Doses maiores

29 de outubro de 2021

Contra o neoliberalismo, outra razão do mundo

Nas páginas finais do livro "A nova razão do mundo", Pierre Dardot e Christian Laval reafirmam que:

...não se sai de uma racionalidade ou um dispositivo por uma simples mudança de política, assim como não se inventa outra maneira de governar os homens mudando de governo.

Desse modo, para resistir ao neoliberalismo como “racionalidade dominante” seria necessário “promover desde já formas de subjetivação alternativas ao modelo da empresa de si”.

Para isso, propõem o conceito de “contraconduta”, pelo qual seria possível tanto “escapar da conduta dos outros como definir para si mesmo a maneira de se conduzir com relação aos outros”.

Infelizmente, não fica muito claro como esse conceito se expressaria concretamente nas lutas cotidianas dos explorados e oprimidos. Mas os autores concluem afirmando:

Marx já dizia com força: “A história não faz nada”. Existem apenas homens que agem em condições dadas e, por sua ação, tentam abrir um futuro para eles. Cabe a nós permitir que um novo sentido do possível abra caminho. O governo dos homens pode alinhar-se a outros horizontes, além daqueles da maximização do desempenho, da produção ilimitada, do controle generalizado. Ele pode sustentar-se num governo de si mesmo que leva a outras relações com os outros, além daquelas da concorrência entre “atores autoempreendedores”. As práticas de “comunização” do saber, de assistência mútua, de trabalho cooperativo podem indicar os traços de outra razão do mundo.

Dessa forma, é possível deduzir da leitura da obra de Laval e Dardot a firme recusa em aceitar a separação entre capitalismo e neoliberalismo. Este último sendo apenas a forma mais acabada e cruel do primeiro.

Leia também: O desastrado neoliberalismo de esquerda

28 de outubro de 2021

O desastrado neoliberalismo de esquerda

O longo sucesso do neoliberalismo foi assegurado não apenas pela adesão das grandes formações políticas de direita a um novo projeto político de concorrência mundial, mas também pela porosidade da “esquerda moderna” aos grandes temas neoliberais.

A advertência acima é de Pierre Dardot e Christian Laval, no livro "A nova razão do mundo".

Segundo eles, a luta contra as desigualdades, que era central no projeto social-democrata, foi substituída pela “luta contra a pobreza”, segundo uma ideologia de “equidade” e “responsabilidade individual”.

Os autores citam o manifesto "A terceira via", assinado por Tony Blair e Gerhard Schröder, duas lideranças da social-democracia europeia. Publicado em 1999, o texto afirma, por exemplo, que a "livre competição entre os agentes de produção e a livre troca são essenciais para estimular a produtividade e o crescimento".

Outras pérolas do documento:

Na verdade, exageramos as fraquezas do mercado e subestimamos suas qualidades.

É necessário promover uma mentalidade de vencedor e um novo espírito de empreendimento em todos níveis da sociedade.

Queremos uma sociedade que honre seus empresários, como faz com os artistas e os jogadores de futebol, e volte a valorizar a criatividade em todos os domínios da vida.

O equívoco aqui é a ilusão de que a racionalidade neoliberal pode ser colocada a serviço do bem coletivo. Mas um e outro nunca foram compatíveis.

Ideias semelhantes se espalharam pelo mundo. Inclusive no Brasil, onde social-democratas modernosos as adotaram entusiasmadamente. Já os socialistas de gabinete que vieram depois tentaram restringi-las ao nível econômico.

Com isso, as causas estruturais da imensa injustiça social do País permaneceram intocadas. A extrema-direita agradece os serviços prestados.

Leia também: Neoliberalismo: a democracia como mal desnecessário

27 de outubro de 2021

Neoliberalismo: a democracia como mal desnecessário

Em seu livro "A nova razão do mundo", Pierre Dardot e Christian Laval descrevem os traços que caracterizariam a razão neoliberal.

Para começar, diferente do liberalismo clássico, que se apresentava como produto natural do livre intercâmbio econômico, o neoliberalismo se assume explicitamente como projeto a ser construído. Daí, o caráter extremamente ofensivo da imposição de suas políticas.  

Os neoliberais também defendem que a essência da ordem de mercado reside na concorrência, não na troca. E resguardar o princípio da concorrência a qualquer custo seria missão do Estado.

Mas o próprio Estado deve se submeter ao império da concorrência, sendo obrigado a ver a si mesmo como uma empresa, tanto em seu funcionamento interno como em sua relação com os outros Estados. E, na condição de empreendedor, deve conduzir os indivíduos a comportarem-se como empreendedores.

Essa racionalidade estatal apaga a separação entre esfera privada e esfera pública, sujeitando a ação pública aos critérios da rentabilidade e da produtividade. Como consequência, toda a reflexão sobre a administração pública adquire um caráter técnico. Governar passa a ser uma atividade para especialistas. A atividade política que pressupõe debate e conflitos torna-se um mal desnecessário. A democracia, um incômodo.

Por fim, promove-se um combate aos direitos até então ligados à cidadania. “Nada de direitos se não houver contrapartidas”. No lugar do cidadão da sociedade liberal, o empreendedor, sujeito ao qual a sociedade não deve nada.

Todos esses traços do neoliberalismo, dizem os autores, enterraram de vez qualquer ilusão quanto à “democracia liberal”. Ainda assim, forças de esquerda se renderam a essa lógica. É o que veremos a seguir.

Leia também: O neoliberalismo como subjetivação capitalista

26 de outubro de 2021

O neoliberalismo como subjetivação capitalista

O neoliberalismo não destrói apenas regras, instituições, direitos. Ele também produz certos tipos de relações sociais, certas maneiras de viver, certas subjetividades. Em outras palavras, com o neoliberalismo, o que está em jogo é nada mais nada menos que a forma de nossa existência, isto é, a forma como somos levados a nos comportar, a nos relacionar com os outros e com nós mesmos. O neoliberalismo define certa norma de vida nas sociedades ocidentais e, para além dela, em todas as sociedades que as seguem no caminho da “modernidade”.

A citação acima é do livro "A nova razão do mundo", de Pierre Dardot e Christian Laval. Nele, os autores buscam definir o neoliberalismo não apenas como uma doutrina econômica, mas como uma racionalidade abrangente, com consequências para a própria subjetividade social.
 
Por isso, dizem eles:

Continuar a acreditar que o neoliberalismo não passa de uma “ideologia”, uma “crença”, um “estado de espírito” que os fatos objetivos, devidamente observados, bastariam para dissolver, como o sol dissipa a névoa matinal, é travar o combate errado e condenar-se à impotência. O neoliberalismo é um sistema de normas que hoje estão profundamente inscritas nas práticas governamentais, nas políticas institucionais, nos estilos gerenciais. Ele estende a lógica do mercado muito além das fronteiras estritas do mercado, em especial produzindo uma subjetividade “contábil” pela criação de concorrência sistemática entre os indivíduos.

Segundo os autores, trata-se da forma “mais bem-acabada da subjetivação capitalista”. Ou seja, o neoliberalismo não pode ser derrotado apenas no nível econômico ou com políticas de governo. Para derrotá-lo não basta ser apenas antineoliberal. É preciso ser anticapitalista.

Leia também: O neoliberalismo como modelo social cruel

25 de outubro de 2021

O neoliberalismo como modelo social cruel

Seguimos comentando o livro "A nova razão do mundo", de Pierre Dardot e Christian Laval. Esses autores entendem que o neoliberalismo não é mera reedição do liberalismo clássico de um Adam Smith, por exemplo.

O neoliberalismo teria mais a ver com formulações como a de Herbert Spencer, filósofo do século 19, que fez uma leitura distorcida da teoria darwiniana para fazer um paralelo entre a evolução econômica e a evolução das espécies.

Nessa formulação, o princípio da competição se sobrepunha ao da reprodução, dando origem, assim, ao que foi chamado de “darwinismo social”. Um equívoco, já que Darwin sustentava que a civilização se caracterizava sobretudo pela prevalência de “instintos sociais” capazes de neutralizar os aspectos eliminatórios da seleção natural e acreditava que o sentimento de simpatia estava destinado a estender-se indefinidamente.

O mesmo pode se dizer de pensadores clássicos do liberalismo, como Smith e Ricardo, para os quais o aumento geral da produtividade média que decorre da especialização, beneficiaria a todos na troca comercial. Não se tratando, portanto, de uma dinâmica que eliminaria o pior dos sujeitos econômicos, mas uma lógica de complementaridade que melhoraria a eficácia e o bem-estar até do pior dos produtores.

Ou seja, não se trata de um processo de eliminação seletiva, que condena, por exemplo, a ajuda aos mais necessitados, seguindo uma lei implacável da vida, cujo mecanismo de progresso funcionaria por eliminação dos mais fracos.

No entanto, é o modelo econômico cruel de Spencer que inspira o neoliberalismo. Algo que ficou ainda mais claro à medida que essa doutrina tornou-se política estatal mundo afora, desde o final do século passado.

Leia também: O neoliberalismo como modo de governar

22 de outubro de 2021

O neoliberalismo como modo de governar

Em seu livro "A nova razão do mundo", Pierre Dardot e Christian Laval buscam definir o neoliberalismo como um modo geral de governo, que vai muito além da “esfera econômica” no sentido habitual do termo.

Essa abordagem os autores foram buscar na obra de Michel Foucault. Para eles, o filósofo francês:

Compreendeu, contra o economicismo, que não se podem isolar as lutas dos trabalhadores das lutas das mulheres, dos estudantes, dos artistas e dos doentes, e pressentiu que a reformulação dos modos de governo dos indivíduos nos diversos setores da sociedade e as respostas dadas às lutas sociais e culturais estavam encontrando, com o neoliberalismo, uma possível coerência teórica e prática. Interessando-se de perto pela história do governo liberal, ele mostra que aquilo que chamamos desde o século XVIII de “economia” está no fundamento de um conjunto de dispositivos de controle da população e de orientação das condutas (a “biopolítica”) que vão encontrar no neoliberalismo uma sistematização inédita.

Tal análise, dizem eles, vai ao encontro de uma das intuições mais profundas de Marx, que compreendeu muito bem que um sistema econômico de produção é também um sistema antropológico de produção.

Desse modo, compreendem a crise atual não mais como consequência de um “excesso de finanças”, um efeito da “ditadura dos mercados” ou uma “colonização” dos Estados pelo capital. Trata-se de uma crise global do neoliberalismo como modo de governar as sociedades.

Seria uma crise geral da “governamentalidade neoliberal”, isto é, de um modo de governo das economias e das sociedades baseado na generalização do mercado e da concorrência. 

Voltaremos ao tema nas próximas pílulas.

21 de outubro de 2021

Round 6: assista, mas não se divirta

"Round 6" ou "Squid Game" é o nome da mais nova sensação entre as séries televisivas exibida pela Netflix.

A atração sul-coreana é sobre um grupo de pessoas que disputam um jogo para tentar ganhar um grande prêmio em dinheiro.

A punição pelo mal desempenho em cada fase é a eliminação. Literalmente. Os perdedores são executados a tiros.

É diversão de primeira. Mas também pretende ser uma crítica às contradições da sociedade contemporânea.

A começar pelo fato de que os participantes aceitam permanecer nesse jogo mortal devido a problemas com dívidas impagáveis.

Seria uma referência ao capitalismo como escravidão pelo endividamento. Não apenas de pessoas, mas de países inteiros, reféns das exigências sádicas feitas por instituições como o FMI. No jogo, como na vida real, mortes são apenas danos colaterais.

A facilidade com que uma selvagem competição se instala seria outro sintoma do atual estágio de patologia social, acentuado pela lógica neoliberal.

Um dos jogadores perdeu o emprego durante uma greve ferozmente reprimida nos anos 90. Desde então, viu-se condenado a buscar uma vida melhor de forma individualista e apostando em jogos de azar. 

Outros participantes, vítimas da pressão pelo sucesso a qualquer custo, transformaram alguns erros em fracassos paralisantes.

A própria transformação de jogos infantis em episódios sangrentos mostram a derrota da dimensão lúdica mais essencial para a crueldade imposta pela concorrência capitalista.

Alguns jogadores até tentam criar formas de resistência coletiva e solidária, mas a regra é cada um por si ou a formação de grupos nos moldes das gangues criminosas.

Enfim, vale assistir. Só fica estranho se você se divertir.

20 de outubro de 2021

Abya Yala, socialismo comunitário global

Abya Yala era a denominação dada pelo povo kuna, originário do norte da Colômbia, para o seu território. No idioma original, o termo significa “terra madura... terra viva... terra que floresce”. 

Hoje, o nome Abya Yala abarca todo o continente e foi escolhido pelos povos originários como parte do processo de superação do isolamento político a que foram submetidos pela colonização. É uma expressão afirmativa para superar a caracterização eurocêntrica de “índios”, que ignora a identidade de centenas de povos originários.

Na Cúpula dos Povos de Abya Yala, realizada na Guatemala, em 2007, este movimento continental foi definido como:

...um espaço permanente de enlace e intercâmbio, onde convergem experiências e propostas para que juntos enfrentemos as políticas de globalização neoliberal e possamos lutar pela libertação definitiva de nossos povos irmãos, da Mãe Terra, do território, da água e de todo o patrimônio natural para viver bem.

A filosofia por trás de Abya Yala é a do socialismo comunitário, decorrente do conceito de bem-viver. Seu diferencial consiste em não centrar-se exclusivamente nos seres humanos, mas também envolver as montanhas, rios, árvores, ar, água, pedras e animais. Trata-se de uma relação respeitosa com tudo o que existe, porque tudo está conectado e todos os seres da comunidade de vida podem ser beneficiados. Não só no nível local, mas global também.

É assim que Moema Viezzer e Marcelo Grondin justificam a escolha do título de seu livro. Pretendem mostrar que o genocídio indígena não atingiu apenas pessoas e povos, mas uma concepção de mundo muito superior à barbárie capitalista, promovida para privilégio de uma minoria selvagem.

19 de outubro de 2021

Os heróis oficiais estadunidenses eram carrascos terríveis

George Washington, antes mesmo de chegar ao poder defendia que, para aplicar as políticas dos Estados Unidos, seria melhor comprar suas terras dos índios ao invés de tentar arrancá-los de seu território.

Já presidente, em uma carta sobre os indígenas, ele explicou:

Conforme comprovado por nossa experiência, é comparável a retirar feras da floresta: retornarão tão logo a perseguição termine e, talvez, ataquem os que já ficaram. Já, a ampliação gradual de nossos assentamentos, certamente fará os selvagens se retirarem à semelhança dos lobos, já que ambos são animais de caça, embora de formatos diferentes.

Quando foi eleito presidente, em 1828, Andrew Jackson já tinha comandado ataques a acampamentos indígenas pacíficos, chamando-os de “cães selvagens” e gabando-se de ter arrancado o couro cabeludo daqueles que matava.

Também tinha supervisionado a mutilação de aproximadamente 800 cadáveres de índios Creek – corpos de homens, mulheres e crianças que ele e seus soldados haviam massacrado. Seus narizes foram cortados para tê-los como um arquivo de mortos, além de mandar cortar a pele de seus corpos em longas tiras para secá-las ao sol e convertê-las em rédeas para os animais.

Mesmo após deixar a presidência, Jackson recomendava que as tropas americanas procurassem especifica e sistematicamente matar as mulheres e as crianças que ainda se ocultavam nas montanhas para completar sua extinção. Do contrário, dizia ele, seria o mesmo que perseguir lobos em seu habitat, sem ter eliminado seu covil.

São estes os grandes heróis da história oficial estadunidense revelados pelo livro "Abya Yala!: Genocídio, resistência e sobrevivência dos povos originários", de Moema Viezzer e Marcelo Grondin.

18 de outubro de 2021

Destino Manifesto: a doutrina genocida estadunidense

Para os imigrantes protestantes e de outras denominações religiosas, estava fora de questão pensar que os habitantes da região pudessem ser seres humanos como os brancos, com direito à terra, moradia, alimentação, vida social e espiritualidade próprias.

É assim que Moema Viezzer e Marcelo Grondin introduzem a história da colonização europeia do norte do continente americano em seu livro "Abya Yala!: Genocídio, resistência e sobrevivência dos povos originários do atual continente americano".

Em menos de 100 anos, dizem eles, todo o litoral atlântico já era uma região habitada por imigrantes europeus que roubavam os territórios dos nativos para colonização, sob o poder e a autoridade da Coroa britânica.

Depois que se emanciparam do domínio britânico, os estadunidenses acreditavam ser o momento de seguir seu “Destino Manifesto”. Essa doutrina representava a convicção de que a população branca dos Estados Unidos era o povo “eleito por Deus para civilizar a América... e possuir todo o continente”, conforme lhes tinha sido concedido pela “Divina Providência”. Expandir os Estados Unidos significava “realizar a vontade divina”.

Eram três as estratégias para assegurar o expansionismo e transformar o país numa grande potência:

– compra ou anexação diplomática de territórios;
– guerras contra outros países para anexar-lhes seus territórios;
– guerras contra os povos indígenas para apropriar-se de seus territórios.

Resultado, mais imigrantes europeus e menos habitantes nativos, dizimados por epidemias trazidas pelos europeus, guerras e remoções forçadas de seus territórios.

De George Washington a Joe Biden, passando pelos drones assassinos de Obama e pelo racismo escancarado de Trump, é inegável que o Destino Manifesto continua a ser a principal doutrina dos Estados Unidos.

15 de outubro de 2021

Estados Unidos, escola de genocídio

Mais informações do livro "Abya Yala!", de Moema Viezzer e Marcelo Grondin.

Antes da chegada dos europeus, o território dos Estados Unidos era habitado por aproximadamente 18 milhões de nativos. No século 21, essa população reduziu-se a aproximadamente 2,5 milhões de habitantes, ou seja, 13% do total original.

Tamanha redução foi produto de um processo violento de colonização, tal como aconteceu ao sul do continente. Mas se houve muitas semelhanças com os processos latinos, também houve algumas grandes diferenças.

Na América do Norte, os próprios imigrantes financiavam o transporte e os equipamentos para seus familiares e empregados; outros tinham o patrocínio de companhias particulares. Uma situação bem diferente da de Colombo e Cabral, que tinham embarcado rumo às colônias com o patrocínio das Coroas de Espanha e Portugal, respectivamente.

Nos atuais países da América Latina, o genocídio durou aproximadamente um século. A degradação ocasionada pelo trabalho escravizado foi notória, mas não houve uma política de limpeza étnica decretada por governos. Não se impedia a mestiçagem de brancos com indígenas, o que deu margem a uma significativa população mestiça.

Nos Estados Unidos, o genocídio durou três séculos. Começou com ações de particulares, sobretudo de protestantes, que deixavam a Grã-Bretanha por motivos religiosos e políticos. Não aceitavam a miscigenação com as populações indígenas, que consideravam decadentes. No século 18, instalou-se uma política nacional de limpeza étnica para dar lugar aos brancos.

Os Estados Unidos se tornaram, nesse assunto, uma escola para o genocídio praticado posteriormente pelos ingleses contra os bôeres na África, em 1903, e para o holocausto dos judeus, promovido por Hitler.

14 de outubro de 2021

O fanatismo religioso mata a alma indígena

Em 1950, um pastor protestante afirmava que os indígenas eram:

...um bando de desavergonhados, especialmente as mulheres. A visão de sua nudez provoca o despertar dos desejos da carne entre os homens. A primeira parte do nosso trabalho consiste, naturalmente, em levá-las a usar roupas apropriadas. Esperamos que, dentro de um ou dois anos, nenhuma mulher exponha mais seus seios pela tribo... Devemos concentrar nosso trabalho sobre as mulheres, pois elas são a causa de todo o pecado.

Essas citação está no livro "Abya Yala!: Geocídio, resistência e sobrevivência dos povos originários", de Moema Viezzer e Marcelo Grondin. Os autores observam que, em geral, pode-se afirmar que as práticas etnocidas promovidas por missionários e pastores não eram intencionais. Dificilmente os missionários aceitariam matar fisicamente os indígenas. Entretanto, contribuíram para matar sua cultura, que é sua “alma”.

A proposta dos indígenas no convívio com outros povos sempre foi simples: eles querem continuar sendo índios, sem serem obrigatoriamente “assimilados” pela cultura branca.

No início da colônia, os índios enfrentavam os fuzis portugueses com flechas, ficando em grande desvantagem. Hoje, a sociedade branca tem armas muito mais poderosas para difundir e impor sua cultura, particularmente os meios de comunicação de massa.
 
Por outro lado, o Conselho Indigenista Missionário, da Igreja Católica, e o Departamento de Assuntos Indígenas da Associação de Missões Transculturais Brasileiras, das igrejas evangélicas, defendem contatos religiosos com os indígenas, não mais para convertê-los, mas para garantir sua reprodução como povos e facilitar o difícil diálogo com a cultura dominante.

O problema é que a cultura dominante jamais quis esse diálogo.

13 de outubro de 2021

Hatuey preferiu o inferno ao céu dos espanhóis

No início do século 16, o cacique Hatuey, nascido na ilha Hispaniola (onde ficam República Dominicana e Haiti), foi expulso de suas terras por resistir aos espanhóis. Com mais de 300 índios taínos, atravessou em canoas, por mar, até Cuba, para ajudar a organizar a luta de seus irmãos.

Em um de seus famosos discursos, ele explicou a dominação colonial do seguinte modo:

Eu vou lhes dizer porque fazem tudo isto. É porque têm um grande senhor a quem querem e amam. E este é o que lhes vou mostrar (indicando o ouro que estava na cesta): este é o senhor que os espanhóis adoram. É por ele que lutam e matam; por ele que nos perseguem; por causa dele morrem nossos pais e irmãos e por sua causa nos privam de nossos bens e nos buscam e nos maltratam. Como vocês já ouviram antes, eles querem vir para cá e não pretendem outra coisa senão buscar este senhor; para buscá-lo e arrancá-lo vão nos perseguir e cansar como já fizeram em nossa terra.

Hatuey foi capturado em fevereiro de 1512. Condenado a morrer numa fogueira, um padre ofereceu-lhe a conversão à fé cristã para poder ir para o céu. Hatuey perguntou: “Os espanhóis também vão ao céu?" Diante da resposta afirmativa, respondeu: "Então, não quero ir para um lugar onde possa encontrar gente tão horrível e tão cruel”.

Essa é outra das histórias de luta heroica e grande sabedoria dos povos originários que Moema Viezzer e Marcelo Grondin contam no livro "Abya Yala!: Genocídio, resistência e sobrevivência dos povos originários".

Leia também: Enriquillo, líder da primeira guerrilha indígena

8 de outubro de 2021

Enriquillo, líder da primeira guerrilha indígena

A história de Enriquillo merece destaque no livro "Abya Yala!", de Moema Viezzer e Marcelo Grondin. Nascido na ilha de Hispaniola (onde ficam atualmente República Dominicana e Haiti), seu nome original era Guarocuya, sendo descendente de família nobres dos taínos, povo nativo da região.
 
Por influência do frei Bartolomé de las Casas, a partir dos 13 anos foi educado num convento de franciscanos, onde recebeu o nome de Enrique, transformado em Enriquillo. Foi alfabetizado em espanhol e, ainda jovem, confiado a Dom Francisco Pérez de Valenzuela, recebendo uma educação de nobre espanhol.
 
Com a morte de Valenzuela, os herdeiros começaram a tratá-lo como mera propriedade. Tentou defender seus direitos nos tribunais, mas acabou tendo que fugir juntamente com sua esposa e outros taínos para a serra de Bahoruco. Ali começou sua rebelião, acompanhado de 50 homens que ele mesmo armou, mais aproximadamente 300 taínos que lhe eram próximos; milhares de indígenas da ilha se somaram a ele.
 
Foi a primeira guerrilha organizada pela libertação dos indígenas no Novo Mundo. Sendo conhecedores da região, durante 13 anos, os taínos comandados por Enriquillo conseguiram incomodar a administração espanhola e derrotar todas as expedições que tentaram subjugá-los através do uso de armas ou de meios persuasivos mentirosos. Até que, finalmente, os taínos fizeram aliança com os escravos negros, também exaustos pela crueldade com a qual eram tratados.
 
Finalmente, um tratado concedeu aos indígenas o direito à propriedade e à liberdade. Infelizmente, Enriquillo morreria alguns anos depois, vítima de tuberculose, e a população taína já tinha diminuído drasticamente, devido aos maus-tratos, às doenças e matanças.

Leia também: Genocídio indígena no século 20

7 de outubro de 2021

Genocídio indígena no século 20

O período de 1930 a 1968 foi, sem sombra de dúvida, um dos mais trágicos do genocídio indígena no Brasil no decorrer do século 20, dizem Moema Viezzer e Marcelo Grondin em seu livro "Abya Yala!: Genocídio, resistência e sobrevivência dos povos originários".
 
Em 1967, relatam os autores, sob pressão internacional da imprensa e das embaixadas brasileiras, a ditadura criou uma Comissão de Investigação, sob a coordenação do procurador Jader de Figueiredo Correia. O documento final ficaria conhecido como Relatório Figueiredo.
 
Com sete mil páginas, o dossiê cobre o período de 1940 a 1968 e detalha assassinatos em massa, tortura, escravidão, guerra bacteriológica, abuso sexual, roubo de terras e negligência contra as populações indígenas, incluindo muitos grupos dizimados e outros completamente eliminados.
 
Nesse vergonhoso genocídio foram utilizados dinamites atiradas de aviões, contaminação proposital de varíola e doações de açúcar misturada a veneno. Também relatam-se inúmeros casos de cárcere privado, chicotadas, torturas, crucificações e escravização.
 
Um inquérito judicial acusou a participação de 134 funcionários em mais de mil crimes, mas apenas 38 foram demitidos e nenhum foi preso. Em março de 1968, funcionários que haviam participado da Comissão de Investigação foram exonerados e Jader Figueiredo foi transferido de Brasília para o Ceará.
 
Com a promulgação do AI-5 em 1968, o documento foi engavetado e ninguém mais teve coragem de mexer com os dados que ele disponibilizava.
 
Em 2013, o Relatório Figueiredo foi “descoberto” e encontra-se disponível ao público na internete em sua versão resumida. Sua leitura confirma que o genocídio indígena jamais foi coisa só da colônia ou império. Nem se resumiu a períodos ditatoriais.

Leia também: O genocídio guarani

6 de outubro de 2021

O genocídio guarani

Segue outro sangrento relato do livro "Abya Yala!: Genocídio, resistência e sobrevivência dos povos originários do atual continente americano", de Moema Viezzer e Marcelo Grondin.

Em 1560, o governador-geral Mem de Sá, em carta ao rei de Portugal, dizia que em uma só noite havia destruído uma aldeia próxima à Vila de São Vicente e como trunfo tinha “enfileirado os corpos ao longo de aproximadamente seis quilômetros de praia”. Em outra correspondência, afirmava ter “pacificado" os índios das redondezas da capitania da Bahia “queimando sessenta de suas aldeias”.

 

No final do século 16, em Porto Seguro, cada família portuguesa possuía em média seis escravos indígenas. Em São Paulo, em meados do século 18, havia cerca de quatro mil colonizadores e 60 mil escravos indígenas.

 

Por volta de 1562, os paulistas começaram a realizar expedições de apresamento dos índios para vendê-los como escravos aos donos das capitanias. Eram as “bandeiras”, responsáveis pela rapina mais impiedosa da primeira metade do século 17. Por meio delas foram escravizados e massacrados mais de um milhão de indígenas.

 

Enquanto isso, os jesuítas criaram as “reduções”. Entre elas, os famosos Sete Povos das Missões, que chegaram a reunir 40 mil índios. Estima-se que os bandeirantes escravizaram mais de 250 mil indígenas dessas missões e aldeias próximas.

 

Em resposta, os indígenas travaram a Guerra Guaranítica, na qual foi assassinado o líder Sepé Tiarajú, que não se cansava de afirmar: “Esta terra tem dono!”.

 

Seu assassinato marcou também o período de destruição final das reduções jesuíticas e a dizimação da grande nação guarani no sul do país.


Leia também: Escravidão indígena no Brasil: genocídio físico e cultural

5 de outubro de 2021

Escravidão indígena no Brasil: genocídio físico e cultural

Em 1570, a lei proibia formalmente a escravização dos indígenas no Brasil, mas não proibia “civilizá-los”. Em outras palavras, continuava permitindo convertê-los à religião e aos costumes dos europeus. Caso resistissem, enquadravam-se no crime de “guerra justa”, o que legitimava sua escravidão.

Em 1757, o Marquês de Pombal proibiu por lei a escravidão indígena, retirando, inclusive, o poder dos missionários sobre eles. Por outro lado tornou obrigatório o uso do idioma português.

Foi um episódio a mais do genocídio cultural dos indígenas, pois deu início ao declínio do idioma utilizado em todo o território, o tupi-guarani. Para ter uma ideia, muitos dos próprios bandeirantes só falavam esse idioma.

Em 1680, a Coroa portuguesa aceitou explicitamente o princípio de que os índios eram os primeiros ocupantes destas terras e seus donos naturais e estabeleceu leis a respeito, mas estas jamais saíram do papel. Mesmo tendo “liberado” os indígenas, nada consta nos registros históricos da época em prol da compensação a eles pelos danos causados anteriormente. E a escravidão indígena continuou.

Em 1808, o governo da época declarou “guerra justa” contra indígenas de Minas Gerais e de São Paulo, permitindo, inclusive, a organização de bandeiras que os prendessem e sujeitassem ao cativeiro, sem respeito a nenhuma das leis anteriormente promulgadas.

As várias constituições brasileiras sempre trataram os indígenas como seres inferiores a serem tutelados, e considerados como indivíduos, não como povos. A atual constituição é uma exceção, mas só no papel. O genocídio físico e cultural continua.

O relato sumário acima foi baseado no livro "Abya Yala!", de Moema Viezzer e Marcelo Grondin.

4 de outubro de 2021

O genocídio indígena nas minas coloniais

Mais um relato do livro "Abya Yala!: Genocídio, resistência e sobrevivência dos povos originários", de Moema Viezzer e Marcelo Grondin.

No final do século 18, as minas de Potosí representavam o coração econômico do império espanhol, principal centro produtor de prata da América durante o período colonial.

 

Para sua exploração, adotou-se a prática da “mita”, adaptada do império inca pelos colonizadores espanhóis. Ela trouxe efeitos devastadores e contribuiu significativamente para a desestruturação de numerosas comunidades indígenas e para o declínio da população nos Andes.

 

Anualmente, cerca de 50% dos indígenas homens eram deslocados de suas respectivas comunidades e enviados a regiões de extração de minérios, sobretudo prata e mercúrio, ou para trabalhar na agricultura. Geralmente, trabalhavam por 4 a 6 meses, podendo chegar até 10 ou 12 meses.

 

Na chamada Mita de Potosí, por exemplo, das 30 províncias do vice-reinado e de mais de 10 grupos étnicos diferentes, todos os anos, mais da metade dos homens com idade entre 18 e 50 anos, aptos ao trabalho, eram recrutados compulsoriamente e deslocados para a mina. Trabalhavam até 15 horas por dia, cavando túneis e extraindo o metal com as mãos ou com a ajuda de picaretas.

 

Merece destaque a mina de Huancavelica, de onde se extraía o mercúrio necessário para a purificação da prata e cuja refinação produzia muito pó, o que inevitavelmente provocava pneumonia e envenenamento. Ali trabalhavam até 3,3 mil indígenas e era considerado afortunado aquele que conseguia sobreviver a dois meses de trabalho.

 

Mais de oito milhões de indígenas pereceram no trabalho de minas como a de Potosí, durante o período colonial.

1 de outubro de 2021

Para cada espanhol morto, cem cadáveres indígenas

Em 1542, os espanhóis criaram na América o sistema de “repartimiento”. O frei Bartolomé de Las Casas explica:

Cada espanhol repartidor recebia um certo número deles incluindo uma “cédula do repartimiento” que rezava desta maneira: a Vós, fulano de tal, são encomendados tantos índios para que possais servir-vos deles em vossas plantações e minas e ensinar-lhes as coisas de nossa santa fé católica a todos quantos estejam no povoado. Assim, todos: pequenos e grandes, crianças, velhos, homens e mulheres grávidas ou paridas eram condenados à absoluta servidão que, ao fim e ao cabo, os levava à morte.

Os nativos trabalhavam de 10 a 12 horas diárias, todos os dias, sem retornarem a suas casas durante meses.

Além da exaustão e morte de indígenas provocadas pelos trabalhos forçados nas minas e outros trabalhos nas fazendas e granjas dos colonizadores, Las Casas lembra a fome, doenças e epidemias, a mortalidade infantil, a exportação de escravos, as guerras e matanças, entre outras causas.

Por fim o frei relata que “entre os espanhóis houve uma determinação que se tornou para eles uma lei inviolável: para cada um dos espanhóis que os índios matassem, os cristãos tinham que matar cem índios... e tomara que não fossem mil por um!”

As informações acima estão no livro "Abya Yala!: Genocídio, resistência e sobrevivência dos povos originários do atual continente americano", de Moema Viezzer e Marcelo Grondin.

O “repartimiento” já não existe, assim como o sistema colonial, mas a lógica genocida que os orientava sofreu apenas algumas modificações. Segue vigente e fatal para muitas centenas de milhões no mundo todo.