Doses maiores

18 de outubro de 2019

A caminho do “ciberproletariado”

Em 13 de maio de 2014, a Deep Knowledge Ventures, um fundo de capital de risco com sede em Hong Kong, comunicou à imprensa que o VITAL, um instrumento de Inteligência Artificial, passaria a ser membro regular de seu conselho de administração.

Nessa condição, um algoritmo teria o mesmo poder de voto que os membros humanos do conselho nas decisões sobre investimentos que envolvem muito milhões de dólares.

No mesmo dia, uma explosão em uma mina de carvão matou 301 trabalhadores na Turquia. A instalação havia sido privatizada em 2007.

A ocorrência dos dois eventos no mesmo dia foi coincidência. Mas ela é utilizada como um exemplo dos paradoxos e contradições do capitalismo atual por Nick Dyer-Witheford na introdução de seu livro “Cyber-Proletariat”, ainda sem tradução.

Segundo o autor, a ciência dos computadores está sendo utilizada “não apenas na criação de altos executivos artificiais, mas principalmente na automação de trabalho para reduzir custos”.

Da Virgínia Ocidental à África do Sul, diz ele, a mineração está na linha de frente de uma nova onda de robotização que pode eliminar totalmente a utilização de trabalho humano, mas sem que isso signifique criar mais e melhores ocupações.

Por outro lado, nos últimos anos, uma série de revoltas em todo o mundo contra a exploração econômica tem utilizado cada vez mais tecnologias digitais.

Dyer-Witheford localiza seu ponto de partida teórico “na tradição do marxismo autonomista, assim chamado por causa de sua ênfase no poder dos trabalhadores de desafiar e quebrar sua subordinação ao capital”.

Comentaremos várias conclusões desse livro daqui a algumas semanas, quando nossas doses diárias forem retomadas. Até...

Leia também: Internete das vacas. Ou a agricultura sem agricultores

17 de outubro de 2019

Google e Amazon de olho nas oportunidades do apocalipse

Imagine, apenas imagine, que setores poderosíssimos do capital mundial consideram irreversível o colapso da humanidade devido a problemas ambientais.

Esses setores estariam, então, fazendo o seguinte cálculo. Já que o fim é inevitável, vamos organizar a fila de salvação, de modo a ficar nos primeiros lugares e ainda lucrar com isso.

Muita teoria da conspiração? Vejamos.

Segundo recente reportagem do jornal britânico“The Guardian”, a Google teria feito doações “substanciais” para alguns dos grupos negacionistas climáticos mais relevantes dos Estados Unidos.

São organizações como Competitive Enterprise Institute, Cato Institute e Heritage Foundation, cuja atuação foi fundamental para que o governo Trump deixasse o Acordo de Paris, que pretende combater o aquecimento global.

O problema é que a Google lamentou publicamente a saída do Acordo. Portanto, aí, tem coisa...

Enquanto isso, outra reportagem afirma que Jeff Bezos, proprietário da Amazon, estaria trabalhando no projeto de um tubo cilíndrico que orbitaria a Terra, abrigando milhões de pessoas. Seria sua alternativa para um planeta que se tornará inabitável para a raça humana num futuro próximo.

Vale lembrar que a Amazon tem mais de 600 mil empregados, com inúmeras e graves denúncias de abusos cometidos contra eles nas enormes instalações da empresa. Será que Bezos não quer fazer o mesmo com grande parte dos milhões que pretende colocar em seus tubos espaciais?

Até agora, havia denúncias de que esses novos capitalistas poderosos estariam construindo suas próprias Arcas de Noé. Mas é pior. Parecem estar ajudando a preparar o dilúvio para nos vender bilhetes de salvação ou nos escravizar ou ambos.

Muita loucura? Sim, muita loucura. Impossível? Não, de jeito nenhum.

Leia também: Do descontrole ao apocalipse capitalista

16 de outubro de 2019

A cor da instabilidade

Raúl Zibechi é escritor e jornalista uruguaio. Em recente artigo, ele resumiu assim a situação política no continente sul-americano:

O fim da governabilidade, própria dos primeiros anos do progressismo, é de caráter estrutural e tem pouca relação com os governos. O ciclo progressista se solidificou nos altos preços das commodities, com grandes superávits comerciais que untaram as políticas sociais. Melhorar a renda dos mais pobres sem tocar na riqueza foi o milagre progressista.

Esse consenso terminou com a crise de 2008 e a guerra comercial Estados Unidos-China não faz mais que aprofundar a instabilidade. Não é possível continuar melhorando a situação dos setores populares sem tocar na riqueza e os governos que se afirmam progressistas não farão outra coisa a não ser aprofundar o extrativismo e a desapropriação dos povos: Andrés Manuel López Obrador e o possível governo de Alberto Fernández são parte dessa realidade.

O panorama dos próximos anos será uma sucessão de governos, progressistas e conservadores, com um cenário de vastas mobilizações populares. Trata-se do fim da estabilidade, de qualquer cor.

O grande problema desse cenário é a forte tendência de “governos progressistas e conservadores” inclinarem-se à direita. Os últimos por vocação. Os primeiros porque procuram melhorar o que não pode ser melhorado. Aí, é recuo atrás de recuo. Se foi assim no “auge das commodities”, será pior em uma situação recessiva.

Um capitalismo instável exige radicalização. É o que o capital vem fazendo, ao apoiar governos protofascistas pelo mundo. A esquerda deveria fazer o mesmo, mas longe dos governos e grudada nas lutas.

Nada de tons róseos. A instabilidade tem que ser vermelha.

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15 de outubro de 2019

Amor ou trabalho não pago?

Silvia Federici é uma feminista marxista que tem coisas duras a dizer sobre a dominação masculina. Mas não tão duras como a vida da grande maioria das mulheres sob o capitalismo.

Italiana naturalizada estadunidense, uma de suas preocupações principais é o trabalho doméstico. Na verdade, trabalho gratuito, cujo principal produto é força de trabalho destinada à exploração pelos capitalistas. Na visão destes, as mulheres não passam de “fábricas de crianças”.

Para manter essa “produção”, elas trabalham fora de casa, mas não param de fazer o trabalho doméstico. Em entrevista à Folha publicada em 14/10/2019, afirma que as mulheres trabalham:

...à noite, de manhã cedo, aos domingos. (...). Trabalham cuidando de todo mundo, da casa, ajudando as pessoas a viver e ajudando as pessoas a morrer.

Por isso, diz ela, as “mulheres nunca se aposentam”. E quem se beneficia disso são “todos os empregadores”.

Para Silvia, até o sexo é parte do trabalho doméstico:

Não importa o quão cansada esteja, se é casada e seu marido quer fazer sexo, muitas de nós faremos sexo. Se dissermos não, muitas vezes eles nos obrigam. O que eles chamam de amor, nós chamamos de trabalho não pago.

Quanto aos que são contra o direito ao aborto:

Essas pessoas só se importam com a vida do feto, porque elas não têm de pagar por ele, porque está na barriga da mãe, mas quando nasce, e precisa de cuidados, aí elas não se importam.

É assim que sexo e maternidade tornam-se funções brutalizadas de uma sociedade que reserva apenas fábricas e prisões como destinos para a maioria explorada e oprimida.

Leia também: Luta feminista e reprodução social

14 de outubro de 2019

Do descontrole ao apocalipse capitalista

“A inteligência artificial sairá do controle, dizem 10 grandes personalidades”, segundo matéria da revista Época publicada em 13/03/2019. Entre as “personalidades”, os donos da Apple, Microsoft, Tesla e até Vladimir Putin.

Mas cabem duas questões preliminares.

Primeiro, sairá do controle de quem, caras pálidas? Uma coisa são bilionários preocupados. Outra coisa é o restante dos mortais mantidos na dependência dessas novas tecnologias exatamente por esses bilionários e seus governos.

Segunda questão: desde quando, na condição de espécie humana, estamos no controle de alguma coisa? Ou melhor, quando é que resolvemos que precisamos controlar tudo, incluindo o restante da natureza.

A resposta a esta última questão é relativamente simples. Faz uns duzentos anos que uma parte da humanidade impôs ao restante dela e sua descendência que nossa relação com a natureza seria de escravização de suas leis a nossos caprichos. Ou melhor, ao imperativo absoluto de gerar lucros.

O resultado está aí: crises ambientais, incluindo epidemias, envenenamento da atmosfera, de rios e oceanos e alterações climáticas com consequências cada vez mais trágicas. Chama capitalismo, isso. Ou seria, apocalipse capitalista?

Em 1848, Marx e Engels escreveram no Manifesto Comunista: “Tal como o aprendiz de feiticeiro, a burguesia não consegue controlar as potências que pôs em movimento”. Uma descrição que sofre atualizações a cada onda de “novas tecnologias”.

Mas afirmar que não há ninguém rigorosamente no controle, não significa que não haja culpados. E entre eles estão essas “personalidades” que se dizem preocupadas, enquanto preparam suas Arcas de Noé privativas.

Nesse caso, poderíamos assumir o controle da situação, nem que seja apenas para providenciar-lhes um juízo final igualmente privativo.

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11 de outubro de 2019

Da ausência de controle ao descontrole

Quando surgimos, éramos mais um animal extremamente dependente das forças da natureza. Não procurávamos controlá-las, mas negociar com elas. Principalmente, por meio da religiosidade.

Quando aprendemos a criar animais e plantas, dominar sua reprodução fez surgir a expectativa de obter controle sobre o que nos parecia desordenado.  

A produção aumentou. Surgiram os primeiros estoques e sua administração e proteção passaram a ser tarefa de um coletivo separado do restante da comunidade. O controle das forças naturais passou a incluir o controle de uma minoria supervisora sobre a maioria produtora. Surgia o Estado.

Mas o salto, mesmo, veio com o domínio do vapor, da eletricidade, do petróleo... Passamos definitivamente a pensar que nosso destino era colocar toda a natureza a nosso serviço. Ainda que a serviço, principalmente, da costumeira e cada vez mais restrita minoria.

A natureza tem leis. Mas passamos a considerar seu funcionamento espontâneo como o império da desordem. Confundimos acaso com caos. E não à toa, a teoria do caos surgiu a partir das pesquisas meteorológicas. Nos estudos do clima, é preciso respeitar forças poderosas. Não há como domesticá-las.

Mas aquela pretensão de controle surgida junto com a lavoura e os currais teima. Capitalistas e governos se recusam, por exemplo, a aprender com as experiências bem menos traumáticas dos povos indígenas em sua relação com as forças naturais. Ao contrário, tratam tais povos, eles próprios, como elementos telúricos a serem subjugados.

O resultado aparece ostensivo no colapso climático e social que nos ameaça. No horizonte, o caos. Mas o caos humano, minúsculo em meio à imensa e impassível ordem natural. No comando, capitães descontrolados.

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O quinto cavaleiro do apocalipse nivelador

10 de outubro de 2019

Equador: viva a luta dos que querem comer terra

Estamos de volta ao livro “Ideias para adiar o fim do mundo”, de Ailton Krenak, líder indígena e ambientalista.

A proposta da obra é “sempre poder contar mais uma história. “Se pudermos fazer isso, provoca ele, estaremos adiando o fim do mundo”.

Em um desses relatos Krenak conta que no Equador, na Colômbia, nos Andes, enfim, há “lugares onde as montanhas formam casais. Tem mãe, pai, filho, tem uma família de montanhas que troca afeto, faz trocas.”

Em oposição a isso, tem uma “uma humanidade, vamos dizer, bacana”, ironiza o autor. Uma gente que olha com desprezo para esses mitos. Ignora que há entre nós:

...uma camada mais bruta, rústica, orgânica, uma sub-humanidade, uma gente que fica agarrada na terra. Parece que eles querem comer terra, mamar na terra, dormir deitados sobre a terra, envoltos na terra.

Segundo Krenak, é o desprezo a essa gente rústica que vem distanciando toda a humanidade do seu lugar, da terra como casa, provedora e mãe. Enquanto isso, “um monte de corporações espertalhonas vai tomando conta”.

Para que não pensem que ele está inventando mais um mito, o do monstro corporativo, nosso contador de histórias avisa: “ele tem nome, endereço e até conta bancária. E que conta!”

E são elas, essas corporações, que “têm criado cada vez mais mecanismos para separar esses filhotes da terra de sua mãe”.

O livro é anterior ao que está acontecendo hoje no Equador, mas com certeza seu autor diria que, por lá, os filhotes não estão aceitando passivamente as violências cometidas contra sua mãe.

Viva a luta indígena no Equador e no mundo!

Leia também: O “tai chi chuan” da resistência indígena

9 de outubro de 2019

Bacurau ou o apocalipse programado

Outro bom artigo sobre o filme de Kleber Mendonça e Juliano Dornelles é de Rodrigo Guimarães Nunes, professor de filosofia da PUC-Rio. Para ele, Bacurau procura “vingar” uma violência que é “passada, presente e futura”. Ela:

...existe nas fronteiras do capitalismo e do Estado. É a violência a que estão expostos aqueles que, sem nunca serem incluídos por completo nem nos serviços públicos nem no mercado, podem a qualquer momento se tornar objetos do poder político ou do interesse econômico.

Bacurau seria uma “projeção bastante lúcida” de um futuro em que há:

...cada vez mais bolsões de pessoas deixadas às margens, sem acesso aos benefícios do desenvolvimento, mas sempre sujeitas a terem uma última gota de rentabilidade extraída de si (o abastecimento de água cortado, o safári humano como serviço de luxo). Em que as populações “excedentes” se tornaram tão numerosas que seu manejo é feito ao ar livre, em execuções em massa exibidas pela televisão.

E conclui:

Quem viu os discursos de Donald Trump e Jair Bolsonaro na ONU reconhecerá este cenário. O negacionismo climático não é burrice, mas a aposta de setores que já assumiram que a manutenção de suas condições atuais de vida tornou-se incompatível com a sobrevivência da grande maioria. O antiglobalismo não é um desvario, mas a justificativa ideológica de quem já percebeu que, sem uma correção radical de rumo – justamente o que eles querem evitar –, o capitalismo não dá mais para todo mundo.

É a utilização fria e calculada da barbárie para resolver os problemas do capitalismo, não da humanidade. Difícil discordar. Necessário resistir.

O artigo está disponível aqui.

Leia também: Bacurau: a esquerda sem chão e sem lugar

8 de outubro de 2019

Disrupção, não. Revolução

Com o costumeiro estardalhaço, acabou de ser lançado o iPhone 11. Mas pouca gente sabe que a Apple não fabrica esses aparelhos. Eles são feitos em Taiwan, pela Foxconn, que emprega mais de 1,3 milhão de trabalhadores. Em sua maioria, mulheres.

O iPhone custa caro. Cerca de R$ 9 mil no Brasil. Mas a maior parte dos lucros de sua venda não vai para a Foxconn, muito menos para seus trabalhadores. Como a Apple possui a propriedade intelectual sobre o aparelho, ela fica com o grosso dos ganhos.

Em 2014, Ahmet Tonak realizou um estudo sobre o iPhone 6, utilizando o conceito marxista de taxa de exploração. Como integrante do Instituto de Pesquisa Social Tricontinental, Ahmet atualizou suas análises para o iPhone X.

A descoberta mais assombrosa da análise é que os trabalhadores que fabricam esses telefones espertos são 25 vezes mais explorados do que os operários das fábricas têxteis dos século 19, na Inglaterra.

Isso nos faz lembrar de que apenas uma parte mínima da jornada de trabalho compõe o valor do salário que o trabalhador recebe. Na quase totalidade do dia trabalhado, os operários produzem para ampliar a riqueza do capitalista. Ou seja, a esperteza por trás disso tudo é muito maior do que a que aparece nos telefones.

O fato é que há pouca coisa nova no capitalismo dos smartphones e aplicativos. É por isso que não dá pra ficar na disrupção. Disrupção é o mais recente nome adotado para as rupturas que o capitalismo cria para renovar seu domínio. Mas contra a exploração capitalista, só a revolução.

As informações acima estãoaqui.

Leia também: O Capital pode sofrer de apendicite?

7 de outubro de 2019

O “tai chi chuan” da resistência indígena

“Ideias para adiar o fim do mundo” é o mais recente livro de Ailton Krenak, líder indígena e ambientalista.

O apocalipse sempre esteve muito perto dos povos originais das Américas graças à fúria exploradora dos colonizadores europeus.

Tendo em vista essa terrível experiência, Krenak faz perguntas e imagina respostas:

Como os povos originários do Brasil lidaram com a colonização, que queria acabar com o seu mundo? Quais estratégias esses povos utilizaram para cruzar esse pesadelo e chegar ao século XXI ainda esperneando, reivindicando e desafinando o coro dos contentes? Vi as diferentes manobras que os nossos antepassados fizeram e me alimentei delas, da criatividade e da poesia que inspirou a resistência desses povos...

Krenak diz que os brancos chegaram aqui impondo a Bíblia, a cruz, o colégio, a universidade, a estrada, a ferrovia, a mineradora, a porrada. Mesmo assim, os indígenas continuam aí, resistindo.

É por isso que, em 2018, ao ser perguntado sobre o que aconteceria a seus parentes caso Bolsonaro fosse eleito, ele respondeu:

Tem quinhentos anos que os índios estão resistindo. Eu estou preocupado é com os brancos. Como que vão fazer para escapar dessa. A gente resistiu expandindo a nossa subjetividade, não aceitando essa ideia de que nós somos todos iguais.

Afinal, diz ele, “ainda existem aproximadamente 250 etnias que querem ser diferentes umas das outras no Brasil, que falam mais de 150 línguas e dialetos”.

É toda essa resistência na diversidade que o faz recomendar que adotemos uma espécie de “tai chi chuan” da luta indígena: “Quando você sentir que o céu está ficando muito baixo, é só empurrá-lo e respirar”.

Leia também: Povos indígenas: da autodemarcação à autodefesa

4 de outubro de 2019

Bacurau: a esquerda sem chão e sem lugar

“Bacurau”, de Kleber Mendonça e Juliano Dornelles, tem se prestado a diversas interpretações. Consensual mesmo seria seu caráter de resistência aos avanços da extrema-direita. Menos consensual é definir o que simbolizaria a pequena vila do sertão pernambucano.

Bacurau é uma comunidade digna e solidária, mas muito distante de qualquer abundância e conforto. O poder comunitário é, na verdade, dominado pela velha política encarnada no prefeito pilantra. Sua vigorosa unidade mostra-se vulnerável diante de ataques de inimigos próximos ou distantes.

Visto dessa forma, aquele lugarejo do agreste seria uma metáfora do Brasil governado pelos petistas.

E aí, surgem duas leituras contraditórias entre si. Em um polo, os que interpretam o filme como uma convocação à luta pela derrubada imediata do atual governo. No outro, aqueles que o veem como um chamado à mobilização pela vitória nas próximas eleições. 

Para tentar compreender essa polarização e toda sua complexidade, Bárbara d’Alencar Dragão escreveu “Bacurau e a esquerda anestesiada”, artigo publicado pelo portal Outras Palavras. Segundo ela, alguns podem ver o filme:

...como distopia já em curso. Outros, como utopia catártica. Em comum, a incapacidade para lidar com um real cada vez mais diferente do imaginado. O sintoma não está na obra, mas na estranha recepção de boa parte do público.

Mas nem um e outro são distópicos ou utópicos, diz ela. São “atópicos”:

Sem lugar, em um mundo que os expulsa de dentro de si mesmo, mostrando que um dia este mesmo mundo não fora completamente deles, conforme tinham imaginado.

É verdade, grande parte da esquerda ficou sem lugar. Mas o restante também está sem chão. Esperemos que provisoriamente.

Leia também:
O que é o bicho humano para os conservadores

3 de outubro de 2019

Para além de falar e comer, viver

Recentemente, o sociólogo José de Souza Martins concedeu entrevista à IHU On-Line. Vale a pena ler na íntegra, mas um trecho interessante destaca um relato do antropólogo italiano Luigi Lombardi Satriani, filiado à tradição gramsciana. Trata-se de uma “lenda” da região da Calábria que diz o seguinte:

Era uma vez, uma enorme disputa entre o “falar” e o “comer”. O “falar” acusava o “comer” de ser nojento. Afinal, o “olhar” têm duas casas, o “ouvir” tem duas casas, mas o “falar” e o “comer” estavam enfiados numa mesma casa. O “falar” queria que o “comer” fosse embora. Desocupasse a casa porque o “falar”, sim, é nobre, mas o “comer” é repugnante. Nessa confusão, os dois resolveram falar com o rei Salomão, cuja justiça todo mundo conhece: é na base da espada, corta no meio e resolve. O “comer”, muito humilde, explicou que se as pessoas não comerem, não vão poder falar e fez um enorme discurso. O “falar”, por outro lado, depois de engolir um último bocado, disse que na vida da civilização comer não é importante. Aí o rei Salomão pensou e fez justiça: deu a boca dos ricos para o “falar”, porque o problema dos ricos não é comer, é falar. E deu a boca dos pobres para o “comer”, porque o problema dos pobres não é falar, é comer.

Para Martins, esse relato expressaria “uma consciência precisa das diferenças sociais”. E é essa precisão, diríamos, que pode transformar seu tom conformista em ponto de partida para a superação dessas falsas polaridades impostas a partir de cima. Afinal, a gente não quer só comida...

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2 de outubro de 2019

Sem “recall” para o capitalismo

O Financial Times, considerado a "bíblia" do jornalismo econômico, lançou, em sua edição de 18/09/2019, uma campanha pelo “recomeço" do capitalismo.

Em carta aos leitores, o diretor de redação do jornal admitiu que o sistema está "sob pressão".

A reportagem da BBC sobre o episódio cita outros neoliberais britânicos que chegaram a conclusões semelhantes.  

É o caso do historiador Thomas Babington Macaulay, para quem “é necessário reformar para preservar. É tempo para um reinício".

Já Paul Collier, professor de economia em Oxford, sugeriu o seguinte a seus companheiros conservadores: "Mova-se para a esquerda na economia e fale a língua do pertencimento". Tocante!

Nos Estados Unidos, Noah Smith, professor da Universidade Stony Brook, diz que a atitude em relação ao sistema é “reformá-lo e não revoltar-se contra ele”.

Por fim, Martin Wolf, o mais influente comentarista econômico neoliberal, foi pelo mesmo caminho em sua coluna do Financial Times:

O capitalismo não funciona mais. Há muita desigualdade, empresas que ignoram legalmente o fisco, monopólios digitais que dominam o mundo e estão fazendo as pessoas perderem a confiança no capitalismo democrático. Se continuarmos assim, o sistema corre o risco de não sobreviver.

Mas digamos que, tratando-se de capitalismo, a bagaça já tá toda muito bichada. Até porque o sistema sente uma atração inevitável e fatal pela barbárie.

Foi assim com Hitler, Mussolini, Pinochet. Está sendo assim com Trump, Órban, Bolsonaro, Boris Johnson. E mesmo os mais envernizados dos governantes, como Macron, preferem agradar os ricos e perseguir imigrantes a fazer alguma justiça social.

Com o capitalismo não tem jeito. Não adianta pedir devolução, só revolução.

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1 de outubro de 2019

Violência na história: a parteira e o carrasco

Para Walter Scheidel, a violência seria a grande responsável pelos raros períodos de diminuição da desigualdade social na história humana. Esta é a tese central de seu livro “A Grande Niveladora: Violência e a história da desigualdade da Idade da Pedra ao século 21”, sem edição no Brasil.

Marx dizia que a violência é “a parteira da história”. A afirmação faz todo sentido desde que feitas algumas considerações.

Nascimentos podem ocorrer sem parteiras, mas são impossíveis sem a mãe. E nesse caso o papel cabe à espécie humana, destinada a parir sua própria história. Além disso, fazer história para Marx é deixar para trás a pré-história da exploração e opressão das grandes maiorias pelas minorias. É fazer a espécie se reconhecer como digna de si mesma.

A igualdade social a que Sheidel se refere manifestou-se, geralmente, como colapsos sociais que resultaram de acontecimentos que fugiram ao controle humano: guerras, doenças, barbárie política.

Somente na modernidade, a busca pela igualdade social ganhou caráter consciente e foi entendido como direito a ser estendido ao conjunto da espécie. E apenas no século 20, essa busca foi assumida pelos únicos setores capazes de cumprir essa tarefa: os explorados, responsáveis pela subsistência do conjunto da humanidade, e suas revoluções transformadoras.

A maioria das revoluções comunistas foram iniciadas quase sem violência. Foi a reação conservadora a elas que provocou banhos de sangue e pariu ditaduras políticas. Foram tentativas de elevar a existência humana acima do rio bárbaro da história das sociedades de classes, logo afogadas.

Infelizmente, a parteira da história continua sendo importante porque à beira do leito materno há um carrasco.

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