Doses maiores

30 de abril de 2018

Alguns “podres” de Gandhi

Mohandas Gandhi é daqueles em relação a quem até os que dele discordam podem pensar algo como “mal não faz”.

Mas isto está longe de ser verdade. É o que mostra Domenico Losurdo, em seu livro “A Não Violência Uma história fora do mito”.

Comecemos pela postura de Gandhi em relação à I Guerra Mundial. Em uma carta de 6 de julho de 1918, ele afirma:...em circunstâncias excepcionais a guerra pode ser um mal necessário”.

Mal necessário para quê? Para livrar a Índia do domínio britânico. Como? Participando do conflito ao lado dos ingleses. Em sua autobiografia, Gandhi diz:

Se queríamos melhorar nossa condição com a ajuda e a colaboração dos ingleses, era nosso dever ganhar seu favor ficando a seu lado no momento da necessidade.

Convencido da correção dessa ideia, ele se compromete a recrutar 500 mil homens para o exército britânico.

Gandhi não cansa de repetir que a Índia deve estar pronta a “oferecer na hora crítica todos seus filhos em sacrifício ao Império” ou “temos que dar cada homem de que dispomos para defender o Império”.

Ao mesmo tempo, acredita manter intacta sua fé na não-violência:

Não há nenhum discurso meu para o recrutamento em que eu tenha dito: “Partamos e matemos os alemães.” Meu lema é: “Partamos e morramos pela causa da Índia e do Império.”

Como diz Losurdo:

Em vez de seguir uma política de não-violência, Gandhi empurra camponeses desavisados a participar de um conflito que está acontecendo a milhares de quilômetros longe de suas casas.

Mas há coisas piores na biografia de Gandhi. Aguardem.

27 de abril de 2018

O exército de trabalhadores e suas divisões

É costume dizer que Marx falhou completamente em sua previsão de que o desenvolvimento capitalista levaria a que a burguesia se visse cercada por uma grande e homogênea classe social: o proletariado. Tais críticas costumam traduzir proletariado por “classe operária”, quando a interpretação correta seria “classe trabalhadora”.

Mas no volume 3 de “O Capital”, Marx argumentou que mesmo essa grande classe trabalhadora está marcada por:

...uma hierarquia de forças de trabalho, à qual corresponde uma escala de salários (...). Ao lado das gradações da hierarquia, aparece a simples separação dos trabalhadores em qualificados e não qualificados.

De fato, em 1997 foi publicado um estudo sobre a estrutura de classes de Estados Unidos, Canadá, Reino Unido, Suécia, Noruega e Japão. Nele, Erik Olin Wright descobriu entre os setores que não possuem grandes meios de produção (fábricas, fazendas, supermercados etc.), três divisões com base nas habilidades (especialista, qualificado, não qualificado) e três baseados na autoridade (gerente, supervisor, sem autoridade). O resultado geral, portanto, foram nove frações internas à classe trabalhadora.

Os resultados correspondem ao que disse Marx em sua grande obra econômica:

Um exército industrial de trabalhadores sob o comando de um capitalista exige, como num exército normal, oficiais (gerentes) e sargentos (capatazes, supervisores) que comandam durante o trabalho o processo em nome da capital.

Ou seja, confirma-se não apenas a previsão marxista de que um imenso contingente de explorados cerca a burguesia por todos os lados. Mas, também que, infelizmente, as tropas desse exército continuam muito divididas.


Leia também: No comunismo, ainda haveria inveja, sofrimento, mau gosto…

26 de abril de 2018

Divagações sobre violência e história (final)

No Manifesto Comunista, de 1848, Marx e Engels descrevem uma das características marcantes da classe dominante capitalista:

A burguesia se encontra envolvida em uma batalha constante. No princípio, com a aristocracia; mais tarde, com aquelas frações da própria burguesia, cujos interesses se tornaram antagônicos ao progresso da indústria; o tempo todo, com a burguesia de países estrangeiros. Em todos esses países, ela se vê obrigada a apelar para o operariado, a pedir a sua ajuda, e arrasta-se assim para a arena política. Portanto, a burguesia fornece ao proletário as armas para lutar contra ela...

Em última análise, dizem Marx e Engels, a burguesia produz, acima de tudo, “seus próprios coveiros”.

Ou seja, os processos violentos que ocorrem entre os setores da burguesia devem ser aproveitados pelos de baixo para desorganizar a dominação dos de cima.

Nos anos seguintes, também ficaria claro que isso não significa de modo algum aliar-se a uma fração burguesa contra outra. Ainda que isso possa acontecer em situações muito específicas, como as de libertação de povos colonizados.

Em geral, situações revolucionárias somente se apresentam diante de crises violentas entre frações da classe dominante. Isso quer dizer que os “coveiros” com suas pás devem aguardar pacientemente ao lado das covas? Jamais.

Somente com a intensificação de suas lutas, os explorados e oprimidos podem aproveitar momentos em que há choques internos à burguesia. É preciso acelerar a luta contra os de cima e não freá-la para aguardar um desfecho favorável a setores dominantes supostamente mais progressistas. Isso seria levar a classe trabalhadora a caminhar sozinha rumo à sepultura.

25 de abril de 2018

O fio da meada dos juros altos

"Precisamos falar sobre bancos”, diz Lauro Gonzalez, em artigo no Globo, de 24/04/2018. E, realmente, o que não falta é jornalista e especialista falando deles. Principalmente, sobre a persistência dos juros altos apesar da queda da taxa Selic, determinada pelo Banco Central.

Gonzalez e muitos outros comentaristas da grande imprensa apontam como causa principal do problema a concentração bancária. “No Brasil, diz ele, os cinco maiores bancos detêm quase 90% dos empréstimos”.

Seria ela que permite aos bancos cobrarem, por exemplo, juros nas operações de cartão de crédito de quase 400% anuais, contra um índice Selic de 6,5%. Ou seja, uma taxa 61 vezes maior!

Mas há outro fator. Recente levantamento do Centro de Estudos do Mercado de Capitais (Cemec), vinculado à Fipe-USP, mostrou que do total de recursos captados pelo sistema bancário 72% estão aplicados em títulos do Tesouro Nacional.

Ou seja, em papéis da imensa, imoral e ilegítima dívida pública, que tira, principalmente, dos serviços públicos, quase R$ 2 bilhões por dia. Aí, vender crédito, principal função dos bancos, virou mero detalhe.

Aparentemente, procuram culpar o crédito caro pela paralisia econômica do País. É verdade que os juros altos têm grande responsabilidade nisso. Mas foram os violentos cortes dos investimentos públicos adotados já por Dilma e aprofundados por Temer, que agravaram as consequências da crise mundial que chegou forte por aqui, por volta de 2014.

Somente a enorme concentração bancária nacional não explica o caos econômico atual. Há também a indecente dívida pública, a vergonhosa concentração de riqueza e, na origem da meada, o capitalismo asfixiando ainda mais uma sociedade já profundamente injusta.  

24 de abril de 2018

A peste branca mata índios há séculos

A Amazônia do começo do século XVI estava cheia de gente, diz Reinaldo José Lopes, no livro “1499: O Brasil antes de Cabral”. Seriam cerca de 8 milhões de pessoas na região, em 1500.

Hoje, não chegam a 900 mil no país todo. Foram dizimados e continuam a sê-lo. Mas, ao contrário do que se costuma dizer, não foi a superioridade militar dos invasores brancos o fator determinante para essa mortandade. Pelo menos, não logo no início.

A tecnologia militar baseada na pólvora não era exatamente uma maravilha naquela época. Os indígenas contavam, por exemplo, com "flechas medindo cerca de 1,60 metro, com pontas que podiam ser de bambu, de dente de tubarão ou mesmo de ferrões de arraia”, capazes de atravessarem um homem e “ir pregar no chão”.

As armas de fogo europeias tinham “principalmente um efeito moral, causando pânico nas fileiras indígenas”. Mas um índio lançaria uma dúzia de setas antes de um português recarregar seu arcabuz.

A causa principal da rápida dizimação desses povos foram “doenças infecciosas trazidas pelos colonizadores, que conseguiram exterminar indígenas com uma eficácia superior a qualquer canhão ou arcabuz europeu”.

Eram, principalmente, sarampo, varíola, rubéola e gripe. E nem era necessário o contato direto com os europeus:

Alguém que nunca tinha visto um branco na vida poderia morrer de sarampo ao entrar em contato com um mercador indígena que visitara uma aldeia por onde jesuítas tinham passado uma semana antes, por exemplo.

Hoje, os índios desenvolveram anticorpos para a maioria daquelas moléstias. Mas continuam a morrer doentes ou da força bruta. Continuamos sendo sua patologia mais letal.


23 de abril de 2018

Martin Luther King e as eleições brasileiras

Em abril, completam-se os 50 anos do assassinato de Martin Luther King. Em seu livro “A Não Violência - Uma história fora do mito”, Domenico Losurdo cita o seguinte discurso desta grande liderança da luta negra:

Marchamos sobre alojamentos do regime segregacionista para que todos os guetos da depressão social e econômica sejam dissolvidos, e negros e brancos possam viver lado a lado em habitações decorosas, seguras e saudáveis.

Marchamos sobre escolas do regime segregacionista para que todo vestígio de instrução segregacionista e inferior se torne coisa do passado, e negros e brancos possam estudar lado a lado num contexto capaz de restaurar na sociedade uma sala de aula.

Marchamos sobre a pobreza para que nenhum pai americano seja obrigado a deixar de comer para alimentar seus filhos. Marchamos sobre a pobreza até que não haja famintos que perambulam pelas ruas das nossas cidades grandes e pequenas, procurando um emprego inexistente.

Marchamos sobre as urnas eleitorais até os algozes racistas desaparecerem da arena política. Marchamos sobre as urnas eleitorais até os Wallace do nosso país se retirarem tremendo em silêncio.

O Wallace citado acima foi um dos principais defensores das leis racistas estadunidenses. No atual cenário político brasileiro, não é difícil imaginar quem seriam os Wallaces a ser combatidos.

Mas a referência ao ato de marchar implica grandes mobilizações sociais. A direita não será derrotada pelo voto. Quem pensa assim, precisa lembrar de uma outra frase famosa de King:

O que mais preocupa não é o grito dos violentos, dos corruptos, dos desonestos, dos sem-caráter, dos sem-ética. O que mais preocupa é o silêncio dos bons.

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20 de abril de 2018

Depressão, trabalho e tempo

No livro "O Tempo e o Cão - A Atualidade das Depressões", Maria Rita Kehl procura entender como os "transtornos depressivos" se tornaram epidêmicos nas últimas décadas.

Ela acha possível que o "aumento assombroso" dos diagnósticos de depressão esteja ligado ao interesse da indústria farmacêutica em turbinar suas vendas. Mas também "pode indicar que o homem contemporâneo está particularmente sujeito a deprimir-se".

Uma das explicações para essa predisposição estaria relacioanda ao tempo. Por exemplo, na Idade Média:

Havia certa solidariedade entre o tempo do trabalho, comandado pelo percurso do sol, e o restante do tempo social, comandado pela Igreja, cujos sinos indicavam o momento das orações matinais e vespertinas...

Aos poucos, no entanto, os ciclos de produção artesanal passaram a se libertar da alternância das estações. O trabalho do artesão torna-se "mais submisso à ordem que ele mesmo criara do que aos ritmos naturais". O tempo urbano do comércio substituindo o tempo da Igreja.

"O indivíduo moderno também não é senhor de seu tempo", diz Maria Rita. "A diferença é que ele já não sabe disso". O tempo do trabalho invade cada vez mais "a experiência da temporalidade". São as:

...atividades de lazer, marcadas pela compulsão incansável de produzir resultados, comprovações, efeitos de diversão, que tornam a experiência do tempo de lazer tão cansativa e vazia quanto a do tempo da produção.

Desse modo, seria possível que:

Ainda que eles não saibam disso, a inadaptação dos depressivos em relação às formas contemporâneas de aproveitar o tempo pode ser reveladora da memória recalcada de outra temporalidade, própria do "tempo em que o tempo não contava".

19 de abril de 2018

No comunismo, ainda haveria inveja, sofrimento, mau gosto...

De volta ao livro “Marx Estava Certo”, de Terry Eagleton. Agora, para responder àqueles que consideram o marxismo uma utopia, em que “a maldade humana é simplesmente ignorada”.

O autor começa dizendo que “Marx era pessimista sobre boa parte do passado porque este parecia representar uma sucessão de formas vis de opressão e exploração”.

Já a esperança dele quanto ao futuro:

...se devia a seu reconhecimento de que esse histórico desanimador não derivava, em sua maior parte, de culpa nossa. A história não tem sido tão sangrenta porque os seres humanos são maus, mas por causa das pressões materiais às quais são submetidos. Marx, assim, pode ter uma noção realista do passado sem sucumbir ao mito da maldade que reside no coração dos homens. E esse é um motivo por que ele é capaz de preservar sua fé no futuro. É seu materialismo que lhe permite ter essa esperança

A mesmo tempo, diz Eagleton:

Para que os seres humanos exercitem sua liberdade, a condição é que sejam capazes de abusar dela. Na verdade, tal liberdade não pode existir, em escala considerável, sem esses abusos. Por isso, é razoável acreditar que na sociedade comunista haveria muitos problemas, um grande número de conflitos, assim como de tragédias irreparáveis. Haveria assassinato de crianças, acidentes rodoviários, romances péssimos, inveja letal, ambições arrogantes, calças de mau gosto e sofrimento inconsolável. Talvez houvesse também limpeza de latrinas.

Ou seja, mesmo em condições de abundância, “não viraríamos anjos por obra de alguma alquimia, mas algumas das causas de nossas deficiências morais teriam sido removidas”.

E o que sobraria ainda nos daria muito trabalho.

18 de abril de 2018

Mais ataques ao SUS

Em 13/04, o portal EPSJV/Fiocruz publicou entrevista com José Sestelo, vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), sobre a criação do Sistema Nacional de Saúde. Uma proposta dos tubarões do mercado para minar o SUS.

Sestelo diz que não há novidade na proposta:

Essa pauta empresarial vem sendo veiculada publicamente há vários anos. Acho que um dos principais instrumentos de divulgação disso foi o chamado “Livro Branco da Saúde”, que foi publicado na época das eleições majoritárias, em 2014.

Ainda, segundo ele:

Existe uma estratégia retórica de se utilizar esse termo - Sistema Nacional de Saúde - não diria que em oposição ao SUS, mas quase como uma ressignificação para o que a gente chama de SUS. Porque os empresários não querem a extinção do SUS, eles querem o SUS que seja conveniente aos seus interesses, como de fato tem sido. Mas eles querem ainda mais.

O entrevistador André Antunes pede um exemplo:

Essencialmente é tornar o SUS um grande resseguro, ou seja, tudo aquilo que não for comercialmente interessante para os empresários teria algum tipo de cobertura financiada pelo orçamento público. Os casos típicos são as condições crônicas, terapia renal substitutiva, transtornos de comportamento, enfim, condições em que o usuário recorre ao sistema de maneira frequente, em que ele não vai se curar, vai viver com aquilo. Essa é a visão...

Mas não se trata de coisa só de golpistas. Para citar apenas um exemplo, em fevereiro de 2015, Dilma sancionou a Medida Provisória 656, sobre renegociação das dívidas dos clubes de futebol. Escondida nela, a abertura do setor de saúde ao capital estrangeiro.

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17 de abril de 2018

Lula chamando Judas

A última pesquisa Datafolha mostra que Lula continua a ser decisivo para as próximas eleições. A candidatura abençoada por suas poderosas palavras entra forte no páreo. Por falar em palavras poderosas, lembremos algumas das muitas frases memoráveis do ex-presidente:

Pouca gente está mais preparada que a classe trabalhadora para assumir uma responsabilidade política deste nível. Não podemos ficar esperando a democracia das elites. Os trabalhadores não devem confundir o Partido dos Trabalhadores com o PTB, MDB ou Arena.
Discurso de 24/01/1979, no colégio Salesiano da cidade paulista de Lins

De vez em quando, acho que foi obra de Deus não permitir que eu ganhasse em 1989. Se eu chego em 1989 com a cabeça do jeito que eu pensava, ou eu tinha feito uma revolução no País ou tinha caído no dia seguinte. Acho que Deus disse assim: "Olha, baixinho, você vai perder várias eleições, mas, quando chegar, vai chegar sabendo o que é tango, samba, bolero”.
O Estado de S. Paulo, 19/02/2010

Qualquer um que ganhar as eleições, pode ser o maior xiita ou o maior direitista, não conseguirá montar o governo fora da realidade política. Entre o que se quer e o que se pode fazer tem uma diferença do tamanho do Oceano Atlântico. Se Jesus Cristo viesse para cá e Judas tivesse a votação num partido qualquer, Jesus teria que chamar Judas para fazer coalizão.
O Estado de S. Paulo, 20/03/2012

De 1979 a 2012, Lula certamente aprendeu a conviver com tantos “Judas” que já não sabe mais viver sem sua companhia. Resta saber quais deles ele vai chamar para apoiar seu ungido.

16 de abril de 2018

Divagações sobre violência e história (2)

“A violência é a parteira da história”. Muitas vezes, esta frase atribuída a Marx é interpretada como um convite a pegar em armas contra a exploração.

Mas ela refere-se, principalmente, às grandes ou relevantes mudanças na história das sociedades de classes como consequência de processos violentos.

Em especial, os conflitos que opõem classes dominantes. Ou os causados por choques de interesses entre facções diferentes da mesma classe dominante.

Tanto no primeiro caso, como no segundo, podem surgir oportunidades para que os que estão embaixo obtenham importantes conquistas.

Um exemplo seria a Guerra Civil nos Estados Unidos. Lincoln nem era um abolicionista convicto quando foi eleito. Foi o choque de interesses no interior da classe que ele representava que o empurrou para posturas antiescravistas.

No Brasil, conflitos violentos entre frações das classes dominantes são raros. Talvez, o mais próximo a que chegamos disso aconteceu com o levante da elite paulista em 1932, contra a tomada do poder por Getúlio, em 1930.

Resultado, no final do período que se seguiu, a ditadura getulista deixaria a CLT, ainda que mais teórica que prática. O problema é que entre uma coisa e outra, centenas de lideranças populares e sindicais foram presas, mortas e torturadas.

E antes disso tudo, houve as primeiras e heroicas greves da nascente classe trabalhadora brasileira, ainda durante a escravidão. Depois, vieram os levantes tenentistas e a Coluna Prestes.

Ou seja, os setores subalternos são fundamentais para criar essas divisões no andar de cima. Mas, em geral, servem como bucha de canhão. Por isso, dificilmente é possível escolher algum lado da classe dominante para apoiar.

Continua...

13 de abril de 2018

O desprezo ultraesquerdista às tradições de luta

No livro “Marx Estava Certo”, Terry Eagleton conta que, ao ser perguntado sobre como chegar a uma estação ferroviária, um cidadão responde: “Bem, eu não partiria daqui.”

A frase poderia resumir a situação da Rússia alguns anos após a Revolução de 1917. Diante da perspectiva de “construir o socialismo num país sitiado, isolado e semi-indigente”, a conclusão seria: “Bem, eu não partiria daqui.”

Mas quando se trata de situações históricas, diz o autor, não existe um lugar ideal de onde partir. E continua:

Marx escreve em “Crítica ao Programa de Gotha” sobre como a nova sociedade estará marcada com os sinais de nascença da velha ordem de cujo útero emerge. Assim, não existe um ponto “puro” a partir do qual começar. Acreditar em sua existência é a ilusão do chamado ultraesquerdismo.

E os ultraesquedistas, afirma Eagleton:

...em seu fanatismo revolucionário, se recusam a ter algo a ver com as ferramentas comprometidas do passado: reforma social, sindicatos, partidos políticos, democracia parlamentarista e daí por diante, conseguindo, assim, acabar de forma tão imaculada e impotente.
(...)

As políticas emancipadoras inserem o primeiro passo do futuro no coração do presente. Elas representam uma ponte entre o presente e o futuro, o ponto onde os dois se cruzam. E ambos são alimentados pelos recursos do passado, no sentido das preciosas tradições políticas que precisam de luta para ser mantidas vivas.

(...)

A história precisa ser rompida e refeita — não porque os socialistas arbitrariamente preferem a revolução à reforma, sendo bestas sedentas de sangue surdas à voz da moderação, mas devido à gravidade da doença que precisa ser curada.

Leia também: Marx e a natureza humana

12 de abril de 2018

Divagações sobre violência e história (1)

Os últimos acontecimentos parecem provar que qualquer melhora na justiça social no País é intolerável. Nem mesmo a luta por igualdade social seria admissível.

Não foi apenas a execução de Marielle. Muito menos, a prisão de Lula. São as dezenas de milhares de mortes anuais. Não somente de lutadores sociais nos sertões e grotões, mas da população preta e pobre, moradora das periferias e condenada por mera suspeição.

Estamos entre os campeões mundiais de desigualdade social, mas somos uma das maiores economias do planeta. É o contraste entre as duas coisas que exige uma enorme e eficiente máquina de moer tanta gente humilhada e explorada.

Talvez, seja essa máquina que torne o surgimento de um movimento de massas fascista mais que difícil, desnecessário entre nós. No lugar de hordas nazistas homicidas uniformizadas, já temos forças de segurança fortemente armadas, fardadas ou à paisana.

Entre os muitos fascistas que ocupam cargos no aparato estatal poucos foram eleitos.

Qualquer esperança de melhora na situação social do País só parece possível por processos violentos. Não os da luta armada popular, mas principalmente pelo choque radicalizado de interesses de classe.

É o choque violento entre facções das classes dominantes que abre brechas para que as forças populares possam conquistar vitórias importantes. Foi assim em 1917, por exemplo. Não apenas no interior do Império Russo. Havia também um cenário rasgado por sangrenta guerra entre potências imperialistas.

Mas essa hipótese pode levar a uma omissão historicamente criminosa e politicamente desastrosa. Aguardar a ocorrência de graves divergências entre os de cima para somente então agir, seria uma aposta na barbárie.

Voltaremos ao tema.
  
Leia também: Como faz falta uma boa guilhotina

11 de abril de 2018

Machado de Assis e o escravocrata abolicionista

No livro “Machado: Romance”, Silviano Santiago narra os últimos anos da vida de Machado de Assis no início do século 20, ainda muito marcado pela recém-abolida escravidão. Abaixo, um episódio revelador.

Em agosto de 1889, D. Pedro II concedeu o título de barão de São Clemente ao fazendeiro Antônio Clemente Pinto. Honraria concedida por ter sido o primeiro plantador de café no estado fluminense a liberar seus escravos antes da Abolição.

Mas há boatos maliciosos sobre a generosa atitude. Clemente Pinto é próxima da família real. Nessa condição, teria sabido, em primeira mão, que a escravidão negra já tinha os dias contados, logo no início de 1888.

Em seu romance “Memorial de Aires”, Machado teria criado o personagem barão de Santa-Pia inspirado em Clemente Pinto. Tal como este, ele também liberta seus escravos, mas explica seu ato muito claramente. Referindo-se à abolição, afirma:

Quero deixar provado que julgo o ato do governo uma espoliação, por intervir no exercício de um direito que só pertence ao proprietário, e do qual uso com perda minha, porque assim o quero e posso.

E o barão de Santa-Pia complementa:

Estou certo que poucos deles deixarão a fazenda; a maior parte dos homens livres ficará comigo, ganhando o salário que lhes vou marcar, e alguns até sem nada —, pelo gosto de morrer onde nasceram.

De fato, o narrador conta que os ex-escravos de Clemente Pinto ficaram tão agradecidos com o “gesto misericordioso” do fazendeiro que se recusaram a receber os salários da colheita seguinte de café.

Desde então, mudou pouco a forma como funciona a dominação de classe entre nós.

10 de abril de 2018

Marx e a natureza humana

Mais trechos de “Marx Estava Certo”, livro do marxista britânico Terry Eagleton, publicado originalmente em 2011. Agora, sobre a existência ou não de uma natureza humana:

...alguns marxistas insistem em que não existe uma essência imutável nos seres humanos. Em sua opinião, é nossa história, não nossa natureza, que nos faz ser o que somos, e, como a história tem tudo a ver com mudança, podemos nos transformar alterando nossas condições históricas. Marx não era adepto integral desse argumento “historicista”.

(...)

No volume I de “O capital”, Marx fala da “natureza humana em geral e depois (...) conforme modificada em cada época histórica”.

(...)

Os seres humanos, por exemplo, nascem todos “prematuramente”. Durante muito tempo após o nascimento, são incapazes de cuidar de si mesmos, tendo necessidade, em consequência, de um prolongado período de assistência

(...)

Ainda que os cuidados recebidos sejam péssimos, os bebês logo assimilam uma noção do que é cuidar dos outros. Esse é um dos motivos por que, mais tarde, talvez sejam capazes de identificar todo um estilo de vida como insensível às necessidades humanas. Nesse sentido, podemos passar do nascimento prematuro para a política.

(...)

...é um erro pensar que a ideia de natureza humana não passa de uma apologia do “status quo”. Ela também pode agir como um poderoso desafio a ele.

(...)

Somente por meio dos outros podemos, enfim, ser nós mesmos. Isso significa um enriquecimento, e não uma redução, da liberdade individual. É difícil pensar numa ética mais perfeita. Em nível pessoal, chamamos a isso amor.

Mais do que concordar com essa concepção, precisamos apostar nela.

9 de abril de 2018

Fim da “democracia racionada”?

A quinta vereadora mais votada da segunda maior cidade do País é executada. Ela era negra, feminista, homossexual, favelada e socialista. Muito provavelmente, foi esse perfil de Marielle que a transformou em alvo.

Lula foi preso, sob acusações muito menos graves que aquelas dirigidas a dezenas de outros governantes e parlamentares, incluindo o atual presidente da República.

Os direitos trabalhistas foram destruídos e os previdenciários estão na alça de mira, assim como a saúde pública. A maioria das propostas de reforma política em discussão no Congresso concentra-se na restrição à representação popular.

Fala-se em crise da Nova República. O arranjo que permitiu o retorno de eleições e liberdades políticas básicas estaria se esgotando. Enquanto isso, permanece firme o acordo que manteve intacto o aparato policial-militar da ditadura.

Talvez seja o caso de lembrar o conceito de “democracia racionada”, criado por Carlos Marighella para descrever:

...os regimes brasileiros que não são exatamente uma ditadura aberta, mas que também não se tornam democráticos. Assim, podemos definir a democracia racionada como uma forma semilegal em que a violência contra os pobres e os opositores se combina com ações autoritárias dentro da legalidade e os escassos direitos são distribuídos a conta gotas para os setores mais moderados da oposição.

Na última vez em que essa democracia à base de pequenas rações foi interrompida, uma brutal repressão empurrou alguns setores da esquerda para a luta armada e levou outros a mergulhar no trabalho de base clandestino. Aumentou ainda mais a violência contra os pobres, sob o pretexto de combater a desordem social.

Nossa democracia sempre foi um banquete para muito poucos.

Leia também: Na Copa, democracia racionada, repressão abundante