico Miquéias, segundo a interpretação de Mark Russell no livro “God Is Disappointed In You” (“Deus está decepcionado com você”).

Ele não está entre os profetas mais populares do Velho Testamento. Parece que não precisa explicar porquê.

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3 de agosto de 2022

As desculpas vazias do Papa aos indígenas

No final de julho, o Papa Francisco, em visita ao Canadá, pediu desculpas a representantes indígenas locais pela participação da Igreja Católica no processo de violência cultural e repressão física aos povos nativos, desde o início da invasão europeia das terras americanas até meados do século passado.

Os indígenas agradeceram a gentileza, mas responderam que o papa precisava incluir a revogação da “doutrina do descobrimento” no pedido de desculpas. Referiam-se a três bulas papais que concederam aos reis “permissões”, como o direito de conquistar as terras dos povos indígenas, impor-lhes o cristianismo e torná-los seus escavos.

Em maio de 2015, representantes de povos indígenas de várias partes do mundo promoveram “A Longa Marcha para Roma”. No Vaticano, reuniram-se com Francisco para exigir que ele revogasse essa doutrina.

Kenneth Deer, do povo Mohawk, estava presente e disse que “ele manteve contato visual e foi muito atencioso. Mas limitou-se a dizer: 'Vou orar por vocês'. Depois, me deu uma caixinha vermelha com um rosário dentro. E foi isso.”

E é desse modo que se comporta o Papa mais progressista da Igreja Católica em muitas décadas. Suas posturas individuais são muito melhores que as de vários de seus antecessores, mas isso quase não faz diferença em relação ao funcionamento da instituição que chefia ou deveria chefiar.

Outro exemplo é a discriminação contra os homossexuais. O Papa afirma que eles devem ser tratados como filhos de Deus, mas deixou aos padres decidirem sobre sua aceitação como verdadeiros católicos. O que não ajuda muito. Até porque mesmo os piores pecadores são filhos de Deus. Inclusive, os Papas.

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2 de agosto de 2022

Junho de 2013: erros petistas, limitações da esquerda

Voltando ao livro “Do transe à vertigem”, de Rodrigo Nunes, o autor entende que Junho de 2013 apresentou no Brasil uma particularidade em relação ao ciclo de protestos que ocorreram no mundo todo, em 2011.

Segundo ele, fomos o único país em que os meios de comunicação e parte da direita passaram não apenas a apoiar os protestos, mas também a mobilizar-se em seu favor e tentar imprimir-lhes sua própria agenda.

Assim, quando finalmente o caráter das manifestações se definiu, para muitas pessoas prevaleceram os contornos que a direita lhes deu. Essas pessoas não eram necessariamente de direita, elas se tornaram. A derrota da esquerda ocorreu justamente aí, diz Nunes.

O limite da esquerda não petista naquele momento era que ela havia desencadeado algo suficientemente forte para obrigar o governo a responder, mas não para levá-lo a tomar esta ou aquela direção.

Enquanto isso, afirma ele, entre o certo e o incerto, o petismo preferiu assumir o papel de defensor do sistema e optar pela desqualificação retórica e repressão física das manifestações.

Na ausência de uma via institucional pela qual os protestos pudessem ser canalizados, e diante de ofensiva da direita, a esquerda das ruas viu-se diante de um impasse: ou abandonava o processo sob o risco de sua apropriação pela direita, ou sustentava uma mobilização sem perspectiva de resolução no horizonte, arriscando fortalecer as forças conservadoras, do mesmo jeito.

Com a esquerda não petista neutralizada e o PT cada vez mais identificado com o establishment, o caminho ficaria livre para que a direita pudesse se reivindicar como legítima herdeira de 2013.

Novamente, fica difícil discordar.

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1 de agosto de 2022

A uberização da pornografia

Um fenômeno recente do mercado de entretenimento é a chamada “uberização” da pornografia.

Tudo começou com o surgimento de plataformas como a OnlyFans. Criada em 2016, o aplicativo destinava-se apenas a celebridades que disponibilizariam fotos e vídeos exclusivos para fãs que se dispusessem a pagar.

Rapidamente, porém, tornou-se uma fonte de material pornográfico. Inclusive, com postagens feitas por estrelas e astros do mercado pornô tradicional. Muitos alegam que o uso da ferramenta proporciona maior liberdade de criação e controle sobre os recursos arrecadados.

Pode até ser, mas tudo indica que se trata de mais uma forma de precarização do trabalho. A indústria pornográfica tradicional já é uma atividade pouco fiscalizada em relação à regulamentação trabalhista por causa do desprezo social que a cerca. Agora, com a chegada das plataformas ao setor, a situação deve ficar pior ainda.

Além disso, tal como aconteceu com motoristas, entregadores e outros profissionais vinculados a aplicativos, os prestadores do serviço da indústria sexual caem vítimas da superexploração imposta pelas plataformas que monopolizam os segmentos em que atuam.

Por fim, não são raros os casos de “influencers” com graves moléstias físicas e mentais decorrentes dos esforços para manterem seus seguidores, enquanto geram cada vez mais lucros para Youtube, Instagram e outras plataformas virtuais. Os mesmos problemas começam a se manifestar na pornografia “uberizada”.

É antiga a polêmica sobre as diferenças entre pornografia e erotismo. Há quem defenda que a primeira seria uma versão grosseira do último. Mas pornográfico mesmo é o crescente assédio do capitalismo sobre todas as esferas sociais, tornando a vida humana uma versão grosseira de si mesma.

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