Doses maiores

31 de julho de 2019

Povos indígenas: da autodemarcação à autodefesa

Abaixo, trechos de um recente comunicado dos Munduruku:

Nós o povo Munduruku do Médio e Alto Tapajós continuamos a autodemarcação do nosso território Daje Kapap Eipi, conhecido como Terra Indígena Sawre Muybu.

Eles relatam ter andado mais de 100 km para defender seu “território sagrado”. Como nossos antepassados, afirmam, “continuamos limpando os nossos picos, fiscalizando, formando grupos de vigilância e abrindo novas aldeais”.

Durante a missão, os indígenas expulsaram dois grupos de madeireiros, ao descobrirem “nossas árvores derrubadas e as nossas castanheiras como torra de madeira em cima de um caminhão”.

Eles deram três dias para os invasores retirarem todo o seu equipamento. As armas que utilizaram, dizem, foram “nossos cânticos, nossa pintura, nossas flechas e a sabedoria dos nossos antepassados”.

Apesar da singeleza dessas “armas”, os madeireiros foram expulsos. Algo que “nem o ICMBIO, IBAMA e FUNAI conseguiram”, relatam. E concluem:

Somos capazes de cuidar e proteger o nosso território para nossos filhos e as futuras gerações. Ninguém vai fazer medo e ninguém vai impedir porque nós mandamos na nossa casa que é nosso território. Estamos aqui defendendo o que é nosso e não dos pariwat. Por isso sempre vamos continuar lutando pelas demarcações dos nossos territórios. Nunca vão nos derrubar. Nunca vamos negociar o que é sagrado.

Será́ que vai precisar morrer outros parentes, como aconteceu com a liderança Wajãpi, para que os órgãos competentes atuem?

Mas se depender da “competência” oficial, os povos indígenas terão que passar da autodemarcação à autodefesa utilizando armas que não se limitem a cânticos, pintura e sabedoria. Infelizmente, prevalecerá a lógica da barbárie branca e capitalista.


30 de julho de 2019

Girar à esquerda sem moderação

A Folha de S. Paulo está publicando a série “Desigualdade global”, com números que evidenciam como a injustiça social atinge tanto países centrais, como periféricos.

E um dos aspectos destacados dos artigos são os efeitos políticos dessa situação. Em especial, com a eleição de governos de extrema-direita.

É o caso de Bolsonaro, Trump, Órban e Salvini. Figuras que usam valores ultraconservadores para explorar os ressentimentos das chamadas classes médias, que viram seus ganhos derreterem nas últimas décadas.

Foi nesse período que, segundo dados do Banco Mundial, mais de um bilhão de pessoas teria deixado a pobreza extrema no mundo todo.

Mas, desde a crise de 2009, aumentou a concentração de riqueza nas mãos do 0,001% mais rico do planeta, cuja renda saltou 235% em 40 anos. Um fenômeno que teria ocorrido, principalmente, às custas dos setores sociais intermediários.

Há quem lembre que, no Manifesto Comunista, Marx e Engels afirmaram que a pequena-burguesia seria engolida pela polarização entre burguesia e proletariado.

Na verdade, o Manifesto previa a perda da importância econômica dessas classes intermediárias, não seu desaparecimento. E isso vem se confirmando. Mas o papel de fiel da balança desses setores na disputa política continua importante.

O problema é que, enquanto a esquerda tentar atrair o apoio das classes médias moderando suas posições, a direita faz o mesmo radicalizando as dela.

Com isso, a esquerda acaba preservando o essencial da dominação da direita, enquanto a direita busca simplesmente aniquilar a esquerda. Inclusive, fisicamente.

Muito difícil apresentar respostas adequadas para essa situação. Mas o mais provável é que elas não envolvam qualquer moderação ideológica por parte da esquerda.

29 de julho de 2019

A resistência dos explorados expande horizontes

Há quem diga que a atual situação de estagnação da economia mundial em breve dará lugar a outro momento de expansão, criando empregos e elevando a renda.

Não é isso o que sugere a realidade do último meio século. Momentos de crescimento econômico realmente ocorrem ciclicamente, mas beneficiando cada vez menos gente. Concentrando mais renda e reservando a minorias minúsculas a vida digna prometida pelo livre mercado.

O fato é que o capitalismo está preso a uma tendência de fabricar lucros gigantescos, empregando cada vez menos força de trabalho. Vejamos um exemplo retirado de “The Age of Surveillance Capitalism” (A era do capitalismo de vigilância), de Shoshana Zuboff.

Nesse livro, ainda sem tradução, a autora mostra como as maiores empresas do mundo empregam pouca gente, em comparação a seu gigantesco valor de mercado.

Desde o momento em que passaram a vender ações em 2016, o valor de mercado da Google e do Facebook disparou. A Google alcançou U$ 532 bilhões e o Facebook atingiu U$ 332 bilhões. A Google emprega pouco mais de 75 mil pessoas e o Facebook cerca de 18 mil.

Enquanto isso, a General Motors levou quatro décadas para alcançar seu maior preço de mercado: U$ 225 bilhões, em 1965. Mas empregava, naquele momento, 735 mil trabalhadores.

Felizmente, nem esses grupos tão poderosos estão livres da luta de classes. Em maio passado, por exemplo, ocorreu uma “paralisação feminina” em várias sedes da Google pelo mundo contra disparidades salariais e denúncias de assédio sexual.

Os ciclos das lutas da classe trabalhadora, sim, são os únicos com potencial para verdadeiramente expandir os horizontes da humanidade.

Leia também: Doença e morte nas minas do trabalho uberizado

26 de julho de 2019

Um mar digital de estupidez

“Tecnologia, Ignorância e Violência” é um artigo de Pablo Rubén Mariconda, publicado pelo portal Outras Palavras. Seu tema principal é o caráter destrutivo da ambição humana pelo mais completo domínio da natureza.

O texto vale ser lido na íntegra, mas há um interessante trecho sobre o papel da ignorância nos tempos atuais.

Segundo Mariconda, “a todo conjunto de conhecimentos práticos e teóricos corresponde um conjunto, de certo modo, complementar de não conhecimentos práticos e teóricos”.

Um serralheiro, por exemplo, pode fabricar as dobradiças e a maçaneta de uma porta, mas irá recomendar a seu cliente que contrate um marceneiro para instalá-las. Ele sabe o que sabe, mas também sabe o que não sabe.

Mas, diz o autor, “quando não reconheço não saber algo, quando desconheço certa ignorância, ou mesmo quando minto saber”, há uma “diminuição drástica da atenção sensitiva e oral – a ponto de ampliar espantosamente a esfera da ignorância não mais reconhecida como tal, ou seja, a ignorância ignorada, que é também uma forma de embrutecimento racional”.

Embrutecimento racional? Sim, Mariconda está se referindo aos estragos causados pelas redes virtuais. Ao mundo da troca rápida e irrefletida de informação, acarretando alterações significativas de nossa percepção do mundo. Por exemplo, diz ele:

...dificuldade na determinação da autoria das informações ou notícias, ou seja, aparente anonimato do que se comunica; deslocamento emocional produzido pela mediação imagética da informação; transferência da memória; diminuição drástica da atenção sensitiva e oral.

Ele também cita o filósofo Herbert Spencer, para quem o conhecimento científico seria “como uma esfera que cresce mergulhada em um oceano de ignorância”.

Melhor vestirmos os coletes salva-vidas.

25 de julho de 2019

Inteligência Artificial e burrice ambiental

O uso da inteligência artificial vem se revelando extremamente problemático. Em recente artigo, Silvia Ribeiro pesquisadora do Grupo ETC, apresenta alguns exemplos:

Ao se basear em algoritmos determinados pelas metas comerciais dos desenvolvedores e seu contexto econômico e cultural, ela repete esquemas discriminatórios e racistas. Por exemplo, estão sendo usados sistemas de inteligência artificial em instituições bancárias - para avaliação de créditos, empréstimos, investimentos - e instituições judiciais, para administrar sentenças, locais de detenção, etc. Em ambos os casos, foi demonstrado que o sistema é discriminatório e racista: por exemplo, se a pessoa "avaliada" é negra ou latina nos Estados Unidos, o sistema avalia automaticamente como menos confiável e mais perigosa, supostamente baseado na porcentagem histórica de pessoas presas e/ou condenadas. Como esta já é uma base racista e discriminatória, a inteligência artificial a reafirma e a aumenta.

Mas, como mostra seu título, o tema do artigo é outro: “Inteligência artificial aumenta o caos climático”.

Ela cita um estudo que, entre outros exemplos, usa como referência um automóvel, que emite em média 57 toneladas de CO2 durante sua vida útil. Pois bem:

O treinamento de uma unidade de inteligência artificial capaz de decifrar e manejar a linguagem poderia emitir até 284 toneladas de carbono, cinco vezes mais. Isso significa cerca de 315 vezes as emissões de um voo de costa a costa dos Estados Unidos e 56 vezes o consumo médio de energia de um ser humano em toda a sua vida.

Então, sabe aquele discurso bonitinho das grandes empresas digitais, como Facebook, Apple, Microsoft e Google sobre fontes renováveis? Além de fake, é sujo.

24 de julho de 2019

Algoritmos socialistas? Pode ser

Um dos problemas mais complexos a desafiar os socialistas é o do planejamento econômico.

Como superar a anarquia irracional capitalista de modo a que as necessidades sociais sejam atendidas de modo equilibrado e socialmente justo? E como fazê-lo preservando o meio ambiente?

As soluções tentadas pelo estado soviético ficaram muito longe de responder a esse desafio. A resposta dos defensores do livre mercado aponta para o colapso social e ambiental.

Uma série de artigos publicada pelo portal Outras Palavras procura aprofundar esse debate a partir da utilização generalizada do algoritmo na vida contemporânea.

Em um dos textos da série, Cédric Durand e Razmig Keucheyan lembram que especialistas em planejamento do século passado entendiam que uma verdadeira alocação racional de recursos exigiria milhões de equações baseadas em milhões de dados estatísticos a partir de mais milhões de cálculos individuais.

Até que essas equações fossem resolvidas, as informações nas quais elas se baseassem se tornariam obsoletas e precisariam ser calculadas novamente.

Atualmente, porém, os autores avaliam que os avanços na área da computação permitiriam obter de forma centralizada e rápida uma “alocação ótima de recursos”. De modo que:

Contra todas as expectativas, os algoritmos podem ser socialistas. Assim como Engels afirma no Anti-Dühring (1878) que, com os trustes do final do século XIX, o mercado já dera lugar ao planejamento, agora é necessário levar a sério a suposição de que o Google, SAP ou Alibaba prefiguram uma organização econômica pós-capitalista.

Pode ser, mas a questão central continua a ser a mesma. O controle dos meios de produção desses algoritmos também precisaria ser socializado.

Leia também: Marx e Engels 4.0

23 de julho de 2019

O povo nordestino e a “ingnorânça” das elites

"Os Sertões” foi o tema do último Festival de Literatura de Paraty. Jorge Coli falou sobre o livro em sua coluna da Folha, publicada em 21/07/2019. Para o professor de história da arte da Unicamp, Euclides da Cunha foi traído por sua própria obra.

Segundo ele, o livro “torna-se intolerável quando nos deparamos com os raciocínios derivados das teorias racistas, então consideradas científicas”. Mas conforme avança a leitura, vão sendo desmentidas as teses inicialmente sustentadas pelo autor. Para Coli:

O livro execra o fanatismo dos revoltosos. No entanto, ao descrevê-lo, a admiração que sente por eles —corajosos, leais, inteligentes— anula a reprovação. Concebe o Exército como arma da civilização. Todavia, ao narrar suas manobras ineficazes e dolorosamente ridículas, ao detalhar a crueldade desumana de suas práticas, cujo apogeu foi a degola dos prisioneiros —a tremenda “gravata vermelha”—, expõe a campanha como uma estupidez e um crime: “Aquilo não era uma campanha, era uma charqueada”.

Já a crítica literária Walnice Nogueira Galvão, afirmou em sua participação em Paraty:

“Os Sertões” tem que ser lido todos os dias, enquanto persistir a situação dos pobres brasileiros. Enquanto ocorrer o genocídio dos jovens negros nas favelas de São Paulo, a militarização das comunidades do Rio de Janeiro, enquanto acontecerem tragédias como as de Mariana e Brumadinho.

É famosa a frase "o sertanejo é, antes de tudo, um forte”, presente na obra. Nesse trecho, Euclides descreve o nordestino baseado em pressupostos racistas. E encerra dizendo que se trata de um “homem permanentemente fatigado."

Deve ser porque a “ingnorânça” das eternas elites sobre, e contra, o povo nordestino cansa mesmo.

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22 de julho de 2019

Reactions: como o Facebook comercializa nossas emoções

Reportagem publicada recentemente pela Agência Pública revela o que está por trás daquelas “reactions” do Facebook que permitem ao usuário clicar em opções como “amei”, “hahaha” ou “triste”, além da tradicional ”curtir”.

A matéria cita um estudo sobre esses “recursos” feito pela pesquisadora Débora Machado, da Universidade Federal do ABC. A pesquisa analisou 39 patentes de ferramentas do Facebook voltadas para esse tipo de resposta.

A definição de uma dessas patentes, por exemplo, afirma que as características de personalidade deduzidas a partir das reações “são armazenadas junto aos perfis do usuário e podem ser usadas para mirar, ranquear e selecionar versões de produtos” a serem oferecidas a ele.

Outro exemplo é a patente que filtra postagens associadas a reações “desejadas”, como aniversários de postagens e de amizades. A partir disso, explica Débora, o Facebook pode privilegiar uma amizade em detrimento de outra ou dar preferência a certos tipos de publicações relacionados a determinados sentimentos. “E isso não necessariamente corresponde aos interesses do usuário”, afirma.

Claro que não. O objetivo, aqui, é apenas um: vender. Afinal, diz a reportagem:

Saber quais são as emoções dos usuários é útil para anunciantes. Os anúncios são a principal fonte de renda do Facebook, representando US$ 14,91 bilhões no primeiro semestre de 2019 – 98,8% da receita. Das 130 patentes com a palavra “emoção” registradas pela plataforma, 109 (84%) contêm também a palavra “propaganda” em suas descrições.

A pesquisa confirma o alto grau de manipulação implícita a que monopólios digitais como Facebook e Google sujeitam seus usuários.

E vai continuar sendo assim enquanto nos limitarmos a reagir, clicando a opção “Grrr”.

Leia também: Facebook, um psicopata de 15 anos

19 de julho de 2019

Inflação, deflação, ficção científica e marxismo

O título acima parece uma mistura meio delirante? Vejamos.

Em 2009, Mark Bould e China Miéville publicaram a interessante coletânea “Planetas Vermelhos: Marxismo e Ficção Científica”, ainda sem tradução do inglês.

No artigo “A singularidade está aqui”, Steven Shaviro compara “os dois lados do marxismo” com os gêneros literários ficção científica e romance policial.

Segundo Shaviro:

A oposição entre a perspectiva deflacionária do romance policial e a perspectiva inflacionária da ficção científica evoca uma tensão dialética no coração do marxismo, que é tanto inflacionária como deflacionária. A dimensão deflacionária é representada pela tentativa de destruir todas as ilusões necessárias ou úteis à preservação da sociedade de classes em geral e do capitalismo em particular.

Mas, diz Shaviro, o “marxismo também é inflacionário, insistindo que, apesar de admitir que a opressão de classe seja essencialmente coincidente com a história da raça humana, nem sempre precisa ser assim”.

Esse caráter expansivo do marxismo, afirma, decorreria de sua “recusa radical” em aceitar como inevitável a sociedade capitalista ou as sociedades de classes em geral.

Para ele, “se o lado deflacionário do marxismo é necessariamente moral e político, o lado inflacionário é necessariamente científico”. Ou seja, busca descobrir as leis históricas que permitiriam levar à emancipação humana.

Assim, poderíamos dizer que seria inflacionário tudo o que expande os horizontes da humanidade para o conjunto de seus membros, de forma igualitária e respeitada toda a sua diversidade.

Deflacionário, então, seria tudo o que encolhe nossas potencialidades. Por exemplo, aceitar que as sociedades humanas estão condenadas a se dividir entre explorados e exploradores.

E agora, será que o delírio faz algum sentido?

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18 de julho de 2019

Capitalismo de vigilância e neofeudalismo

Shoshana Zuboff é professora da Harvard Business School e autora de “The Age of Surveillance Capitalism” (A era do capitalismo de vigilância), ainda sem tradução.

A obra denuncia o enorme poder dos novíssimos monopólios digitais. Em especial, a Google. Mas também alerta para os traços neofeudais da atual fase do capitalismo.

Comecemos pelo que a autora chama de “primeira modernidade”. Trata-se do advento do capitalismo, que tornou a vida “uma realidade em aberto a ser descoberta e não uma certeza a ser encenada”. Assim, com o devido esforço, você poderia ter casa própria, automóvel e muitos eletrodomésticos.

Por volta da segunda metade do século 20, a "segunda modernidade" permite a centenas de milhões de pessoas acesso a experiências antes restritas a poucos: educação universitária, viagens, maior expectativa de vida, aumento do padrão de vida, amplo acesso a bens de consumo etc.

Já no final do século passado, surge o culto neoliberal ao esforço individual acima de tudo e todos. Mas com ele também veio uma enorme concentração de renda e patrimônio. Tornou-se flagrante o predomínio da riqueza herdada sobre a conquista meritocrática, tal como acontecia no feudalismo.

Mas como contradições nunca deixam de surgir, no início deste século, a internete se espalha pelo mundo. Traz consigo um enorme potencial de produção colaborativa e sociabilidade compartilhada. Expectativa rapidamente frustrada pelo surgimento de monstros digitais como Google e Facebook.

A esperança da autora é a fundação de uma “terceira modernidade” baseada em “um novo capitalismo digital racional”, apoiado “por instituições democráticas”.

Mas é mais fácil voltarmos ao feudalismo que combinar capitalismo com racionalidade e democracia.

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O risco de nos tornarmos peixes vermelhos

17 de julho de 2019

Do neoliberalismo ao neofeudalismo

Florestan Fernandes costumava referir-se à sociedade capitalista como “ordem social competitiva”. Um dos significados desse conceito remete à possibilidade de que seus integrantes mudem de classe social. Coisa muito rara nas sociedades anteriores.

Mas não são poucos os estudiosos que vêm apontando uma espécie de regressão da sociedade atual a padrões pré-capitalistas de mobilidade social. Um deles é Sighard Neckel, do Instituto de Sociologia da Universidade de Hamburgo, na Alemanha.

Suas conclusões são abordadas em reportagem de Carlos Drummond, publicada por CartaCapital, em 26/05/2019.

Segundo Neckel, multiplicam-se nas sociedades atuais “modos ‘neofeudais’ de distribuição da riqueza, reconhecimento e poder”. Para ele, as “classes superiores da sociedade dispõem de numerosas possibilidades de obter as mais altas rendas sem risco nem competição”.

Antes, as chances de “subir na vida”, “vencer”, “ficar rico” eram muito minoritárias, mas convincentes. Agora, tornaram-se fracas ilusões para a imensa maioria da população. E não apenas em países periféricos. Há muito tempo, a mobilidade social estagnou nos Estados Unidos e Europa.  

A regra é, cada vez mais, a origem em “berço de ouro”. E mesmo isso não garante coisa alguma. O bloqueio está na subida da escala social, não na queda.

Tudo isso é resultado da hiperconcentração de capital, turbinada por décadas de neoliberalismo.

Claro que o desaparecimento da ilusão da mobilidade de classe poderia levar ao reforço das lutas coletivas por mais justiça social. Mas as maiores chances são de essa frustração levar a uma guerra por migalhas entre os explorados.

Aumenta a assustadora perspectiva de barbárie social. E graças ao caráter planetário do capitalismo, ela ameaça a imensa maioria da humanidade.

Continua...

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16 de julho de 2019

A bomba-relógio da frustração social

Waldir José de Quadros é professor do Instituto de Economia da Unicamp. Estudioso da estrutura social do País, ele concedeu entrevista para a IHU-Online, publicada em 14/06/2019.

Utilizando dados da última pesquisa nacional domiciliar do IBGE, o professor concluiu que em 2016 encerrou-se o que ele chamou de período “de mobilidade ascendente e de progresso social” no Brasil.

Devido a isso, Quadros deixou de trabalhar com a categoria ‘“baixa classe média’. Estou chamando essa categoria de ‘camada superior dos pobres’, porque a crise está provocando um empobrecimento das estruturas sociais”.

Nessa nova classificação, a camada “superior dos pobres” equivaleria a 40% das pessoas ocupadas, 27% seriam “pobres” e 13%, “miseráveis”. No total, corresponderiam a 80% daqueles que trabalham.

Mas o mais “assustador”, diz Quadros, é que, segundo o nível de escolaridade, há 12,9 milhões de trabalhadores pobres com nível superior completo ou incompleto. Para ele:

Isso significa confusão. Esse pessoal não vai aceitar essa condição tranquilamente, porque eles foram fazer faculdade, boa parte pagando a mensalidade com o Fies, esperando uma melhora de vida, e agora não tem melhora.

Esta situação levaria à criação do que o pesquisador chamou de “bomba-relógio” social.

Aceitas essas conclusões, seria possível dizer que dois momentos marcaram a armação dessa bomba no Brasil: Junho de 2013 e as eleições de 2018.

Mas o próprio artefato explosivo é produto não apenas de uma das sociedades mais injustas do planeta, mas de um sistema mundial em franca decadência.

É o capitalismo cada vez mais parecido com formas históricas que o antecederam, como as sociedades de casta e o feudalismo. Voltaremos a isso.

Leia também: Uber: de volta ao século 19

15 de julho de 2019

A “Vaza Jato” muito antes dos vazamentos

Em novembro de 2015, numa troca de mensagens por celular, o procurador Deltan Dalagnol afirmou: “jornalista que vaza não comete crime”.

A frase apareceu no chamado escândalo da “Vaza Jato”. Trata-se de uma série de mensagens trocadas por meio digital entre o juiz Sérgio Moro e procuradores da república no âmbito da Operação Lava-Jato.

O material chegou aos jornalistas do The Intercept, em junho passado. A publicação de seu conteúdo colocou sob forte suspeita a isenção do trabalho dos membros da operação. Entre eles, o próprio Dalagnol, que passou a tentar criminalizar o vazamento das conversas.  

Mas, talvez, abordagens mais gerais esclareçam melhor a situação toda. É o caso de “A guerra de todos contra todos e a Lava Jato: a Crise Brasileira e a vitória do Capitão Jair Bolsonaro”, artigo assinado por sete professores universitários e publicado pelo Instituto de Economia da UFRJ.

O documento é longo, mas vale a leitura. Sua publicação antecede o vazamento das mensagens, mas este último apenas confirma as conclusões daquele sobre o viés político da Lava-Jato.

Abaixo, um trecho destaca o funcionamento do “mecanismo” colocado em prática pela operação, em artigo de Sérgio Moro, publicado em 2004:

Vazamento/publicidade para os meios de comunicação para gerar instabilidade deslegitimação política (Congresso e Executivo) legitimidade da operação junto à opinião pública (aumento do seu poder) pressão sobre às instâncias superiores do judiciário, em especial o STF, para que essas não coibissem a flexibilização das leis.

Atenção à última oração: para que o judiciário não coibisse a flexibilização das leis. Já estava tudo lá. Sem necessidade de vazamento algum.

Leia também: E eles só falam da Odebrecht...

12 de julho de 2019

Cuidado com o antifascismo oportunista

Christophe Guilluy é um geógrafo francês que enxerga em várias sociedades pelo planeta uma separação entre “os que estão integrados na economia globalizada e os que não, entre os que gozam de referências culturais de prestígio e os que não”.

Em entrevista publicada pelo portal Letras Libres, em 08/07/2019, ele discorre sobre esse tema, denunciando que alguns setores importantes da esquerda mundial abandonaram a centralidade dos conflitos de classe em favor de um identitarismo liberal.

Mas diante da onda conservadora que se espalha mundo afora, Guilluy também alerta para o risco de um antifascismo conveniente aos interesses dos poderosos:  

É assombroso ver que os intelectuais e as classes dominantes, por um lado, se esqueceram da classe trabalhadora e, por outro, utilizaram as minorias para se proteger. Eles as exploram e, por sua vez, a nova burguesia utilizou a arma do antifascismo para desestimular qualquer reivindicação social.

Referindo-se ao movimento dos coletes amarelos, que toma as ruas de Paris e de outras cidades francesas desde novembro de 2018, ele diz:

Quando surgiram, em seguia, dizia-se: são fascistas, são antissemitas... Era uma técnica retórica que permite deslegitimar qualquer reivindicação total, permite fazer com que a burguesia se proteja. Por isso, digo que, na atualidade, o antifascismo não é um combate contra o fascismo, mas, ao contrário, uma retórica que é uma arma de classe para se proteger das reivindicações sociais da classe trabalhadora.

Talvez, as conclusões de Guilluy se adequem melhor à situação europeia, mas é importante atentar para a possibilidade do surgimento desse antifascismo burguês entre nós. Se é que ele já não está por aí.

Leia também: Pra brigar, tem que entrar na arena

11 de julho de 2019

Economia mundial: sinais de catástrofe à vista

Em artigo recente, Walden Bello, professor de Sociologia da Universidade de Nova York, escreveu sobre a preocupante situação da economia mundial. Alguns trechos:

Os grandes bancos, que foram socorridos pelo governo dos Estados Unidos em 2008, se tornaram ainda maiores e os "seis grandes" bancos estadunidenses - JP Morgan Chase, Citigroup, Wells Fargo, Bank of America, Goldman Sachs e Morgan Stanley – possuem, coletivamente, 43% a mais de depósitos, 84% a mais de ativos e três vezes mais dinheiro do que antes da crise de 2008. Essencialmente, duplicaram o risco que derrubou o sistema bancário em 2008.

...os produtos que desencadearam a crise de 2008 continuam sendo negociados. Isso incluía cerca de 6,7 trilhões de dólares em títulos respaldados por hipotecas, cujo valor se manteve só porque a Reserva Federal comprou 1,7 trilhão de dólares. Os bancos estadunidenses possuem coletivamente 157 trilhões de dólares em derivativos, aproximadamente o dobro do PIB mundial. Isso é 12% a mais do que possuíam no início da crise de 2008.

...os operadores financeiros estão acumulando lucros em um mar de liquidez proporcionado pelos bancos centrais, cuja liberação de dinheiro barato para acabar com a recessão como consequência da crise financeira levou à emissão de trilhões de dólares de dívida, elevando o nível global da dívida para 325 trilhões de dólares, mais de três vezes o tamanho do PIB mundial. Há um consenso entre os economistas de todo o espectro político de que esse aumento da dívida não pode continuar indefinidamente sem causar uma catástrofe.

O problema é que dentre aqueles que são capazes de prever tamanha “catástrofe”, muitos trabalham por ela.

Leia também: Desesperadamente otimistas

10 de julho de 2019

Pequena divagação florestal

“É preciso enxergar a floresta e não apenas suas árvores”, dizem.

Sem dúvida. Mas, que floresta cerca, por exemplo, a árvore representada pela eleição de Bolsonaro em 2018? Ela compreende somente as fake news, o apoio das igrejas neopentecostais, o papel da grande mídia, a famigerada “facada”, a Operação Lava-Jato?

Certamente. Mas essa cartografia florestal pode deixar de fora as Jornadas de 2013? Momento que sinalizou o fracasso de um projeto político que equivocadamente contava com a concordância das classes dominantes para promover alguma justiça social no País?

Por outro lado, seria o malogro da aposta petista suficiente para definir os limites florestais que nos interessam? Ou grande parte de suas raízes não estariam na crise de 2008, quando começou a grande depressão em que caiu a economia mundial desde então?

Além disso, por toda a extensão dessa paisagem arbórea ouve-se um persistente ruído ao fundo. Ele é causado pela permanente demolição neoliberal do direito ao trabalho digno, desde os anos 1980, pelo mundo todo.

O fato é que floresta e árvores formam um todo contraditório que só pode ser compreendido de forma coerente em sua unidade dialética. Olhar apenas a floresta sem atentar para os elementos que a compõem também pode ser muito limitador.

Aparentemente, foi isso o que aconteceu no último período. O que julgávamos ser a floresta era apenas um de seus bosques. E o que pensávamos serem pequenas clareiras, já eram terra arrasada. Além disso, não percebemos que uma floresta é formada por muito mais que apenas suas árvores.

De qualquer maneira, precisamos reagir logo. As motosserras se aproximam rapidamente.

Leia também: Há séculos, um açougueiro no poder

9 de julho de 2019

O apocalipse como catástrofe ou revelação

Recentemente, o filósofo italiano Franco Berardi concedeu entrevista publicada em Outras Palavras. Seguem alguns trechos interessantes:

Em condições de aceleração e intensificação da infosfera, o tempo de elaboração cognitiva se faz cada vez mais breve e restrito. Por isso, a faculdade crítica, como a capacidade de discriminar o que é verdadeiro e falso, fica confusa e obscurecida. Não temos tempo para analisar intelectualmente, nem para elaborar emocionalmente, os estímulos que chegam a nossa mente.

(...)

Em seu livro “Os meios de comunicação como extensão do homem” (1964), Marshall McLuhan escreveu que, quando a simultaneidade eletrônica substitui a sequencialidade alfabética, a faculdade mitológica substitui a cultura social e a razão crítica. O “meme” é a expressão midiática do pensamento mitológico que – como o inconsciente freudiano – não conhece o princípio de não contradição, não conhece a irreversibilidade temporal, não conhece a crítica nem a temporalidade histórica.

(...)

As notícias falsas não são, naturalmente, um fenômeno novo; sempre houve informação mal-intencionada na história dos meios. O volume de notícias faltas aumentou hoje porque aumenta, em geral, a quantidade de informações que circulam na infosfera digital.

(...)

Acreditamos que ingressamos em uma época apocalíptica em seu sentido duplo; uma época de catástrofe e uma época de revelação. Não se pode evitar o apocalipse porque as tendências apocalípticas já estão se manifestando. Só podemos preparar a segunda vinda. E não me refiro a segunda vinda de Jesus Cristo porque não sou religioso. Refiro-me a segunda vinda do comunismo, mas não na forma totalitária em que se manifestou durante o século passado.

Preparar a “segunda vinda”, disse o entrevistado, não apenas esperá-la.

Leia também: Prestando culto a uma carcaça

8 de julho de 2019

O que, afinal, vem se desmanchando no ar?

“Tudo o que é sólido desmancha no ar”. Esta frase deve ser uma das mais famosas do Manifesto Comunista, de Marx e Engels.
                                                                           
Vejamos como ela aparece no texto. Primeiro, os autores afirmam que a “burguesia só pode existir com a condição de revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, por conseguinte, as relações de produção e, assim, todas as relações sociais”. Essa condição causaria uma “agitação permanente e falta de segurança”, distinguindo “a época burguesa de todas as precedentes”. Com isso:

Dissolvem-se todas as relações sociais antigas e cristalizadas, com seu cortejo de concepções e de ideias secularmente veneradas, as relações que as substituem tornam-se antiquadas antes mesmo de ossificar-se. Tudo que é sólido desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado e os homens são obrigados finalmente a encarar com serenidade suas condições de existência e suas relações recíprocas.

Ao mesmo tempo, no final do Manifesto, outra frase famosa de Marx e Engels afirma que os “proletários nada têm a perder a não ser suas correntes”.

Ora, a “solidez” que se desmancha na frase inicial deste texto não é apenas a das correntes. É, principalmente, a dos limites impostos aos trabalhadores por suas próprias crenças, concepções de mundo, modos de vida, tradições, costumes.

Mas, afinal, por que os convictos materialistas Marx e Engels atribuem solidez a concepções, crenças, costumes, enfim, a ideias?

As possíveis respostas são muito complexas para serem exploradas nos limites de uma pílula. Por isso, clique aqui e para ler um texto mais extenso que talvez possa contribuir de alguma forma para entender os tempos tão perigosos que vivemos.