Doses maiores

15 de dezembro de 2022

Muitas tréguas pra comemorar o Natal

Soldados combatendo em lados opostos, em plena guerra, resolvem fazer uma trégua para comemorar o Natal juntos. A situação aparece no filme “Feliz Natal”, de 2006, dirigido por Christian Carion. Em seu livro “Labirintos do Fascismo”, João Bernardo confirma esse e outros relatos parecidos.

No Natal de 1914, apenas cinco meses após o início da Primeira Guerra, tropas britânicas e alemãs estabeleceram uma trégua por conta própria para celebrar a data. Trocaram presentes, cantaram, jogaram futebol e caçaram “lebres onde antes se haviam caçado uns aos outros”.

Em 1915, o alto comando britânico estava decidido a não permitir a repetição do que se passara no ano anterior. Deu ordem para que na data natalina houvesse tiros de artilharia incessantes contra as trincheiras alemãs. Apesar disso, não conseguiu impedir as confraternizações.

No mesmo ano, na região de Reims, soldados franceses e alemães abandonaram em massa as trincheiras para festejar o Natal. Para obrigar as tropas a voltar para seus postos, os comandantes de ambos os lados ameaçaram mandar a artilharia disparar sobre os soldados misturados.

No início do inverno de 1916, perto do período natalino, ocorreram numerosos casos isolados de congraçamento, em setores da frente de batalha na Europa Ocidental. Mas situações semelhantes não eram desconhecidas no lado oriental da Europa. Em abril do mesmo ano, por exemplo, soldados de quatro regimentos russos estabeleceram uma trégua com tropas do Império Austro-Húngaro para festejar a Páscoa juntos.

Portanto, inimigos demonstrarem amor fraterno em plena guerra é até possível. Difícil é o mesmo acontecer em um país sob ataque dos fascistas como o Brasil.  

De qualquer maneira, boas festas!

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14 de dezembro de 2022

O quebra-cabeça e as cabeças quebradas

São muitas as peças a serem encaixadas. Ministérios disfuncionais, decretos absurdos, políticas públicas destruídas, órgãos inteiros abandonados, servidores perseguidos, números sem lógica.

No Congresso Nacional, o apoio a um governo de frente ampla exige alianças das mais razoáveis às mais temíveis. O espaço para traições e sabotagens é enorme. Fora dos palácios, a grande mídia faz de tudo para enquadrar o novo governo em sua agenda neoliberal e antipopular.

Mas algumas peças desse complicado quebra-cabeças são muito perigosas e de ajuste quase impossível. São peças de artilharia. Uma verdadeira derrama de armamentos ocorreu entre a população desde que o governo Bolsonaro facilitou sua aquisição.

O número de licenças para armas de fogo subiu 473% de 2018 a 2022, segundo dados do Anuário de Segurança Pública divulgados em junho passado. Antes, a população civil podia adquirir até 4 armas e 100 munições para cada arma por ano. Bolsonaro baixou portarias que permitem o acesso a até 60 armas e 180 mil munições, anualmente.

Os Colecionadores, Atiradores desportivos e Caçadores possuíam cerca de 648 mil armas, em junho de 2021, enquanto as Polícias Militares totalizavam 583 mil. Até novembro de 2021 havia no país um total de 2,3 milhões de armas registradas. Trata-se de um aumento de 78% em relação a 2018, quando havia 1,3 milhão de armas contabilizadas.

Com toda a violência que marca nossa sociedade há séculos, desarmar essa bomba-relógio não será fácil. Mas ficará impossível se seu principal estopim não for desativado. É o aparato sob controle dos generais infiltrado nas instituições militares e civis.

São essas as cabeças a serem quebradas...

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13 de dezembro de 2022

E a encrenca continua enorme

Durante a campanha eleitoral, Lula disse que o orçamento secreto tornara Bolsonaro um bobo da corte, pois transferiu ao Legislativo a prerrogativa do Executivo de gerir os gastos da União. Até o momento, as negociações do governo eleito com o Legislativo caminham para a manutenção do orçamento secreto.

O teto de gastos aprovado durante o governo golpista de Michel Temer representou a constitucionalização de uma política fiscal feita sob encomenda para os grandes capitalistas que dominam a economia nacional. A necessidade de extingui-lo deveria ser obrigatória em um governo disposto a recuperar minimamente a capacidade do estado de implantar políticas públicas capazes de diminuir a catástrofe social que se abateu sobre o país nos últimos 5 anos. Mas as negociações com o Congresso têm se limitado a discutir flexibilizações do teto, não seu fim.

Recentemente, foi anunciada a indicação de José Múcio Monteiro para o Ministério da Defesa do novo governo. O nome agrada a cúpula militar. O problema é que o indicado foi relator no processo do TCU que condenou Dilma Roussef pelas pedaladas fiscais usadas como pretexto para o golpe que a depôs. Também é alguém por quem Bolsonaro já disse publicamente ter se “apaixonado”.

Em recente encontro com Lula, representantes das centrais sindicais cobraram dele a indicação de um progressista para o Ministério da Fazenda. O presidente eleito respondeu: “O progressista do governo sou eu”.

É isso. Não se trata de um governo petista ou progressista, mas de “salvação nacional”. Resta saber se nessas condições há como salvar alguma coisa que não sejam os interesses dos mesmos poderosos que elegeram Bolsonaro em 2018.

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12 de dezembro de 2022

O que era pra ser nunca deixou de ser o que é

O que era pra ser eleições diretas, em 84, tornou-se eleição indireta, em 85. O presidente deveria ser o opositor Tancredo Neves. Acabou sendo seu vice, criatura da ditadura supostamente derrotada.

O que era pra ser uma anistia que faria justiça às vítimas dos generais ditadores, garantiu impunidade aos que as perseguiram e torturaram.

Era para ser uma nova constituição que assegurasse conquistas sociais. Muitas delas ficaram no papel, mas manteve-se a tutela militar sobre o poder civil.

Era pra ser Lula presidente em 89, representando uma década de lutas populares radicalizadas. O eleito foi um nordestino corrupto com o decisivo e fraudulento apoio da oligarquia sudestina.

Fracassada a aventura mafiosa collorida, o que era pra ser uma vitória eleitoral de Lula foi abortada pelo Plano Real. As perdas salariais foram congeladas e os conflitos sindicais neutralizados. A dívida externa transformada em dívida pública passou a saquear orçamentos como os da Educação, Previdência e Saúde. Bilhões de reais dos cofres públicos passaram a ser apropriados diariamente por rentistas nacionais e estrangeiros.

O PT só chegou ao poder após o neoliberalismo desarmar os movimentos populares e domesticar a esquerda institucional. O poder público transformado em dócil gerente da austeridade fiscal.

Todas essas contradições se acumularam até que a crise econômica mundial passou de “marolinha” a “tsunami”. E o que era pra ser Dilma reeleita, em 2014, tornou-se um golpe liderado por seu vice, em 2016.

Era pra ser Bolsonaro reeleito e o fascismo consolidado. Felizmente, Lula não permitiu. Mas continuamos dependendo do que era pra ser, enquanto as coisas nunca deixaram de ser o que são.

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8 de dezembro de 2022

 Tiktokização e ultraconservadorismo

“A dinâmica criada pelo Facebook é percebida como pré-histórica e nem mesmo 20 anos se passaram desde sua invenção”. Estas palavras são de Juan Gustavo Corvalán, diretor do Laboratório de Inovação e Inteligência Artificial da Universidade de Buenos Aires. Estão na reportagem “A ‘tiktokização’ dos negócios: como os algoritmos preditivos estão ganhando a batalha”.

A expressão “tiktokização” é obviamente inspirada no aplicativo TikTok, cujos algoritmos são considerados revolucionários “porque se ajustam aos detalhes de interesses e gostos além de qualquer outro algoritmo de conteúdo já criado”, explica um dos entrevistados pela reportagem.

Outro aplicativo semelhante é o Shein, utilizado para compras de vestuário. Considerada "irmã do TikTok", a empresa analisa os sites dos concorrentes para descobrir o que está em alta. Em seguida, cria designs rapidamente, prevê a demanda e ajusta o estoque em tempo real. “Assim como o Tiktok antecipa o conteúdo que você vai querer assistir, a Shein antecipa as roupas que você vai querer comprar”, diz a matéria.

Mas o conceito de “tiktokização” também pode caracterizar outro processo, decorrente do primeiro. Tal como já ocorre com o veterano Facebook, a principal função dessas tecnologias é puramente comercial, mas seus efeitos sociais deletérios continuam indo muito além.

Essa dinâmica voltada para o consumismo e diversão alienada contamina a chamada “esfera pública”. Ideias, propostas, convicções, passam a valer por sua capacidade de circulação, não por sua legitimidade social. No vazio de debates, a ausência de sentido se impõe. Surgem ressentimentos, preconceitos, intolerância. As aparências passam a ser o valor supremo. São ingredientes fundamentais para o surgimento de alternativas ultraconservadoras. É o algoritmo a serviço do pior.

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7 de dezembro de 2022

China: concentração de poderes (e de problemas?)

A extensão do governo de Xi Jinping não é uma grande surpresa. Mao Tsé-Tung permaneceu no poder por aproximadamente 30 anos, assim como Deng Xiaoping. A novidade é a forma como ele se mantém no poder. Mao Tsé-Tung continuou no poder como presidente do partido. Deng Xiaoping foi nomeado presidente da comissão militar. Mas Xi Jinping se mantém no poder mudando as regras e impondo um novo sistema sob seu controle exclusivo. Esta não é uma diferença pequena. 

As palavras acima são de Francesco Sisci, pesquisador da Universidade Popular da China. Estão em uma recente entrevista sobre a reeleição de Xi para um terceiro mandato como secretário-geral do Partido Comunista, presidente da República e chefe da Comissão Militar Central. Um acúmulo de cargos poderosos sem precedentes.

Sisci vê nessa concentração de poder um sinal de que os governantes chineses “estão em grande dificuldade, porque julgaram mal uma série de questões e opiniões e agora se sentem perdidos”. Precisaram apertar o controle para melhor responder a possíveis crises, afirma.

Segundo o entrevistado, os maiores erros relacionam-se à situação externa, envolvendo Rússia, Ucrânia e Estados Unidos. A questão, diz, não é “se a Rússia sucumbirá, mas quando”. Além disso, Sisci vê instabilidades em regimes aliados, como o iraniano. Desse modo, a China estaria ameaçada “de ser sitiada por países hostis”, conclui. 

A análise destoa de várias outras, que veem na aproximação russo-chinesa a formação de um polo estável e poderoso. O problema é que o gigantismo da economia chinesa não permite grande margem para erros graves. Inclusive, por seus possíveis efeitos desastrosos para o resto do mundo.

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5 de dezembro de 2022

Os algoritmos e os ovos da serpente fascista

O Facebook tem 2,96 bilhões de usuários ativos mensais. O Instagram, 1,28 bilhão. E o WhatsApp, 2 bilhões. Os três são controlados pela holding Meta, de Mark Zuckerberg, e alcançam mais da metade da população on-line do planeta.

As informações acima estão em artigo de Pedro Doria. Publicado recentemente no Globo, o texto aborda as dificuldades enfrentadas pela Meta que a levaram a demitir 13% de sua força de trabalho.

Uma semana depois, outra coluna do mesmo autor informava que “sinais vindos do Vale do Silício” apontam “para a pior crise do mundo da tecnologia desde o estouro da bolha das ponto-com em 2000”.

Referia-se a grandes demissões em empresas como Snpachat, Netflix, Twitter e Amazon. “Todas demitiram mais de 10% da tropa”, diz Doria. Mesmo quem não demitiu, como Apple e Google, pararam de contratar, complementa.

Mas para o articulista está tudo bem. Afinal, “pessoas perdem seus empregos, a economia se contrai, uma recessão está com toda a cara de que vem por aí. Quem conseguir equilibrar suas contas é quem sobreviverá”.

Exemplo perfeito de fé irresponsável nos mecanismos de correção do todo poderoso mercado. Um fanatismo que despreza não apenas os desempregados da vez, mas os desastrosos efeitos que uma nova recessão mundial pode causar.

Segundo essa lógica, trata-se apenas das periódicas crises de ajuste típicas do capitalismo. O problema é que, em geral, elas aprofundam a barbárie social e ajudam a fortalecer o conservadorismo mais extremado.

Mas nesse caso específico, os algoritmos com que lucraram várias dessas empresas também funcionaram como ninhos onde foram chocados muitos ovos de serpentes fascistas.

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2 de dezembro de 2022

A paz dos banqueiros e a paz dos cemitérios

Em seu livro “Labirintos do Fascismo”, João Bernardo comenta o que considera um dos episódios menos conhecidos da segunda guerra mundial. Envolve o Banco de Compensações Internacionais (BCI), instituição criada na Basileia, Suíça, em 1930. Sua função era permitir que os bancos centrais dos vários países cooperassem tecnicamente sem intromissões políticas. Ainda hoje, seu conselho de administração é composto por dirigentes de bancos centrais.

É muito provável que durante os seis anos de guerra não houvesse outro organismo onde os países inimigos estabeleceram oficialmente uma colaboração tão sistemática, afirma o autor. Nada mais lógico. Por um lado, é precisamente no plano financeiro que a internacionalização do capital chegou mais longe, já que o dinheiro circula muito fácil e velozmente. Por outro lado, no plano estritamente técnico, as operações envolvidas ficaram distantes dos olhos leigos das populações tão duramente afetadas por elas.

A existência do BCI reunindo pacificamente todas as partes das nações beligerantes prova que o capital estava já completamente globalizado.

Bem antes do final da guerra, a tecnocracia financeira do Reich se ocupava, juntamente com os seus colegas anglo-americanos, em definir o lugar da Alemanha vencida num mundo politicamente democrático e economicamente liberal. Os serviços de espionagem nacional-socialistas pressentiam os novos rumos ou até os conheciam e tomavam parte neles.

Era a concórdia reinando entre os capitalistas em suas salas acarpetadas, fossem liberais ou fascistas. Independente de suas nacionalidades, os donos dos meios de produção sempre tiveram uma única pátria, a do capital. Enquanto isso, para os soldados nas trincheiras e as populações bombardeadas nas cidades, a única paz possível sempre foi a dos cemitérios.

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1 de dezembro de 2022

Austeridade fiscal e fascismo, tudo a ver

O país precisa “de um homem à frente do governo capaz de dizer não a todos os pedidos de novos gastos” e realizar “reformas ousadas” para promover “a austeridade fiscal”. 

São necessárias também uma “redução drástica dos gastos sociais” e a “demissão de funcionários públicos”. Igualmente inadiáveis são o aumento das taxas de juros e um programa de privatizações.

Ao contrário do que possa parecer, as providências acima não dizem respeito ao consenso neoliberal, foi imposto à opinião pública mundial desde os anos 1980. O tal homem capaz de promover a austeridade fiscal era Benito Mussolini e o país em questão, a Itália de 1922. 

Recém-chegado ao poder, Mussolini foi saudado pelo jornal The Economist e pela revista Times.

Essas informações estão no artigo “A paixão dos liberais por Benito Mussolini”, de Clara Mattei, professora de Economia da Nova Escola de Pesquisa Social, de Nova Iorque. O texto mostra o quanto é falsa a oposição entre liberalismo e fascismo.

Clara é autora do livro “A ordem do capital: como os economistas inventaram a austeridade e abriram caminho para o fascismo”, ainda sem tradução do inglês. O título da obra recém-lançada diz tudo. 

Austeridade fiscal e fascismo têm tudo a ver. Um se alimenta do outro, há muitas décadas. Os desastres econômicos causados pela austeridade fiscal geram o enorme ressentimento social que alimenta os banquetes diabólicos dos fascistas.

Apesar disso tudo e após derrotarmos um governo fedendo a fascismo por todos os poros, os neoliberais cercam o candidato vencedor com propostas de... Adivinhem! Mais austeridade fiscal! O fascismo agradece, mantendo-se otimista quanto a um retorno em breve.

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