Doses maiores

23 de dezembro de 2021

Papai Noel, porco capitalista

As festas de Natal no Brasil costumam ser tristes. Ou, pelo menos, melancólicas. Se alguém duvida, é só lembrar do cancioneiro popular. Não aquele importado do norte gelado, mas o nascido nos sertões, cidades e litorais marcados pela desigualdade social que frustra os sonhos natalinos de muita gente. Principalmente das crianças.
 
Pra começar, citemos alguns versos do baiano Assis Valente:

Já faz tempo que eu pedi
Mas o meu Papai Noel não vem
Com certeza já morreu
Ou então felicidade
É brinquedo que não tem


Outros do paulista Adoniran:

Eu me lembro muito bem
Foi numa véspera de Natal
Cheguei em casa
Encontrei minha nega zangada, a criançada chorando
Mesa vazia, não tinha nada

Mas, talvez, devêssemos passar da melancolia à raiva. Como nessas estrofes cometidas pelos Garotos Podres em "homenagem" ao velhinho do Polo Norte:

Papai Noel velho batuta
Rejeita os miseráveis
Eu quero matá-lo
Aquele porco capitalista

Presenteia os ricos
Cospe nos pobres
Presenteia os ricos
Cospe nos pobres

Papai Noel velho batuta
Rejeita os miseráveis
Eu quero matá-lo
Aquele porco capitalista

Presenteia os ricos
Cospe nos pobres
Presenteia os ricos
Cospe nos pobres
Pobres
Pobres

Mas nós vamos sequestrá-lo
E vamos mata-lo
Por que?

Aqui não existe natal
Aqui não existe natal
Aqui não existe natal
Aqui não existe natal
Por que?

Papai Noel velho batuta
Rejeita os miseráveis
Eu quero matá-lo
Aquele porco capitalista

Presenteia os ricos
Cospe nos pobres
Presenteia os ricos
Cospe nos pobres

Apesar disso tudo, que as festas sejam as menos cruéis possíveis. E que no ano que vem por aí, nos livremos de muitos outros velhos batutas!

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A família Marx festeja o Natal
Papai Noel não é de esquerda, mas existe!

22 de dezembro de 2021

Menos teorias conspiratórias, mais Marx

No final de sua tese de doutorado, posteriormente transformada no livro “Menos Marx, mais Mises”, Camila Rocha conclui:

A intenção foi apontar para a relevância da atuação de uma militância organizada em diversos grupos políticos e entidades civis durante este processo, o qual culminou na formação de um amálgama ideológico inédito no Brasil: o ultraliberalismo-conservador. Além disso, também procurei chamar a atenção para as continuidades e descontinuidades dos esforços promovidos por tal militância tendo em vista suas conexões com redes formadas por atores que iniciaram suas atividades políticas em décadas anteriores, apoiada no modo como os próprios personagens analisados aqui foram conferindo sentido às suas ações ao longo do tempo a partir de conjunturas políticas específicas, orientando e reorientando suas atividades na sociedade civil e na esfera pública.

À parte o elogiável esforço para entender a “nova direita” brasileira, o excelente trabalho da pesquisadora também pode ajudar a esquerda a rever seus caminhos e escolhas.

O estudo ajuda a nos livrar de teorias da conspiração que atribuem à direita uma óbvia necessidade de nos combater. Que haja manobras conspiratórias, não restam dúvidas. Mas o trabalho de Camila também evidencia que tais conluios estão mergulhados e sofrem contradições resultantes da mesma luta de classes que os explorados e a esquerda travam contra os exploradores e o conjunto da classe dominante. Incluindo seus quadros teóricos, ideológicos e agitadores profissionais.

Trata-se de fazer a disputa de hegemonia na sociedade atravessada pelos dilemas da pobreza, violência, injustiça e alienação e não apenas nas campanhas eleitorais e nos gabinetes e palácios. Ou seja, precisamos de mais Marx. Muito mais.

Leia também: Estrela-do-mar ou hidra de sete cabeças

21 de dezembro de 2021

Estrela-do-mar ou hidra de sete cabeças

Os primeiros think-tanks pró-mercado brasileiros atuavam de forma centralizada, mas a maioria das organizações criadas a partir de 2006 passou a operar de modo mais horizontal e descentralizado.

Em seu livro “Menos Marx, mais Mises”, Camila Rocha explica que esse tipo de funcionamento, “não é sinônimo de falta de profissionalização”. Esses militantes passaram a atuar a partir dos contra-públicos digitais e se profissionalizaram através de cursos de formação política e treinamento oferecidos por organizações norte-americanas, como Atlas Network, Cato, entre outras.

Além disso, diz ela, também passaram a adotar formas de intervenção na esfera pública completamente diferentes das adotadas pelas gerações anteriores, como atos e protestos de rua voltados para a conquista de corações e mentes de pessoas comuns, sedimentando sua atuação para além da internete e da influência sobre formadores de opinião.

Uma das metáforas utilizadas pela direita ultraliberal para explicar esse tipo de atuação era a da estrela-do-mar. Afinal, a estrela-do-mar pode perder um de seus “braços” e não apenas reconstituir outro no lugar, como o “braço” mutilado pode gerar outra estrela-do-mar.

Mas, talvez, a hidra de sete cabeças seja uma metáfora mais adequada. A criatura mitológica tinha o poder de fazer nascer uma nova cabeça no lugar daquela que foi decepada. Mas se matar um monstro assim já é complicado quando se está armardo com uma espada, imagine para quem abriu mão de quase todas as suas armas.

E foi isso o que a esquerda acabou fazendo durante os anos em que esteve no poder. Abandonou, principalmente, o trabalho de base, a independência de classe e a mobilização popular.

Concluiremos na próxima pílula.

Leia também: A direita ultraliberal vai para as ruas

20 de dezembro de 2021

A direita ultraliberal vai para as ruas

"Vem cá, você acha legal pagar três reais no ônibus? Não! E se eu fizesse aqui uma van e cobrasse um real de vocês? Legal! Só que o Estado não deixa porque é regulado aqui no Rio, sabe o que a gente tem que fazer? Privatizar tudo e criar livre mercado no setor! Êeee!”. Assim a gente trouxe o liberalismo pro dia-a-dia do sujeito.

As palavras acima são de Bernardo Santoro, dirigente do Instituto Liberal do Rio de Janeiro. Aparecem no livro “Menos Marx, mais Mises”, de Camila Machado. Mostram como a extrema-direita neoliberal passou a ir às ruas disposta a disputar a hegemonia junto às grandes massas.

Segundo a autora, desde 2011, esses setores organizavam demonstrações públicas como o “Dia da Liberdade de Impostos”. Também foram oportunistas participando das “Marchas da Maconha” para defender o fim da presença do Estado em qualquer esfera da vida pública.

Estiveram presentes em manifestações contra a corrupção convocadas por entidades como CNBB e OAB. Sempre divulgando suas bandeiras privatizantes.

Nesse período, diz Camila, houve uma adesão quase completa da aliança lulista ao sistema político tradicional, diluindo e escondendo diferenciações ideológicas e programáticas reais no cenário político.

Começava a se desenhar a possibilidade de a direita ultraliberal aparecer como elemento antissistema, mesmo estando a serviço do grande capital.

Durante os protestos de 2013, surgiu o Movimento Brasil Livre. Mas ainda não era o momento para a direita capitalizar os protestos. Tanto é que no final daquele ano, a página do movimento no Facebook foi abandonada por falta de seguidores.

O momento oportuno só aconteceria em 2014.

Continua na próxima pílula.

Leia também: Ultraliberalismo: sem vergonha de aderir ao fascismo

18 de dezembro de 2021

Ultraliberalismo: sem vergonha de aderir ao fascismo

“A partir da redemocratização se dizer de direita passou a ser algo desconfortável”, afirma Camila Machado em seu livro “Menos Marx, mais Mises”.

A vergonha em se afirmar de direita, porém, diz Camila:

...não dizia respeito apenas aos políticos, mas também se estendeu a seus ideólogos, simpatizantes e eleitores. Foi apenas em meio auge do lulismo, entre 2006 e 2010, a partir da atuação de membros de contra-públicos digitais, formados especialmente a partir da rede social Orkut, que aos poucos tal vergonha começou a se dissipar.

Segundo a autora, dois fatores contribuíram para que isso ocorresse. Primeiro, o impacto do escândalo que ficou conhecido como “mensalão”. O segundo, a existência de comunidades digitais nas quais era possível discutir questões polêmicas sob anonimato e se manifestar de modo agressivo contra o governo mais popular do país até então.

Os ultraliberais, assim como os frequentadores das comunidades virtuais de Olavo de Carvalho, não encontravam representatividade em públicos dominantes, uma vez que nestes públicos a defesa do livre-mercado era realizada em grande medida por neoliberais alinhados em maior ou menor grau ao PSDB. E os tucanos eram considerados pelos frequentadores das comunidades ultraliberais do Orkut como sendo de esquerda.

Muitos desses ultraliberais defendiam as propostas do economista austríaco Ludwig Von Mises, adepto da privatização generalizada da vida social, incluindo Banco Central, monopólio da moeda, agências reguladoras e, claro, todos os serviços públicos. Em relação a questões como o direito ao aborto e à união homoafetiva eram favoráveis. Mas em nome do combate ao PT, deixaram de lado essas bandeiras e se juntaram aos fascistas. Sem vergonha nenhuma.

Continua.

Leia também: A direita que considera Geisel socialista

17 de dezembro de 2021

A direita que considera Geisel socialista

“Nós tivemos no governo militar uma orientação muito boa do Castelo Branco, mas o Geisel era socialista”. Esta pérola foi dita por Adolpho Lindenberg, um dos fundadores do movimento Tradição, Família e Propriedade. Está no livro “Menos Marx, mais Mises”, de Camila Rocha.

A frase deixa bem clara a disposição de alguns setores da direita brasileira de ir fundo em seu liberalismo selvagem. Só não haviam encontrado a oportunidade certa durante a ditadura, nem no período imediato posterior a ela.

A fundação do Instituto Liberal de São Paulo foi um marco. Mas, em 1992, o economista Paulo Rabello de Castro e o empresário Thomaz Magalhães fundaram no Rio de Janeiro o Instituto Atlântico. Um de seus principais focos, diz a autora:

...era atingir as classes populares. Para tanto, passaram a ser divulgadas pela organização as ideias de capitalismo popular e privatização popular, ou seja, como os trabalhadores comuns poderiam se beneficiar materialmente do estabelecimento de uma ordem política e econômica orientada para o desenvolvimento do livre-mercado. Desse modo, poucos anos após a fundação da organização, foi estabelecido um convênio estável com a Força Sindical, uma das maiores centrais sindicais do país, por meio do qual foram distribuídas aos trabalhadores, ao longo da década de 1990, mais de um milhão de cartilhas ilustradas pelo cartunista Ziraldo, as quais versavam sobre temas diversos dentro do enfoque do capitalismo popular. Um dos temas principais veiculados pelas cartilhas era a privatização da previdência.

A disputa de hegemonia chegava a um nível mais inteligente e perigoso. O descuido da esquerda nesse campo trouxe as trágicas consequências que estamos vivendo hoje.

Continua.

Leia também: O Komitern neoliberal

16 de dezembro de 2021

O Komitern neoliberal

A expressão “think-tank” teve origem nas salas secretas nas quais eram discutidas estratégias bélicas durante a Segunda Guerra. Por volta da década de 1960, nos Estados Unidos, passou a denominar organizações civis privadas mantidas com doações de pessoas físicas ou jurídicas, que reuniam especialistas e técnicos, normalmente recrutados junto à academia.

Nas últimas décadas, os think-tanks voltados para a defesa do neoliberalismo ganharam grande poder. Principalmente, graças ao patrocínio do grande capital. Os mais importantes dentre eles são o Institute for Humane Studies (IHS) e a Atlas Network, cujo nome inspirou-se no romance de Ayn Rand, “A revolta de Atlas”, que defendia o ideário neoliberal.

Atualmente, é possível dizer que praticamente todos os think-tanks pró-mercado mais importantes ao redor do globo fazem parte da rede constituída pela Atlas. São mais de 400 afiliados distribuídos em mais de 80 países e regiões, incluindo Canadá, Estados Unidos, Europa, Ásia Central, Oriente Médio, África, sul da Ásia, Extremo Oriente, Austrália, Nova Zelândia e América Latina.

As informações acima estão no livro “Menos Marx, mais Mises”, de Camila Rocha. Nele, a autora observa que seria “tentador pensar a rede de organizações articuladas pela Atlas e pelo IHS como uma espécie de Komintern neoliberal, exceto pelo fato de que estas afirmam enfaticamente não receberem qualquer tipo de financiamento estatal”.

Em 1987, surgiu o primeiro integrante com algum peso desse “Komintern” (Internacional Comunista) no Brasil. Era o Instituto Liberal de São Paulo. Mas somente no início do século 21, essa rede começaria a mostrar suas garras por aqui.

Mais na próxima pílula.

Leia também: Ideólogos de segunda classe na defesa do neoliberalismo

15 de dezembro de 2021

Ideólogos de segunda classe na defesa do neoliberalismo

Em seu excelente livro “Menos Marx, mais Mises”, Camila Rocha busca identificar a “gênese” da nova direita brasileira. Para tanto, destaca o papel dos chamados contra-públicos formados pela direita, em favor do neoliberalismo.

Um dos primeiros a defender esse tipo de atuação foi o economista austríaco Friedrich Hayek. No final dos anos 1940, as ideias desse guru do neoliberalismo eram desprezadas ou hostilizadas pelo consenso em torno das políticas keynesianas. Em resposta, ele recomendava que a divulgação de suas propostas fosse feita através de estruturas não partidárias, como forma de preservar sua “pureza”. Além disso, ele entendia que era preciso:

...influenciar indivíduos que denominava como “ideólogos de segunda -classe”: jornalistas, acadêmicos, escritores e professores. Dessa forma, seria possível difundir o ideário neoliberal junto à opinião pública e criar, com o tempo, um consenso “neoliberal” no seio da sociedade, de forma análoga com o que, em sua percepção, teria ocorrido com ideias de matriz socialista ou socialdemocrata.

A tática preconizada por Hayek começou a dar frutos em 1955, com a criação do Institute of Economic Affairs (IEA), na Inglaterra. Uma das primeiras organizações que viriam a ser chamadas de “think-tanks”.

O IEA, diz Camila, acabou por desempenhar um papel fundamental na política britânica, não apenas no plano das ideias, mas também no da política profissional. Nos anos posteriores, forneceria quadros e assessores técnicos para o governo de Margareth Thatcher.

Em 1973, surgia o Heritage Foundation nos Estados Unidos. E até 2000, o número de think-tanks estadunidenses mais do que quadruplicou, crescendo de menos de 70 para mais de 300.

Era o neoliberalismo partindo para a ofensiva.

Continua.

Leia também: O nascimento da nova direita brasileira

14 de dezembro de 2021

O nascimento da nova direita brasileira

“‘Menos Marx, mais Mises’: uma gênese da nova direita brasileira” é o título da tese de doutorado de Camila Rocha, defendida em 2018 na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.

Lançado recentemente em formato de livro, o estudo tem como argumento central a ideia de que a:

...formação de uma nova direita no Brasil se originou a partir da organização na internet de grupos de discussão e militância durante o auge do lulismo, entre 2006 e 2010.

Um dos principais conceitos utilizado pela autora é o de contra-público, originalmente pensado para denominar grupos que partilham um status subordinado na estrutura social, criando e fazendo circular discursos de oposição à ordem dominante. Por exemplo, os coletivos que integram o movimento feminista.

Ocorre que também existem contra-públicos conservadores, como o dos fundamentalistas-cristãos nos Estados Unidos. Assim, os membros dos contra-públicos:

...a despeito de serem subalternos ou não, partilhariam identidades, interesses e discursos tão conflitivos com o horizonte cultural dominante que correriam o risco de enfrentarem reações hostis caso fossem expressos sem reservas em públicos dominantes, cujos discursos e modos de vida seriam tidos irrefletidamente como corretos, normais e universais.

O que o estudo de Camila constatou foi o surgimento e crescimento de contra-públicos não-subalternos graças, principalmente, à popularização da internete dos últimos anos. Ou seja, trata-se do aumento da influência de grupos de direita e extrema-direita potencializado pela ampliação do acesso às redes virtuais.

Mas, muito antes disso,
nos anos 1940, um dos primeiros a defender o surgimento desse tipo de iniciativa foi o guru do neoliberalismo, o economista austríaco Friedrich Von Hayek.

Continua.

Leia também: Uma etnografia dos delírios do fascismo nacional

13 de dezembro de 2021

Ilusões Perdidas ou a imprensa como armazém de palavras

“Ilusões Perdidas”, de Xavier Giannoli, é um belo filme. Baseado na obra-prima homônima de Honoré de Balzac, a abordagem do diretor privilegiou o comércio de informações a que parte da imprensa francesa das primeiras décadas do século 19 se dedicou. Mas, certamente, o objetivo é fazer referência aos tempos atuais, empesteados pelas chamadas “fake news".

Alguns trechos do romance original mostram essa situação, quando um dos personagens afirma: ”a polêmica, meu caro, é o pedestal das celebridades”. Ou quando alguém diz que todo jornal é “um armazém onde se vendem ao público palavras da cor que ele quiser”. Um jornal, reforça ele:

...não é mais feito para esclarecer, mas para adular as opiniões. Assim, todos os jornais serão, mais cedo ou mais tarde, covardes, hipócritas, infames, mentirosos, assassinos; matarão as ideias, os sistemas, os homens, e florescerão exatamente por isso. Terão o benefício de todos os seres da razão: o mal será feito sem que ninguém seja culpado por ele.

A trama de Balzac se passa durante a restauração da nobreza na França. Mas o verdadeiro poder já era o das finanças. O valor de troca iniciava seu longo império sobre o valor de uso, inclusive nos meios de comunicação.

Agora, como antes, não interessa saber o quanto de verdade há numa informação. Apenas o quão rápida e amplamente ela circula. Ontem, eram os jornais vendidos nas esquinas. Hoje, são cliques e likes.

Ilusão, mesmo, é a crença de que as manipulações cometidas por séculos pela imprensa empresarial não acabassem por jogar a tal esfera pública de volta ao pântano da desinformação em larga escala.

Leia também: A economia política da “pós verdade” (3)

10 de dezembro de 2021

A aposta radical de Toussaint Louverture

No encerramento de seu livro "O maior revolucionário das Américas", biografia de Toussaint Louverture, Sudhir Hazareesingh lembra que somente em abril de 1998, o grande líder negro integrou o panteão dos heróis da França. O autor adverte, porém, que nenhuma das inscrições nos monumentos destinados a ele:

...explicava por que Toussaint foi capturado; nem que foi preso traiçoeiramente pelo exército francês; nem que os homens que o prenderam foram mandados por Bonaparte para restaurar a escravidão no Caribe. Esses subterfúgios e contradições refletiam a incapacidade, por parte da tradição republicana francesa, de ir além de seus relatos egocêntricos sobre a escravatura e sua abolição e de lidar com a atitude hesitante da revolução de 1789 sobre igualdade racial. Os monumentos oficiais em memória de Toussaint mostravam a relutância da França em afastar-se demais da “doce utopia colonial” sobre a história de seu império — ou seja, a de que a escravidão foi produto do “ancien régime”, e que foi extirpada da comunidade nacional pela revolução; de que esse desfecho resultou da intervenção francesa esclarecida, e não da ação revolucionária dos próprios escravizados negros.

Por isso, Hazareesingh prefere destacar um grafite pintado em 2016, nos muros de Belfast, Irlanda do Norte. A pintura em homenagem a Frederick Douglass mostra Toussaint em companhia de figuras lendárias da emancipação negra, como Martin Luther King, Nelson Mandela, Rosa Parks, Paul Robeson, Muhammad Ali, Bob Marley, Steve Biko e Angela Davis.

Louverture fez uma aposta radical na luta pela igualdade racial sob inspiração da mais emblemática das repúblicas burguesas. Pagou com a própria vida porque capitalismo e democracia racial são incompatíveis.

Leia também: Facetas e atitudes contraditórias de Toussaint Louverture

9 de dezembro de 2021

Facetas e atitudes contraditórias de Toussaint Louverture

Antes de encerrar esta série sobre o "O maior revolucionário das Américas", biografia de Toussaint Louverture, seria importante destacar algumas esquisitices do biografado.

Seu autor, Sudhir Hazareesingh, relata, por exemplo, a enorme capacidade de trabalho de Louverture:

...um dia típico de trabalho durava normalmente dezesseis horas, e seu “infatigável zelo” era tamanho que todos em seu “entourage” (...) viviam “assoberbados de trabalho e cansaço”. Ele despachava uma média de duzentas cartas diárias, e era capaz de viajar até 200 km por dia, e, a pleno galope, ninguém o igualava em resistência.

Católico fervoroso, jamais deitava-se com uma de suas amantes sem antes perguntar-lhes se tinham feito a comunhão. A nova Constituição atribuía a ele controle rigoroso sobre a nomeação dos padres. Era a aplicação muito peculiar adotada por Louverture da separação entre Estado e Igreja, defendida pela Revolução Francesa.

Dentre os poderes constitucionais a ele atribuídos estava o de regular o comportamento privado dos cidadãos de Saint-Domingue. Nenhum membro das forças armadas poderia, por exemplo, casar sem sua autorização expressa. Além disso, uniões matrimoniais entre trabalhadores vinculados a propriedades rurais diferentes tinham que ser aprovadas pessoalmente por ele. Por fim, para se separarem, os casais deveriam apresentar um relato completo da situação para Toussaint arbitrar uma possível conciliação.

Os escravizados libertos das plantações passaram a receber remuneração, mas qualquer manifestação de negligência no trabalho era punida com o chicote. Algo que manteve perigosamente vivas as piores memórias da escravidão.

São algumas das facetas e atitudes contraditórias de um dos gigantes da História. Não estão entre as causas diretas de sua ruína, mas certamente contribuíram para ela.

Leia também: Toussaint Louverture traído e encarcerado

8 de dezembro de 2021

Toussaint Louverture traído e encarcerado

Em junho de 1801, as forças de Toussaint controlavam uma faixa significativa de territórios de Saint-Domingue. Mas ele não tinha homens em número suficiente para desferir um golpe decisivo contra as tropas francesas.

Além disso, como diz Sudhir Hazareesingh no livro "O maior revolucionário das Américas", Toussaint nunca demonstrou real intenção de separar Saint-Domingue do império francês.

Fingindo disposição para resolver o impasse, os franceses o convidaram para um encontro de negociação. Mas era uma armadilha. Toussaint foi preso e levado para a França, onde morreria na prisão, em abril de 1803.

Jean-Jacques Dessalines, segundo em comando das tropas de Toussaint, assumiu a liderança da resistência. Em 1º de janeiro de 1804, proclamou a independência, fundando o estado do Haiti.

Mas Dessalines eliminou todos os principais aliados de Toussaint. E criou um regime que rejeitava a ideia de seu antigo comandante de construir uma república multirracial. Somente os negros governariam.

Dessalines proclamou-se imperador em outubro de 1804, mas foi assassinado dois anos depois. Sua morte foi seguida por lutas fratricidas entre seus sucessores.

Em 1915, o presidente estadunidense Woodrow Wilson ordenou a invasão do país, dando início a uma ocupação brutal que durou quase duas décadas. Ao Haiti nunca foi perdoado o fato de ter surgido de uma revolução vitoriosa protagonizada por escravizados.

A figura de Toussaint Louverture foi repudiada por seus próprios ex-subordinados, mas jamais desapareceu da memória popular.

Fidel Castro revelou em 1954 que sua inspiração para “transformar Cuba de alto a baixo” era a insurreição dos escravos do Haiti. Como ele, muitos outros foram inspirados pelo grande revolucionário negro.

Concluiremos na próxima pílula.

Leia também: Toussaint derrota os poderosos exércitos de Napoleão

7 de dezembro de 2021

Toussaint derrota os poderosos exércitos de Napoleão

Continuamos a destacar algumas passagens do livro "O maior revolucionário das Américas", biografia de Toussaint Louverture escrita por Sudhir Hazareesingh.

Em outubro de 1801, Napoleão Bonaparte voltou-se totalmente contra as medidas tomadas por Louverture abolindo a escravidão em Saint-Domingue, futuro Haiti. “Sou a favor dos brancos, porque sou branco", declarou ele.

Toussaint preparou seu exército para receber as tropas francesas adotando uma tática de terra arrasada:

É imperativo que a terra que foi banhada por nosso suor não forneça alimento de espécie alguma ao inimigo. Rasguem as estradas com tiros e joguem as carcaças de cavalos mortos nas fontes; destruam e queimem tudo, para que os que vieram nos escravizar de novo tenham sempre diante dos olhos a imagem do inferno que merecem.

Centenas de brancos que tinham recebido alegremente a invasão francesa foram massacrados e seu sepultamento, proibido: os cadáveres em decomposição serviriam para espalhar o terror entre as forças francesas.

Toussaint combinava guerra convencional com combate de guerrilha. Constantemente em movimento e dormindo numa tábua poucas horas por noite, ele obrigava os franceses a longas e cansativas marchas para procurá-lo, sem sucesso.

Privando os invasores de descanso e suprimentos, preparava emboscadas letais para as tropas inimigas. Toussaint sabia exatamente quando e onde lançar esses ataques, graças a sua rede de informantes.

Um oficial francês afirmou que “bastava uma ordem de Louverture para seus homens reaparecerem e cobrirem todo o território diante de nós”. Além disso, ele se jogava diretamente na linha de frente.

Estava preparado o terreno para a independência do Haiti. Toussaint não viveria para vê-la. E, talvez, nem a desejasse.

Leia também: A república negra de Toussaint apavorava os colonizadores

6 de dezembro de 2021

A república negra de Toussaint apavora os colonizadores

Em 1801, Toussaint Louverture governava a colônia de Saint-Domingue, futuro Haiti, como representante da república francesa. A Constituição que criou para a colônia libertava os escravos, mas preservava o sistema de exploração, mantendo os libertos vinculados às propriedades dos colonizadores.

Segundo o livro "O maior revolucionário das Américas", de Sudhir Hazareesingh, a política agrária de Louverture não era um fim em si mesmo. A prioridade era defender as conquistas de Saint-Domingue contra intervenções externas.

Para Louverture, isso só seria possível com a revitalização da economia de “plantation”, gerando receitas a partir da exportação de produtos como açúcar e café de modo a serem usadas para “o bem comum”.

De fato, o efeito das medidas foi imediato, chegando a decuplicar a produção em determinadas propriedades. Os maiores beneficiados eram os empresários britânicos e americanos, além dos colonos europeus. Mas esses mesmos grupos desprezavam a doutrina de direitos humanos da Revolução Francesa e achavam inconcebível que diferentes etnias pudessem viver juntas em harmonia e igualdade.

Ao mesmo tempo, a ordem que Toussaint criara era vista como uma perigosa república negra pelas potências imperiais. Eles viam a Constituição de Saint-Domingue como uma “tocha” a ser usada para “atear fogo em seus próprios assentamentos” e fariam o que estivesse a seu alcance para “apagar as chamas revolucionárias", o mais rápido possível.

Entre as potências imperiais descontentes estava a própria França. A república nascida em 1789 resistiu a abolir a escravidão nas colônias até 1794. Após o golpe de 18 Brumário de 1799, Napoleão havia restaurado o trabalho escravo. Toussaint passara a ser um inimigo a ser derrotado.

Leia também: Toussaint liberta os escravos de Saint-Domingue

3 de dezembro de 2021

Toussaint liberta todos os escravos de Saint-Domingue

No final do século 18, a ilha de Hispaniola dividia-se entre os domínios espanhol e francês. Santo Domingo, de um lado, Saint-Domingue, do outro. Este último viria a se tornar o Haiti.

Segundo o livro "O maior revolucionário das Américas", de Sudhir Hazareesingh, a unificação sob o domínio francês havia sido determinada por um tratado assinado em 1795. Mas somente ocorreu em janeiro de 1801, quando Toussaint Louverture colocou a ilha sob controle francês.

Imediatamente, 15 mil trabalhadores foram emancipados da escravidão no território ocupado. Além disso, foram nomeados negros e mestiços para cargos no exército e na administração pública.

Em fevereiro de 1801, uma proclamação de Toussaint especificou que todos os libertos de Santo Domingo receberiam um quarto da safra como salário, exatamente como na parte francesa da ilha.

E não só isso. Em julho, Toussaint convidou a população para celebrar a aprovação de uma nova Constituição para o território unificado. O novo texto legal dizia que “escravos não podem existir neste território e a servidão está para sempre abolida. Aqui, todos os homens nascem, vivem e morrem livres e franceses”.

Nada disso agradou a Napoleão Bonaparte. Ele alegava que Toussaint havia concedido a si mesmo poderes ditatoriais, o que era verdade. Mas o próprio Bonaparte havia feito isso, em 1799. Com o golpe de estado de 18 Brumário, não apenas se tornou ditador como restaurou a escravidão nas colônias francesas.

Começava a contagem regressiva para a invasão da ilha por tropas vindas da França, prontas a afogar em sangue o atrevimento de Louverture. Mas o grande derrotado acabaria sendo o próprio Napoleão.

Leia também: Toussaint Louverture: Ogum no comando

2 de dezembro de 2021

Toussaint Louverture: Ogum no comando

Napoleão Bonaparte costuma ser considerado um dos maiores gênios militares da história. Uma de suas poucas derrotas foi para os russos. Mais precisamente, para o implacável inverno eslavo.

Mas outra grande derrota, pouco comentada, foi para as tropas negras de Saint-Domingue, futuro Haiti, em 1801. Nesse caso, não houve qualquer influência do fator climático, mas do gênio militar de Toussaint Louverture.

Louverture notabilizou-se pelo planejamento preciso de cada operação militar. Liderava pelo exemplo, estimulando os soldados pela prontidão com que se expunha a perigos mortais. Além disso, combinava métodos de guerra de guerrilha e formas convencionais de combate, explorando as habilidades de seus guerreiros.

Ao mesmo tempo, seus objetivos não se limitavam a conquistas territoriais, mas estavam lastreados num conjunto mais amplo de princípios de igualdade, autonomia política, humanidade e libertação da ocupação estrangeira.

Modelo de sobriedade, dormia apenas quatro horas por noite, não consumia bebidas alcoólicas, e sua capacidade de resistência física era maior do que a do mais duro dos soldados.

A autoridade de Toussaint repousava, também, na capacidade de apelar para as crenças de seus homens. Católico fervoroso, ele costumava usar na cabeça um lenço vermelho, visto pelos soldados como símbolo de Ogum, o espírito vodu da guerra, que levava seus seguidores ao combate e os mantinha a salvo.

Sua hiperatividade, somada à aparente invulnerabilidade física no campo de batalha, confirmava a crença dos soldados de que mantinha estreito contato com espíritos vodus e que estes lhe conferiam poderes sobrenaturais.

Nas próximas pílulas, voltaremos com mais informações do livro "O maior revolucionário das Américas", biografia de Toussaint Louverture de Sudhir Hazareesingh.

Leia também: Louverture: a liberdade negra se conquista com fuzis

1 de dezembro de 2021

Louverture: a liberdade negra se conquista com fuzis

Seguem mais algumas passagens do livro "O maior revolucionário das Américas", biografia de Toussaint Louverture escrita por Sudhir Hazareesingh.

Segundo o autor, a insurreição de escravizados de 1791 na colônia de San Domingue (futuro Haiti) foi o primeiro exemplo do tipo de coalizão de forças defendida pelo biografado. Eram escravizados e negros forros, africanos e crioulos, escravizados domésticos e fugitivos, capatazes e trabalhadores das “plantations”, guerreiros e clérigos...

Desde seu ingresso na insurreição de 1791 até sua morte, seu objetivo fixo era a emancipação dos escravizados de Saint-Domingue. Inspiravam-no as qualidades extraordinárias daqueles homens e mulheres: sua criatividade intelectual, coragem, humanidade e, acima de tudo, espírito de liberdade. Ao mesmo tempo, buscava afastá-los do confronto direto com os colonos brancos visando a construção de uma comunidade política de iguais, na qual negros, brancos e mestiços pudessem coexistir em paz.

Toussaint apresentava um conceito inovador de ordem cívica, no qual a cidadania era baseada não apenas em princípios abstratos, como igualdade e fraternidade, mas também na participação ativa em defesa da comunidade.

Ele nunca se empenhou muito em instituir uma forma de “poder negro”. Sua abordagem consistia em deixar líderes de origem africana surgirem naturalmente, ao mesmo tempo que promovia a igualdade civil e impedia que mentalidades racistas prevalecessem.

O objetivo de Toussaint era apenas construir uma república, tal como defendiam os revolucionários franceses. Mas diante da resistência racista dos colonizadores, Louverture foi obrigado a transformar um exército de maltrapilhos numa máquina de guerra formidável. Não à toa, em suas inspeções militares, ele costumava pegar um fuzil, brandi-lo no ar e gritar: “Isto é a nossa liberdade”.

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