Doses maiores

30 de junho de 2022

Tristeza e revolta por Bruno e Dom

Nós, ativistas do Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato, hoje enterramos Bruno, nosso irmão mais velho. Hoje, a terra onde ele nasceu o recebe, seu corpo reencontra o barro, as raízes das plantas, a água e o calor do solo. Seu corpo carrega o perfume salgado do mar e o aroma denso da mata que ele defendeu até que os destruidores da floresta o mataram de forma traiçoeira. Nossos olhos misturam lágrimas de tristeza profunda e de revolta intensa. Mataram Bruno e seu amigo Dom à beira do rio Itacoaí, numa manhã de domingo de fim de inverno, quando ele voltava de uma temporada junto aos seus melhores amigos, junto aos seus melhores mestres, com os quais ele aprendeu a entoar os cantos da festa.

(...)

Nossa tristeza é imensa como o dossel da floresta, nossa raiva é forte como a raiz da castanheira. Nossa ternura é limpa e abraça a Bia, aos filhos de Bruno, a toda a sua família, a aldeia infinita dos seus amigos espalhados pelo mundo. De nossa parte, continuaremos a luta, estamos em guerra, não vamos parar! Onde cai um, surgirão muitos outros, tenham certeza, “simbora”, como diria Bruno. Não vamos esquecer quem verdadeiramente matou nosso irmão mais velho, jamais!

Os trechos acima são da “Nota de tristeza e revolta do Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato”. Belíssima homenagem, merece ser lida na íntegra.

Leia também: A resistência indígena desafia também a velha esquerda

29 de junho de 2022

Davos Men, novos parasitas do velho capitalismo

O autor do livro “Davos Man” pode ter as intenções mais louváveis. Mas delas, o inferno capitalista está cheio.

São justas as denúncias que Peter S. Goodman faz dos ricaços que frequentam o Fórum de Davos. Mas ele atribui as maldades desses homens a eles próprios e não ao sistema que os criou.  

Segundo Goodman, o capitalismo é “a forma mais avançada de organização econômica”. Só lhe faltaria “um mecanismo inerente que distribua com justiça os ganhos”. Uma responsabilidade de governos “operando sob um mandato democrático”.

Cita como exemplo a Grã-Bretanha, que teria reagido à depressão dos anos 1930, “construindo um modelo de bem-estar social que compartilhava os ganhos de seu poderio industrial”.

Mas foi a classe trabalhadora em sua luta contra a barbárie fascista que levou o capital a aceitar dividir uma fração de seus lucros. Mesmo assim, apenas durante um pequeno intervalo na história do capitalismo e em algumas poucas regiões do planeta.

Não há “mecanismo inerente de distribuição econômica justa” no capitalismo. A prova é exatamente a existência dos homens de Davos. Não há nenhuma grande contradição entre eles e o restante da burguesia mundial.

Bezos, Musk, Gates, Zuckerberg, Google, Uber apenas encontraram novas e mais sofisticadas formas de parasitar o trabalho de bilhões de pessoas. Foi o aprofundamento do capitalismo que possibilitou isso, não sua negação.

Goodman diz que “recuperar o poder do Homem de Davos não requer insurreição ou revolução”. Apenas “o uso ponderado de uma ferramenta que sempre esteve presente: a democracia”.

É o contrário. Contra a exploração mais radical, só a mais radical das resistências.

Leia também: Davonianos: os bichos rasteiros que voam pelo espaço

28 de junho de 2022

Davonianos: os bichos rasteiros que voam pelo espaço

Em julho de 2021, Jeff Bezos subiu a bordo de um foguete em uma pequena cidade no oeste do Texas e voou para o espaço.

Após uma viagem de onze minutos, o dono da Amazon pousou e agradeceu a seus funcionários e clientes, “porque foram eles que pagaram” pela empreitada. Emocionado, afirmou ainda que “em duzentos anos, o sistema solar poderá suportar facilmente um trilhão de humanos”.

Bezos gastou US$ 5,5 bilhões em sua empresa espacial. Esse montante poderia salvar 14 milhões de pessoas da fome, não nos próximos dois séculos, mas agora. Em plena pandemia, também poderia fornecer dois bilhões de doses de vacina contra o COVID-19. E apenas uma pequena fração disso poderia financiar as licenças médicas que a Amazon cobra de seus funcionários como faltas ao trabalho que os adoece.

O relato acima está no livro “Davos Man”, de Peter S. Gooldman. É mais um exemplo do tipo de comportamento dessa criatura que o autor batizou de “Homem de Davos”. Aventuras espaciais são uma obsessão da espécie. É o caso de Elon Musk, com sua SpaceX e planos para colonizar Marte.

O fato é que as bilionárias fantasias intergalácticas desses senhores são financiadas por coisas muito terrenas. Por exemplo, pela exploração de seus trabalhadores e pela sonegação sistemática de impostos. No caso de Musk, envolve também o apoio ao golpe de estado na Bolívia, ocorrido em 2019, de olho nas maiores reservas de lítio do mundo.

A despeito de suas ambições aeroespaciais, esses “davonianos” são, na verdade, os bichos mais rasteiros e repugnantes que o capitalismo poderia parir.

Concluiremos na próxima pílula.

Leia também:
Os heróis de Davos lucram com doença e morte
Ora, (direis) explorar as estrelas!

27 de junho de 2022

Os heróis de Davos lucram com doença e morte

Na pandemia, em muitos, muitos casos pelo mundo, os heróis foram os altos executivos. Foram eles que deram um passo à frente com seus recursos financeiros e seus recursos corporativos, seus funcionários, suas fábricas e agiram rapidamente, não com fins lucrativos, mas para salvar o mundo.

As palavras acima são de Marc Benioff, fundador da Salesforce, gigante do Vale do Silício, em pronunciamento feito em janeiro de 2021, no Fórum Econômico Mundial, em Davos, Suíça. Ele é um típico “Davos Man”, protagonista do livro de Peter S. Goodman. O depoimento mostra que a modéstia não é o forte da espécie. Falar a verdade também não.

No final de 2021, a riqueza total desses “heróis” magnatas tinha aumentado em US$ 3,9 trilhões. Enquanto isso, cerca de 500 milhões de pessoas haviam caído na pobreza. As empresas farmacêuticas demonstraram competência na criação de vacinas, admite Goodman. Mas ao custo de elevar os preços da maior parte de outros medicamentos que poderiam ter salvo a vida de centenas de milhões de pessoas, adverte ele.

Na primeira metade de 2020, em plena crise sanitária, a Amazon de Jeff Bezos vendeu US$ 164 bilhões, ou mais de US$ 10 mil por segundo, graças ao fechamento de lojas físicas.

Entre abril e agosto daquele ano, 60 mil americanos estavam se infectando diariamente, lotando hospitais e necrotérios. Mas a Amazon estava cobrando US$ 39,99 por um pacote de cinquenta máscaras descartáveis, que geralmente eram vendidas por US$ 4. Já o sabonete antibacteriano, que normalmente custava US$ 1,49, passou para US$ 4,00.

Os heróis do capitalismo mais avançado são assim. Por que a surpresa?

Leia também: A pandemia de Davos

24 de junho de 2022

A pandemia de Davos

O Homem de Davos emergiu do triunfo da Guerra Fria para saquear os avanços materiais da paz, privando os governos dos recursos necessários para servir seu povo.

Vendeu a austeridade como uma virtude e a impôs aos gastos sociais dos governos, cortando educação, habitação e saúde. Espalhou a ideia de que os países mais ricos do mundo não podiam fornecer assistência médica, educação e transporte público confiáveis. Forjou acordos de comércio internacional que geraram oportunidades magníficas para si mesmos. Atacou os sindicatos e transferiu o trabalho para países de baixos salários, enquanto rebaixava os empregos formais a trabalho precário. Desregulamentou o sistema financeiro, desencadeou uma crise financeira global e foi salvo com dinheiro público.

A caracterização acima é de Peter S. Goodman, no livro “Davos Man”, sobre os poucos ricaços que controlam a economia global. Mas ele não atribui todos esses problemas ao capitalismo. Ao contrário, afirma que desde que foi “sequestrado pelo Homem de Davos, o capitalismo não é realmente capitalismo”. Seria um “estado de bem-estar social dirigido para o benefício das pessoas que menos precisam”.

Ao mesmo tempo, Goodman considera que nada disso é inevitável. Afinal, diz, como toda crise, “a pandemia apresenta uma oportunidade para o público se mobilizar em busca de interesses mais amplos, revivendo o tipo de capitalismo que conhecíamos antes”.

Mas o próprio autor mostra como o vírus é utilizado pelo “Davos Man” como oportunidade para contornar regulamentações governamentais, impedindo a “distribuição justa dos ganhos econômicos”.

A verdade, porém, é que o Covid é só um elemento da verdadeira grande pandemia que precisa ser erradicada: o capitalismo.

Continua...

Leia também: A mentira cósmica dos Homens de Davos

23 de junho de 2022

A mentira cósmica dos Homens de Davos

Na condição de jornalista, Peter S. Goodman participou de dez edições do Fórum Econômico Mundial, que acontece anualmente em Davos, na Suíça.  É essa experiência e as conclusões que tirou dela que estão no livro “Davos Man”, ainda sem tradução do inglês. Abaixo, algumas informações retiradas da obra.

“Comprometidos em melhorar a situação do mundo”. Essas palavras estão por toda parte em Davos, diz Goodman. Impressas em faixas penduradas nos postes, em todas as paredes de todas as salas de reunião e nas bolsas de computador brindadas aos jornalistas presentes ao evento, que as recebem como autênticos símbolos de poder.

A fortuna coletiva dos participantes da edição de 2020 foi estimada em meio trilhão de dólares. As pessoas que se reúnem nos Alpes são, por qualquer critério, os grandes vencedores do capitalismo mundial. Suas fortunas estupendas, suas marcas e sua posição social estão intimamente entrelaçadas com o sistema econômico, tornando duvidoso seu compromisso com “melhoria”. Uma palavra que implica mudanças.

“Essa é a magia de Davos”, disse um executivo do Fórum a Goodman. “É a maior operação de lobby do mundo. As pessoas mais poderosas se reúnem a portas fechadas, sem qualquer responsabilidade, e escrevem as regras para o resto do mundo”, admitiu cinicamente o entrevistado.

A unir esses homens, diz o autor, está o que ele chama de “Mentira Cósmica”:

...a ideia sedutora, mas comprovadamente falsa, de que cortar impostos e desregulamentar mercados não apenas produzirá riqueza extra para os mais ricos, mas distribuirá os benefícios para as massas felizardas. Algo que, na vida real, aconteceu exatamente zero vezes.

Nas próximas pílulas, a mentira continua.

Leia também: As criaturas repulsivas e parasitárias do Fórum de Davos

22 de junho de 2022

As criaturas repulsivas e parasitárias do Fórum de Davos

O termo “Homem de Davos” foi cunhado, em 2004, pelo cientista político Samuel Huntington. Ele o usou para descrever aqueles “tão enriquecidos pela globalização e tão nativos de seu funcionamento que podem ser considerados apátridas”. Seus interesses e riquezas fluindo através das fronteiras, suas propriedades e iates espalhados por todos os continentes, seu arsenal de lobistas e contadores eliminando a lealdade a qualquer nação em particular. Huntington referia-se a qualquer pessoa que viajava regularmente a Davos para participar do Fórum Econômico Mundial, validando sua posição entre os vencedores da vida moderna. São homens bilionários predominantemente brancos que exercem imensa influência sobre o mundo político.

A descrição acima está no livro “Davos Man: How the Billionaires Devoured the World”, de Peter S. Goodman, ainda sem tradução do inglês. Minha missão, diz ele, é ajudar os leitores a entender essa criatura rara e notável. Um predador que ataca sem restrições, sempre com a intenção de expandir seu território e apoderar-se do alimento dos outros, enquanto se protege de represálias posando como um amigo simbiótico de todos.

Goodman está longe de ser anticapitalista. Ao contrário, para ele, o capitalismo “foi sequestrado” pelo Homem de Davos e precisa voltar a ser o tipo de capitalismo “justo e inovador que conhecíamos antes”.

Mas na condição de jornalista que participou de vários encontros em Davos, traz informações interessantes sobre essas criaturas que para além de raras, são repulsivas e parasitárias. Basta citar alguns nomes para entender de que se trata: Bill Gates, Elon Musk, Mark Zuckerberg, George Soros e Jeff Bezos.

Continua nas próximas pílulas.

Leia também: Fórum Social em Davos?

21 de junho de 2022

As ambições totalitárias da Google e Cia.

Em 17/06/2022, o colunista Pedro Doria escreveu sobre um recente encontro promovido por executivos do Google no Brasil. Eles anunciaram, entre outras coisas, “a criação de endereços numéricos, georreferenciados por mapas, para casas nas favelas brasileiras”.

“Em nosso País, comenta Doria, tem mais gente com celular do que gente com endereço, e ter endereço quer dizer poder fazer buscas de preços mais baixos para comprar online. A empresa vai distribuir também bolsas de estudo para quem quiser dominar tecnologia, aprendendo no nível técnico profissões do século 21”.

Ele admite que a Google “não está sendo bonzinho”. Afinal, afirma corretamente, trata-se de criar “mercado consumidor para seus produtos”. Mas, adverte, “a ideologia conduz a ação”. A Google “não vê só o andar de cima” no Brasil. Enquanto direita e esquerda são cegas para o potencial “empreendedor”, um monte de gente quer “montar um negócio, ser o próprio patrão, empregar gente”, diz Doria. E encerra perguntando: “Por que é preciso uma multinacional para que possamos enxergar aquilo que é evidente?”.

O colunista dá pouco destaque ao fato de que a Google está a serviço não apenas do “livre mercado”, mas do mercado livre de qualquer intromissão do Estado. Uma “ideologia” claramente a serviço das forças de direita. Portanto, não paira acima dos mundanos conflitos de esquerda e direita.

É mais do que isso. Gigantes como Google, Facebook, Twitter, Microsoft, Amazon não gostam de Estado. Mas atuam cada vez mais como um Estado totalitário mundial. E o fazem pelo consumo e pelo controle ideológico mais sutil, invadindo nossas casas e locais de trabalho por nossa própria iniciativa.

Leia também: Google e Amazon de olho nas oportunidades do apocalipse

20 de junho de 2022

Uma burguesia muito vagabunda e violenta

Em seu artigo O lumpen empresariado, publicado em 11/06/2022, Leonardo Avritzer comenta o episódio envolvendo o cancelamento pela corretora XP da publicação de uma pesquisa eleitoral que apontava a consolidação da liderança de Lula nas eleições presidenciais deste ano.

A empresa é uma das maiores do mercado financeiro nacional e, como lembra o autor, “aderiu, entusiasmadamente em 2018, à candidatura Jair Bolsonaro”, como se tratasse da candidatura favorável às forças do livre mercado.

Avritzer pergunta por que “o empresário brasileiro defende petróleo caro, nega pesquisas e aplaude um governo e uma proposta política que nega os princípios mais básicos do liberalismo econômico em torno do próprio liberalismo?”

Ele responde com a seguinte hipótese:

Formou-se no Brasil um lumpen empresariado. Marx no livro 18 Brumário falava de “lumpen proletariado” e o definia da seguinte forma: pessoas de “… duvidosos meios de vida e de duvidosa procedência, junto a descendentes degenerados e aventureiros da burguesia, vagabundos, licenciados de tropa, ex-presidiários, fugitivos da prisão, escroques, saltimbancos… etc.”. Nos dias que correm no Brasil, eu arriscaria dizer que essa definição retrata bem o empresariado bolsonarista e seus líderes.

Segundo ele, “não existe nada de liberalismo na representação conceitual desse grupo de empresários. Há apenas interesses econômicos de curto prazo, de predação e rentismo do Estado. A atitude da XP, representante por excelência dessa nova concepção de capitalismo extrativo e predatório”.

A definição faz sentido. Mas concorre com outras em circulação nos debates da esquerda. É o caso daquela que foi adotada pelo filósofo Paulo Arantes, que prefere caracterizar esse empresariado nacional tosco como representante de um “capitalismo jagunço”.

Leia também: O 18 brumário de Michel Temer

10 de junho de 2022

Black Power: a revolução negra e a revolução socialista

Charles V. Hamilton e Kwame Ture defendem no livro “Black Power” que as relações entre negros e brancos nos Estados Unidos são uma forma de colonialismo.

Em 1967, ano de lançamento da obra, já existiam muitos presidentes africanos, mas os autores lembram que os países por eles governados eram, na verdade, controlados por França, Bélgica ou Inglaterra, suas antigas metrópoles coloniais.

A Los Angeles da época tinha um prefeito afrodescendente, mas ele era tenente da polícia e o terrorismo policial racista aumentou. Se isso não é o mais puro neocolonialismo, perguntam eles, o que é?

Não pode haver ordem social sem justiça social. Por isso, dizem eles, os brancos devem ser levados a entender que precisam parar de mexer com os negros, ou os negros vão revidar! Isso é o Poder Negro, afirmam.

Segundo eles, lideranças políticas negras que defendem uma atuação pacífica conseguem, no máximo, recompensas simbólicas que a parte rica da sociedade está disposta a conceder. Por isso, uma luta “não-violenta” é “um luxo que os negros não podem ter”.

Lembram que, certa vez, Malcolm X disse: “A revolução é sangrenta. Não conhece nenhum compromisso. Derruba e destrói tudo em seu caminho.”

Mas para os negros dos Estados Unidos, afirmam, mesmo a luta por reformas tem sido sangrenta. Portanto, derramamento de sangue não é um obstáculo para a revolução. “Nosso obstáculo é a falta de organização política de massa”.

Hamilton e Ture dizem que não defendem reformas para evitar a revolução. Em vez disso, pretendem que elas ajudem a avançar rumo à “revolução africana e, consequentemente, rumo à revolução socialista mundial”.

Leia também: Poder negro contra o colonialismo

9 de junho de 2022

Poder negro contra o colonialismo

Em seu livro “Black Power”, Charles V. Hamilton e Kwame Ture tratam o racismo institucional reinante nos Estados Unidos como um tipo de “colonialismo”.

Segundo eles, os chefes políticos brancos governam a comunidade negra da mesma forma que a Grã-Bretanha governava as colônias africanas: por governo indireto. A estrutura de poder branca domina a comunidade negra através de negros que aceitam esse papel de meros fantoches.

A atuação de associações de italianos e irlandeses, por exemplo, é respeitada como parte do jogo democrático. A união de negros em defesa de seus direitos é vista como uma ameaça à nação. Suas organizações estão sempre a um passo de serem considerados terroristas.

A estrutura de poder colonial colocou sua bota no pescoço dos negros e quando eles tentam se livrar dessa situação são acusados de “não estarem prontos para a liberdade”. A emancipação legal dos escravos jamais mudou a mente dos racistas. Eles acreditam em seu pretenso status superior, não em documentos de papel.

Dizem que vivemos todos em uma só nação, lembram os autores. Mas se essa nação falha em proteger seus cidadãos, ninguém pode condenar aqueles que recorrem à autodefesa para se preservar. Afinal, perguntam, quem não defenderia sua família e seu lar de um ataque?

É por isso que defendemos a necessidade de um Poder Negro, afirmam. Não há como fazer valer a liberdade e a dignidade da população negra se não a partir de uma posição de força. Enfrentando os opressores como aquilo que são: inimigos.

O livro foi lançado em 1967, em plena batalha por direitos para os negros estadunidenses. A guerra continua.

Leia também: O racismo como dominação colonial

8 de junho de 2022

O racismo como dominação colonial

Escrito em 1967, no auge da luta antirracista nos Estados Unidos, “Black Power” é um livro fundamental para a luta dos negros em todo o mundo. Seus autores são Charles V. Hamilton e Stokely Carmichael (ou Kwame Ture). Ambos estavam na linha de frente no combate aos “supremacistas brancos” quando escreveram a obra. Ture, por exemplo, integrou os Panteras Negras.

É neste livro que o conceito de “racismo institucional” aparece pela primeira vez. Segundo os autores, o racismo individual consiste em atos ostensivos de racistas isolados que causam morte, lesão ou destruição violenta de propriedade. Pode até ser gravado por câmeras de televisão, por exemplo.

Há, porém, um racismo menos evidente, mas talvez ainda mais nocivo. Indivíduos “respeitáveis” nunca plantariam uma bomba em uma igreja.  Nunca apedrejariam uma família negra. Mas apoiam autoridades e instituições políticas que mantêm e perpetuam políticas institucionalmente racistas.

Ao contrário do que se costuma dizer, afirmam eles, não há uma questão racial dividindo a nação estadunidense. O fato é que os negros formam uma colônia dentro do país, e não é do interesse do poder colonial libertá-los. Ou seja, o racismo institucional tem outro nome. Chama-se “colonialismo”.

Sem dúvida, esse é outro conceito fundamental apresentado por Carmichael e Ture. Mas ele já era antecipado num artigo de Lênin, de 1917, no qual afirmava-se que negros, mestiços e índios deveriam ser considerados uma nação oprimida dentro dos Estados Unidos.  

E como ensinaram Washington, Jefferson e outras heróis estadunidenses que jamais foram comunistas ou bolcheviques, nações oprimidas só se libertam entrando em confronto aberto com seus opressores.

Continua na próxima pílula.

Leia também: Palmares durou mais que a União Soviética

7 de junho de 2022

Palmares durou mais que a União Soviética

O bolsonarismo não criou qualquer tipo de violência nova – a novidade agora é que um importante setor das classes dominantes já não se importa mais em maquiar sua aparência, ou iludir a opinião pública com urbanidades típicas da hipocrisia dos neoliberais. O que chamamos de “Brasil” sempre foi um genocídio racista estruturado no escravismo.

Com estas palavras, Erahsto Felício e Joelson Ferreira começam seu artigo “Paz entre nós, guerra aos senhores – uma tradição rebelde de alianças”.

Em seguida, afirmam: “A esquerda institucional brasileira já tentou seu caminho – com o máximo respeito que temos aos companheiros, é chegada a hora de tentar outro. É aí onde a longa história de rebeliões dos povos no território brasileiro ainda tem muito a nos ensinar”.

Eles se referem a Cabanagem, Balaiada, Praieira, Canudos, como “ações rebeldes construídas por meio da unidade dos povos”. Lembram que a Cabanagem, por exemplo, foi um movimento protagonizado pelos Sataré-Mawé, Mura, Mundurukus e outros povos indígenas. Aliados a pretos, cafuzos e brancos pobres lutaram contra o poder do latifúndio no norte do País.

Afinal, dizem, Palmares sobreviveu por 130 anos. “Uma experiência de resistência ao capitalismo mais longeva do que a União Soviética ou a China Popular”. A ciência por trás desta longevidade, e de sua capacidade rebelde, afirmam, está na aliança dos povos. A federação de quilombos, que impôs por tantos anos derrotas às potências imperiais da época, era formada por pretos e indígenas, assim como por brancos pobres e marginalizados.

Mas não se trata de qualquer aliança, advertem, por fim. É a unidade dos povos para vencer o capitalismo e o racismo.

Leia também: A resistência indígena desafia também a velha esquerda

6 de junho de 2022

Bolhas ideológicas e disputa de hegemonia

Em julho de 2020, Caio Almendra publicou o texto “Desdemonizando Bolhas”, sobre os desafios para uma comunicação de esquerda diante das vitórias da extrema-direita. Um ponto importante do texto é a tão comentada necessidade de a esquerda “furar as bolhas” alheias.

Segundo o texto, a influência entre as “bolhas” se dá por um processo viral. Tais processos se estruturam a partir de ideias fortes que surgem em determinadas bolhas e conseguem “contaminar” outras, ampliando seu contágio paulatinamente. Em certos momentos esses elementos virais se adaptam à bolha hospedeira, em outros, são eles que adaptam o hospedeiro a suas necessidades. Mas tal como um vírus, eles se metamorfoseiam e se reproduzem sem deixar de ser o que são.

O potencial de viralização de um novo fenômeno social, portanto, afirma Almendra, não está na capacidade de seus adeptos de buscar furar as bolhas a partir da busca de pessoas e espaços distantes de si, mas da capacidade de engajar prioritariamente a própria bolha a ponto de estourá-la, contaminar bolhas próximas e, enfim, contaminar bolhas cada vez mais distantes.

Foi assim que a extrema-direita agiu. Como ele diz: “A extrema-direita foi mais radical/extremista, enquanto todos discursavam para a esquerda buscar uma mediação com o centro. A extrema-direita buscou crescer dentro das próprias bolhas. Ela não negociou seu discurso. Ela não buscou diferentes e indiferentes. Ela radicalizou os iguais. E, ainda assim, ela foi vitoriosa.”

Ou seja, trata-se da velha e necessária disputa de hegemonia, para a qual nunca existiram atalhos. Ainda mais, se consideramos que o ambiente em que o vírus fascista surgiu e se reproduziu continua intacto.

Leia também: Ganhando eleições, perdendo hegemonia

3 de junho de 2022

A globalização atravessada por muros

“Em novembro de 1989, o Muro de Berlim caiu. Sua demolição era o prenúncio do fim das fronteiras duras em todos os lugares, diz Frank Jacobs em recente artigo. Mas no final da Guerra Fria, continua ele, existiam apenas 15 muros que separavam os países uns dos outros. Hoje, há pelo menos 70 fronteiras muradas no mundo”.

Esse “Mundo Murado” é composto por nações que, em 2009, representavam apenas 14% da população mundial, mas ganhava 73% de sua renda. Já na região fora dos muros, vivam 86% da humanidade, que ficavam com apenas 27% da renda mundial.

A renda média mensal intramuros é de cerca de 2.500 euros. Fora, são 150 euros. Dinheiro compra qualidade de vida. Das 50 maiores cidades do mundo em termos de qualidade de vida, 49 estão dentro do muro. Cingapura é a exceção.

Alguns exemplos desses muros: a Zona Desmilitarizada entre Coreia do Norte e Coreia do Sul. Cerca de 3.100 km de muros na fronteira EUA-México, construídas desde a administração Clinton. A barreira da Margem Oeste, construída por Israel para isolar os palestinos. Os 99 “Muros da paz” em Belfast, na Irlanda do Norte. A Índia está construindo uma cerca de 4 mil quilômetros de arame farpado ao redor de Bangladesh. Nos últimos anos, os “muros de segurança” subiram em Cabul, Bagdá, Cairo e Síria. Jacobs cita também condomínios brasileiros, como o já antigo Alphaville, em São Paulo.

Esses exemplos mostram que as pretensa benesses da globalização capitalista jamais valeram para as populações pobres. Falta pouco para que fossos voltem a ser cavados em torno de velhos e novos castelos.

Leia também: Ao século 15: fossos e jacarés

2 de junho de 2022

Lélia Gonzalez, falando em bom pretuguês

“Eu sou uma mulher nascida de família pobre, meu pai era operário, negro, minha mãe uma índia analfabeta”. É assim que Lélia Gonzalez inicia uma entrevista concedida para a Revista Z Cultural, em 1980. 

Grande intelectual e militante do feminismo e do movimento negro, Lélia tinha entre suas grandes preocupações o papel da língua como elemento de disputa da hegemonia. Daí porque tenha criado palavras como "pretuguês", referindo-se ao idioma falado no cotidiano brasileiro. Ou “Améfrica-Ladina”, para evidenciar um continente muito menos europeu do que se acredita.

Entre suas principais referências teóricas, está a psicanálise, que nos ensinou a prestar mais atenção ao que permanece calado e a não se deixar enganar pela pretensa neutralidade da linguagem. Em 1984, lembrando que a psicanálise encontra seus elementos mais valiosos na lata de lixo da lógica, ela escreveu em seu ensaio “Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira”:

...na medida em que nós negros estamos na lata de lixo da sociedade brasileira, pois assim o determina a lógica da dominação, caberia uma indagação via psicanálise. Por que o negro é isso que a lógica da dominação tenta (e consegue muitas vezes, nós o sabemos) domesticar? E o risco que assumimos aqui é o do ato de falar com todas as implicações. Exatamente porque temos sido falados, infantilizados (infans, é aquele que não tem fala própria, é a criança que se fala na terceira pessoa, porque falada pelos adultos), que neste trabalho assumimos nossa própria fala. Ou seja, o lixo vai falar, e numa boa. 

Infelizmente, após tantos anos, vozes como a dela continuam sendo caladas.

1 de junho de 2022

EUA e Ucrânia: uma cajadada, muitos coelhos

A guerra entre a Rússia e a Ucrânia já se arrasta por mais de três meses. Abaixo um pequeno resumo de um recente artigo de Chen Wenling, economista da Comissão Nacional de Desenvolvimento e Reforma, do governo chinês.

Os Estados Unidos iniciaram o conflito russo-ucraniano para "matar três coelhos com uma cajadada só": usar a Ucrânia como peão para provocar o conflito, fortalecendo, assim, uma OTAN controlada por eles; romper os laços entre a Europa e Rússia, para acelerar o fluxo do dólar estadunidense e, por fim, fornecer contratos lucrativos para os cerca de 4 mil grupos de lobby do complexo militar-industrial dos EUA.

Em 2020, 37,4 trilhões de metros cúbicos de gás natural da Rússia foram exportados para a Europa. Com o conflito, as empresas de gás natural estadunidenses podem assumir esse lucrativo mercado.

Os EUA arrastaram a União Europeia para a guerra impactando gravemente seu crescimento econômico. Além disso, há um alto risco de que o euro seja desvalorizado devido à guerra.

Os Estados Unidos declararam a China seu maior concorrente estratégico. Mas não estão prontos para uma guerra "quente", já que sua economia e a chinesa estão intimamente ligadas. Além disso, os estadunidenses ainda não fizeram progressos substanciais no fortalecimento de sua cadeia de suprimentos, principalmente na produção de semicondutores. Taiwan pode ajudá-los, mas esse plano ainda não foi concretizado.

Ela admite que o conflito russo-ucraniano pode afetar a China em vários aspectos, mas acredita que o impacto geral sobre a economia chinesa não será significativo.

Resta saber a que ponto chegará o massacre de coelhos nessa troca de cajadadas.

Leia também: Ucrânia: observações de um especialista chinês