Doses maiores

22 de março de 2024

No peito dos cristãos, pode bater um coração revolucionário

Christina Vital da Cunha, professora da UFF e autora do livro “Oração de traficante: uma etnografia” publicou um artigo no portal da Unisinos sobre a teologia do domínio, essa perigosa ameaça da extrema direita teocrática contra a democracia. Mas no final do texto, ela faz uma ressalva:

...vem crescendo no Brasil aqueles evangélicos críticos desta extrema direita, da politização das igrejas. Esses evangélicos críticos não defendem todas as bandeiras progressistas, mas são mais afinados com a defesa da justiça social, missão deixada por Jesus Cristo, do que com os interesses dos chamados “coronéis da fé”. Há ainda uma esquerda evangélica diversificada internamente e que se reúne em algumas denominações e comunidades, afastados da vida eclesiástica, mas com vigor na fé. Dado o crescimento evangélico na sociedade como um todo, em especial em suas bases, observaremos cada vez mais essa face evangélica na esquerda popular, engajada ou não em partidos, mas sempre em defesa da democracia e diversidade. As forças democráticas liberais ou de esquerda, acadêmicos em suas pesquisas, partidos em suas convenções, vão precisar considerar cada vez mais esses atores sociais em suas investigações e/ou ações políticas.

Lênin assinaria embaixo, uma vez que ele não cansava de alertar para a necessidade de prestar atenção às contradições presentes nos meios populares. Na época dele, o setor social mais conservador era o camponês. Mas isso não impediu que a Revolução de 1917 ocorresse graças à unidade operário-camponesa.

Lênin costumava dizer que no peito de um rude camponês pode bater um coração revolucionário. No íntimo de muitos cristãos também.

As doses diárias das pílulas ficarão suspensas até maio.

Leia também:
Fé e fuzil: espiritualidade, religião e emancipação humana
Aprendendo com Lênin a aprender com os camponeses

21 de março de 2024

Ada Lovelace, criadora do algoritmo cibernético

Ela é considerada a criadora do primeiro algoritmo cibernético da história. Filha do poeta Lorde Byron e da frequentemente esquecida matemática Anne Isabella Milbanke, Ada Lovelace foi assistente do pioneiro da computação Charles Babbage. Ambos trabalhavam na engenharia de produção da indústria de tecelagem da Londres do século 19.

Ada elaborou um conjunto de instruções a serem executadas por teares mecânicos que teve papel fundamental para a ciência da computação. Ela, porém, dava a essas instruções o nome de “diagrama” no lugar de “algoritmo”.

As operações que Ada criou incluíam a manipulação abstrata de qualquer entidade, não apenas de números. Desse modo, atribuiu um significado mais amplo para a definição de automação. Esta concepção de uma máquina que manipula símbolos de acordo com regras levou a uma transição fundamental das operações de cálculo para a computação de uso geral.

Infelizmente, tanto as contribuições de Babbage como as de Ada pertencem a uma época em que as hierarquias sociais e as apropriação dos saberes dos trabalhadores foram mistificadas e ocultadas pelo culto à genialidade de cientistas a serviço da burguesia. Como disse o historiador da computação Simon Schaffer, “Lovelace nunca viu maiores problemas na substituição da inteligência dos tecelões por uma série de cartões de programa, nem no desemprego a que foram condenados muitos trabalhadores qualificados de Londres.”

As informações são do livro “The Eye of the Master: A Social History of Artificial Intelligence” ou “O Olho do Mestre: Uma História Social da Inteligência Artificial”. Ainda sem tradução para o português, a obra é do filósofo italiano Matteo Pasquinelli e será tema de novas pílulas em breve.

Leia também: Racismo e machismo na conquista espacial

20 de março de 2024

Lênin sem tempo pra conversa fiada

Em seu livro "Lenin: Responding to Catastrophe, Forging Revolution“, Paul Le Banc define o leninismo como “um marxismo com pressa”. O autor também cita as palavras de Ana, irmã do líder russo, segundo as quais:

Vladimir não tinha paciência para a passividade, menos ainda para conversa fiada e exibicionismo. Ele queria levar seu conhecimento e suas habilidades para a classe que ele considerava destinada a realizar a revolução – a classe trabalhadora. Procurava pessoas que, como ele, estivessem convencidas de que a revolução na Rússia seria feita pela classe trabalhadora ou não seria feita.

Em 1900, ele expressou isso no ensaio “As Tarefas Urgentes do Nosso Movimento”:

Se tivermos um partido fortemente organizado, uma única greve pode transformar-se numa manifestação política, numa vitória política sobre o governo. Uma revolta numa única localidade pode transformar-se em revolução vitoriosa. Devemos entender que as lutas por reivindicações parciais e pela obtenção de certas concessões são apenas escaramuças leves com o inimigo, encontros entre postos avançados, enquanto a batalha decisiva ainda está por vir. Diante de nós, ergue-se a fortaleza inimiga, que faz chover tiros e granadas sobre nós, ceifando nossos melhores combatentes. Devemos capturar esta fortaleza, e iremos capturá-la, se unirmos todas as forças do proletariado que desperta com todas as forças dos revolucionários russos num partido que atrairá tudo o que é vital e honesto na Rússia.

O líder bolchevique tinha pressa porque sabia que capitalismo e barbárie são causa e efeito. Mais de 120 anos depois, as crises do sistema são cada vez mais frequentes e destrutivas. Estamos com cada vez menos tempo para conversa fiada.

Leia também: Lênin, sempre atento à luta de classes

19 de março de 2024

Alexandra Kollontai contra as feministas burguesas

Alexandra Kollontai foi a primeira mulher a integrar o alto escalão de um governo. Nada menos que o governo bolchevique. Sua trajetória mostra a importância do papel feminino no processo revolucionário russo.

Em “As Bases Sociais da Questão Feminina”, documento publicado em 1909, ela diferencia claramente as feministas das operárias:

O mundo das mulheres está dividido, tal como o mundo dos homens, em dois campos: os interesses e aspirações de um grupo de mulheres aproximam-no da classe burguesa, enquanto o outro grupo tem ligações estreitas com o proletariado e as suas reivindicações de libertação abrangem uma solução completa para a questão da mulher. Por mais aparentemente radical que sejam as demandas das feministas, não se deve perder de vista o fato de que elas não podem, tendo em conta a sua posição de classe, lutar pela transformação fundamental da estrutura econômica e social contemporânea da sociedade, sem a qual a libertação das mulheres não pode ser completada.

Claro que muita coisa mudou nesse debate, desde então. Mas a revolução que Alexandra ajudou a construir trouxe medidas radicais e inéditas de emancipação feminina. Aboliu, por exemplo, a inferioridade legal das mulheres e extinguiu a obrigatoriedade do casamento religioso. Simplificou o divórcio e ampliou a garantia do pagamento de pensões alimentícias. Remuneração igual para trabalho igual entre mulheres e homens também ganhou força de lei.

Mais tarde a reação conservadora stalinista viria a enterrar muitas dessas conquistas. Mas elas nunca deixaram de servir como referência fundamental para a luta das mulheres em todo o mundo. Alexandra é mais uma personagem do livro “Parteiras da Revolução”, de Jane McDermid.

Leia também: Parteiras muito radicais da revolução

18 de março de 2024

Neoliberalismo e extremismo de direita

Fundamentalismo religioso, guerra híbrida, dissonância cognitiva, militarismo, anarcocapitalismo, caos informativo, neofascismo. Estas são apenas algumas das chaves explicativas presentes no debate sobre a onda ultraconservadora que vem varrendo o mundo. Mas que elemento ideológico poderia dar coerência a esse caos conceitual? Um bom palpite é: o neoliberalismo.

Segundo Gramsci, a ideologia dominante reúne os elementos díspares e contraditórios que estão espalhados pelo senso comum para combiná-los de forma a justificar a ordem social. O resultado é uma massaroca que mistura religião, filosofia, valores tradicionais e modernos, crenças e preconceitos etc.

Ora, o neoliberalismo vem cumprindo perfeitamente essa função. Longe de ser apenas um modelo econômico, é uma racionalidade que penetrou toda a sociedade. Manifesta-se, por exemplo, na teologia que concebe a fé como instrumento de sucesso pessoal, no empreendedorismo como forma de ascensão social nas periferias e na organização racional da criminalidade promovida pelo PCC. Está na empresa e no sindicato. Nos governos, partidos, igrejas, mídias, universidades, ONGs. Ela impõe a mercantilização e financeirização da vida e um individualismo mergulhado na concorrência selvagem. Contaminou todas as esferas sociais, incluindo amplos setores da esquerda.

São muitas décadas de hegemonia neoliberal na Europa e Estados Unidos. Nos países dependentes, esse processo começou atrasado, mas foi sincronizado pela crise de 2008. Uma crise que o neoliberalismo criou e para a qual apresentou como solução a generalização do extremismo de direita a que estamos assistindo nos últimos anos.

Combater o neoliberalismo de forma abstrata não é suficiente para nos tirar dessa enorme encrenca. Mas se continuarmos a ignorá-lo vamos afundar ainda mais na barbárie.

Leia também: Austeridade fiscal e fascismo, tudo a ver

14 de março de 2024

Lênin, sempre atento à luta de classes

Mais relatos do livro “Lenin: Responding to Catastrophe, Forging Revolution“, de Paul Le Blanc.

No final de 1904, o padre ortodoxo Georgi Gapon liderava um numeroso setor dos operários russos. Como havia fortes suspeitas de que ele trabalhasse para a polícia czarista, os bolcheviques se negaram a participar do movimento.

Lênin também achava que o padre colaborava com as autoridades, mas avaliava que o movimento liderado por ele poderia levar a confrontos importantes para a conscientização da classe. Portanto, deveria ser fortalecido e disputado pelos bolcheviques.

Em janeiro de 1905, Gapon organizou uma grande marcha para pedir ao czar o atendimento de reivindicações populares. A marcha foi massacrada e o episódio serviu de estopim para a Revolução de 1905.

No mesmo ano, a direção bolchevique decidiu que não era hora de ajudar a criar sindicatos. Em vez disso, era preciso preparar uma revolta armada. Lênin discordou. Para ele, sindicatos eram organizações fundamentais para a conscientização dos trabalhadores e não havia qualquer sinal de disposição da população para um confronto armado.

Em outra ocasião, os dirigentes bolcheviques defenderam que o soviete de deputados operários adotasse integralmente o programa do partido. Novamente Lênin se opôs, afirmando que mais importante que tentar engessar os sovietes com doutrinas abstratas era conquistá-los para uma prática revolucionária.

Estes exemplos mostram a capacidade de Lênin de enxergar as oportunidades da luta de classes sem dogmatismos. Evidenciam também como as relações entre ele e seus camaradas eram conflituosas sem levarem a divisões ou paralisia. Mas isso só era possível porque o forte enraizamento do partido entre os trabalhadores servia como bússola para seus militantes.

Leia também: Lênin e o marxismo libertário

13 de março de 2024

Parteiras muito radicais da revolução

Em seu livro “Parteiras da Revolução”, Jane McDermid dedica um capítulo a mulheres militantes radicais que atuaram durante o processo revolucionário russo do começo do século 20. Entre elas, estava Vera Zasulich.

Na juventude, Vera abraçara o terrorismo dos populistas russos. Em 1878, atentou contra a vida do governador de São Petersburgo. Inesperadamente absolvida, ela fugiu para Genebra para escapar a novas prisões. Na capital suíça, aderiu ao marxismo, abandonando as ações violentas.

Vera considerava o feminismo divisionista e as concepções partidárias de Lenin elitistas. Para ela, a tomada do poder pelos sovietes em outubro de 1917 foi prematura. Apesar disso, sempre foi muito respeitada pelos bolcheviques.

Outra figura feminina radical era Ekaterina Breshko-Breshkovskaia. Integrante dos Socialistas Revolucionários (SRs), organização de esquerda adversária dos bolcheviques, era contrária às orientações da direção de seu partido, que condenava ações violentas. Defendia a necessidade de pegar em armas contra o Estado.

Maria Spiridonova também foi uma militante dos SRs que contrariava seus dirigentes, defendendo o assassinato de autoridades do regime czarista. Em 1907, ao tentar matar um guarda carcerário enquanto estava presa, foi condenada à morte. Aceitou sua execução como forma de dar novo impulso à luta. Mas a sentença foi anulada e ela passou dez anos na Sibéria.

Em 1917, presidiu o Primeiro Congresso dos Sovietes Camponeses. Apesar de rejeitar o marxismo, aliou-se aos bolcheviques na Revolução de Outubro. Acabou voltando ao terrorismo, ao tentar matar o embaixador alemão na Rússia, em julho de 1918.

Mas o stalinismo não poupou sua rebeldia. Maria desapareceu por volta de 1937, provavelmente executada por ordem de um tribunal militar soviético.

Leia também: Mais parteiras da revolução: Sanité Bélair

12 de março de 2024

Cessar-fogo e lucros cessantes

Os editoriais condenam a decisão do governo de reter o pagamento de dividendos aos acionistas da Petrobrás. A medida foi tomada pensando nos objetivos de longo prazo da estatal. Mas longo prazo é um conceito que não entra na cabeça tacanha dos grandes acionistas privados da petroleira. Tubarões gordos sempre famintos.

Outra notícia com repercussão bem menor foi a morte de um trabalhador de um galpão do gigante varejista Mercado Livre. Ele teria cometido suicídio, mas seus colegas foram obrigados a continuar trabalhando normalmente.

O que ambos os acontecimentos têm em comum? A lógica capitalista. Sejam as obrigações da Petrobrás em relação aos interesses públicos, seja a perda de uma vida, nada pode se deter diante da necessidade de manter elevada a rentabilidade que beneficia interesses privados.

No capitalismo, impera a ditadura do lucro. E não só nas tragédias ou decisões empresariais. Para que servem as fábricas de sapatos? Para calçar as pessoas? Não, para lucrar com a venda de calçados. O mesmo vale para as indústrias de alimentação e imobiliária. Aos milhões de desnutridos e sem-tetos não basta serem humanos se não forem consumidores.

A economia capitalista faz das necessidades vitais mero meio para gerar lucro abundante para alguns poucos. E não se trata apenas da vida humana, como demonstram os desastres ambientais.

Mas há um ramo econômico em que isso fica tragicamente explícito. A indústria armamentista multiplica seus ganhos na proporção direta em que destrói vidas. Seja nos conflitos entre países, seja no interior deles. Tanto em Gaza, Ucrânia, Sudão como nas periferias urbanas não há cessar-fogo porque isso implicaria lucros cessantes.

Leia também: O consumo como ameaça à humanidade

11 de março de 2024

Mais parteiras da revolução: Sanité Bélair

O livro “Midwives of the Revolution (Parteiras da Revolução)”, de Jane McDermid, relata a participação das trabalhadoras russas no processo revolucionário de 1917.

Mas se entendermos as parteiras da revolução como agentes imprescindíveis tanto na preparação do parto como no nascimento de uma nova ordem, elas estão presentes em vários momentos da história. Às vezes, atuam discretamente, mas sempre de forma persistente e decisiva.

Sanité Bélair era uma delas. Nascida em 1781, foi uma das poucas mulheres a integrar o exército de Toussaint Louverture, consagrando-se como grande combatente da luta revolucionária que livrou o Haiti tanto da domínio colonial como da escravidão. Um fenômeno raro nas lutas anticoloniais, que costumavam defender as liberdades sem abolir o trabalho servil.

Em 1791, Sanité liderou uma rebelião de escravizados ao lado de Charles Bélair, que se tornaria general das tropas revolucionárias e com quem ela se casaria. A seu lado, Sanité chegou ao posto de tenente, combatendo as forças coloniais francesas com tanta bravura e determinação que passou a ser chamada de “Tigresa” por seus companheiros de armas.

Quando Sanité foi capturada pelos franceses em 1802, Charles Bélair entregou-se aos inimigos para juntar-se a ela na prisão. Foram executados um ao lado do outro. Pouco antes de morrer fuzilada, Sanité teria gritado “Viva a liberdade, abaixo à escravidão!”

Assim são as parteiras que não só preparam o nascimento das revoluções como as acompanham em seus primeiros momentos. E nem os erros e frustrações tão frequentes nos processos revolucionários as impedem de persistir em seus esforços para trazer à luz novos momentos emancipatórios.

Leia também: As parteiras da revolução

7 de março de 2024

As parteiras da revolução

O livro é “Midwives of the Revolution: Female Bolsheviks and Women Workers in 1917”. Ainda sem edição em português, seu título pode ser traduzido como “Parteiras da Revolução: Mulheres Bolcheviques e Mulheres Trabalhadoras em 1917”.

A autora, Jane McDermid, decidiu chamar as revolucionárias russas de parteiras porque elas “estiveram presentes no nascimento da nova ordem, mas não se limitaram a entregá-la aos revolucionários profissionais, tendo sido fundamentais nas fases finais do parto. O modo como a nova ordem se desenvolveu posteriormente e o desempenho das parteiras não deve obscurecer o papel crucial que desempenharam tanto na gestação como no nascimento”.

A autora cita como exemplo um artigo das irmãs de Lênin, Ana e Maria, publicado no Pravda em 5 de Março de 1917. Segundo o relato delas:

No Dia da Mulher, 23 de Fevereiro, foi declarada greve na maioria das fábricas. As mulheres estavam animadas de um espírito muito militante. E não apenas as trabalhadoras, mas também as que estavam nas filas do pão. Elas realizaram reuniões políticas. Eram a maioria nas ruas. Deslocavam-se pela cidade exigindo pão dos governantes. Paravam os bondes e gritavam aos passageiros: “Camaradas, saiam!”. Foram de fábrica em fábrica, convocando os trabalhadores a cruzarem os braços. Em suma, o Dia da Mulher foi um tremendo sucesso e deu origem ao espírito revolucionário.

23 de fevereiro correspondia a 8 de março no calendário ocidental. E o que as irmãs Ulianov relataram foram as manifestações do Dia Internacional da Mulher se transformando nas primeiras dores do parto da revolução que ocorreria meses depois, em outubro. As parteiras eram imprescindíveis e estavam na vanguarda.

Leia também: 1917: operárias russas atropelam bolcheviques

6 de março de 2024

Lênin e o marxismo libertário

No ano do centenário da morte de Lênin, lembremos o pouco conhecido lado libertário de sua elaboração teórica. As informações abaixo estão no livro “Lenin: Responding to Catastrophe, Forging Revolution“, de Paul Le Blanc.

Piotr Kropotkin foi um importante anarquista russo da virada do século 19 para o 20. Tinha grandes divergências com os marxistas, principalmente em relação à manutenção do Estado após a revolução.

Mas Kropotkin elogiou Engels quando este afirmou que “o proletariado precisa do Estado, não no interesse da liberdade, mas para reprimir seus inimigos, e assim que se tornar possível falar de liberdade, o Estado como tal deixa de existir”.

Na “Crítica ao Programa de Gotha”, Marx distinguia os estágios inferiores e superiores do comunismo. No primeiro, a democracia se tornaria um hábito entre os produtores livremente associados, dispensando as leis repressivas impostas pela polícia. Em “O Estado e a Revolução”, Lênin classificou a fase inferior como “socialismo” e a superior como “comunismo”.

Somente na sociedade comunista, escreveu Lênin, quando a resistência dos capitalistas tiver desaparecido, quando não houver classes, só então o Estado romperá sua relação com os meios de produção e desaparecerá pelo esgotamento de sua função histórica.

Em 1921, último ano de sua vida, Kropotkin, expressou a esperança de que a Rússia Soviética acabaria por evoluir, tal como Lênin imaginou em seu livro, para uma “sociedade comunista sem Estado”.

Infelizmente, as convergências entre Engels, Marx, Lênin e Kropotkin não foram suficientes. Suas esperanças libertárias acabaram soterradas pela contrarrevolução stalinista. Mas a construção de uma sociedade radicalmente livre e justa continua a animar e mobilizar tanto anarquistas como comunistas.

Leia também: Um Lênin anarquista, louco, isolado

5 de março de 2024

Como a esquerda deve apoiar Lula?

A melhor resposta à pergunta acima é: negando-se a defender incondicionalmente seu governo. O apoio a qualquer custo ao governo é a melhor maneira de facilitar o trabalho de oposição da extrema-direita na arena política, em geral, e nos movimentos sociais, em especial.

Sob os governos petistas anteriores, seus defensores afirmavam que o governo era disputado por dois grandes campos. De um lado, as facções burguesas financistas, arcaicas e entreguistas. De outro, os setores dinâmicos e produtivos da classe dominante, geradores de empregos e melhores remunerações. Aos movimentos sociais caberia defender suas conquistas sem fortalecer as piores alas da burguesia.

Já na situação atual, dizem os advogados do governismo petista, temos um governo que busca se credenciar como dirigente da direita democrática para impedir que ela seja cooptada pela direita fascista. E é melhor a esquerda não atrapalhar essa disputa.

Ocorre, em primeiro lugar, que a direita “dinâmica” ou democrática uniu-se à “entreguista” ou fascista no apoio ao golpe de 2016 e a Bolsonaro. Em segundo lugar, persiste uma forte base popular de sustentação da extrema-direita, como mostrou a recente manifestação bolsonarista na Av. Paulista. E, em terceiro lugar, a situação do País continua calamitosa para grandes parcelas da população. E a esquerda militante precisa manter ou reconquistar sua capacidade de representar os anseios populares que possam levar a grandes mobilizações por melhores condições de vida.

Um atalho muito curto rumo a uma nova vitória fascista é impor aos setores militantes da esquerda o papel de pelegos a serviço do governo petista. É permitir que a revolta popular fique sob o comando da extrema-direita.

Leia também: O lulismo e a dieta do caranguejo

4 de março de 2024

Fé e fuzil: espiritualidade, religião e emancipação humana

Se quiserem ter uma ideia sobre o que eram as primeiras comunidades cristãs, observem uma seção local da Associação Internacional de Trabalhadores.

A frase acima é de Joseph-Ernest Renan, filósofo francês do século 19. Ele se refere à chamada I Internacional, que teve entre seus fundadores Marx e Engels. E é este último que cita Renan em sua obra “Contribuição para a História do Cristianismo Primitivo”, buscando mostrar o potencial emancipador das primeiras comunidades cristãs.

Rosa Luxemburgo faz o mesmo em “O Socialismo e as Igrejas”. Ela transcreve, por exemplo, a passagem bíblica de "Atos dos Apóstolos", em que a primeira comunidade de Jerusalém é descrita desse modo:

Entre eles não havia ninguém necessitado, pois todos os que possuíam terras ou casas vendiam-nas, traziam o produto da venda e depositavam-no aos pés dos Apóstolos. E a cada um era distribuído de acordo com a sua necessidade.

Essas passagens ajudam a mostrar como as contradições da luta de classes atravessam as mais variadas esferas das sociedade, em épocas e situações  mais díspares. Vivemos um momento em que a religião é fortemente utilizada por projetos autoritários. É o que evidencia o livro “A Fé e o Fuzil”, de Bruno Paes Manso, que comentamos nas últimas pílulas.

Mas Manso também mostra que há muita gente atuando em defesa da fraternidade e da justiça social nas várias denominações religiosas. Além disso, o ateísmo ou agnosticismo são igualmente capazes de alimentar fundamentalismos.

Se a espiritualidade é uma importante afirmação da condição humana, a religiosidade que justifica a exploração e a opressão nas relações sociais é sua negação.

Leia também: Fé e Fuzil: o crime como modo capitalista de funcionamento

1 de março de 2024

O jornal revolucionário é como um andaime, dizia Lênin

“O jornal não é apenas um propagandista coletivo e um agitador coletivo; é também um organizador coletivo. A esse respeito, pode-se compará-lo aos andaimes que se levantam ao redor de um edifício em construção”.

O trecho acima está no livro “O que fazer”, de Lênin. Essa metáfora diz muito sobre as concepções organizativas defendidas por Lênin. O “andaime” de uma organização revolucionária não eram cargos em parlamentos, governos e direções sindicais, nem doações eleitorais ou contribuições dos filiados. É verdade que alguns desses recursos nem estavam ao alcance da esquerda socialista que atuava na Rússia czarista, dominada por um regime extremamente autoritário e com uma vida parlamentar e sindical muito frágil. Mas a questão central não era esta.

O fato é que a única força material com que podem contar os socialistas revolucionários é a capacidade organizativa dos explorados construída a partir das muitas formas de sua luta contra o capital. Depender de estruturas do Estado, aparatos burocráticos ou do mercado é caminho certo para a cooptação, destruição ou ambas.

Um jornal ou um instrumento equivalente de comunicação é fundamental para disputar a hegemonia com as classes dominantes, ao mesmo tempo em que organiza as forças dos explorados e oprimidos.

Mas nada disso deve ser encarado como uma receita. O próprio Lênin considerava datadas várias propostas apresentadas em “O que fazer”. Para ele, elemento fundamental e permanente era é o que já afirmava Marx: “A emancipação dos trabalhadores só pode ser obra dos próprios trabalhadores”. Por isso, o mais importante, dizia Lênin, é que o jornal revolucionário precisa ser feito para e pelos trabalhadores.

Leia também: Os professores Nádia e Lênin

29 de fevereiro de 2024

Os idiomas artificiais e o extermínio das línguas indígenas

Klingon: Star Trek. Dothraki: Game of Thrones. Nadsat: Laranja mecânica. Kryptoniano: Super-Homem. Na'vi: Avatar... Esta lista refere-se às línguas criadas para séries, filmes e livros de fantasia e ficção científica. Com menção especial para os idiomas Quenya, Sindarin e Élfico, inventados por J.R.R. Tolkien para a saga “Senhor dos Anéis”.

Fenômenos de massa, alguns desses idiomas artificiais estão disponíveis até em aplicativos de aprendizado de línguas estrangeiras. Ou seria melhor dizer alienígenas?

Mas o caso de Tolkien é específico. Ele criou os idiomas antes de inventar os povos que os utilizam. Faz todo sentido. Afinal, as formas simbólicas de comunicação de um povo dizem quase tudo sobre o que ele é, sua história, crenças, cultura, moral, religião. É por isso que entre as formas de dominação e extermínio cultural mais eficazes de um povo está a supressão de seu idioma. Um exemplo claro disso é a situação dos indígenas.

Calcula-se que quando os europeus invadiram as terras que atualmente chamamos Brasil, havia mais de 5 milhões de indígenas, falando cerca de 1.200 línguas. Hoje, esses idiomas foram reduzidos a um número entre 160 e 180. Uma das consequências disso é o baixo índice de pessoas que se identificam como indígenas na população brasileira. Ao massacre físico desses povos juntou-se seu extermínio simbólico. Um etnocídio.

Na esfera do entretenimento comercial, o capitalismo se apropria dos mundos criados pela fantasia humana para gerar cada vez mais lucros, beneficiando cada vez menos gente. Ao mesmo tempo, utiliza o extermínio cultural para eliminar mundos incompatíveis com sua lógica destruidora da vida e produtora de injustiça social.

Leia também: No pós-apocalipse, sob orientação indígena

28 de fevereiro de 2024

Os professores Nádia e Lênin

Quando Nádia Krupskaya conheceu Lênin, seu futuro companheiro, não gostou muito do comportamento implacável que ele adotava nas polêmicas partidárias. Por outro lado, a capacidade pedagógica de Lênin a impressionou muito positivamente. Nos grupos de estudos com trabalhadores, por exemplo, a primeira metade da aula era dedicada a uma apresentação de algum aspecto do “Capital”, de Marx. Na outra metade, Lênin estimulava os alunos a falarem sobre detalhes de suas vidas profissionais, relacionando os relatos ao que já haviam discutido.

Lênin também esteve na vanguarda daqueles que defendiam um método de agitação centrado nas necessidades cotidianas dos trabalhadores, apoiando ativamente suas lutas por melhorias no local de trabalho e combinando as lutas econômicas e políticas. Em suma, escreveria Nádia sobre Lênin mais tarde, ele fornecia “um exemplo brilhante de como abordar o trabalhador médio da época”.

Mas a própria Nádia era uma professora popular e respeitada entre os trabalhadores. Também era considerada uma organizadora extraordinariamente esforçada e eficaz, seja na sala de aula ou na clandestinidade. Por toda a sua vida, continuaria demonstrando talento em atrair mulheres trabalhadoras e jovens para a luta. Profundamente consciente das injustiças que permeavam a sociedade, ela comentava várias vezes, quase compulsivamente: “o trabalhador russo vive mal”, “nossos camponeses não têm direitos” e “a autocracia é inimiga do povo”, sempre procurando fazer avançar a si mesma e aos outros na luta por uma vida mais justa.

As informações acima estão no livro “Lenin: Responding to Catastrophe, Forging Revolution“, do marxista estadunidense Paul Le Blanc. Voltaremos a comentar essa obra durante este ano, que marca o centenário da morte do líder bolchevique.

Leia também: O Pravda enganando a perseguição czarista

27 de fevereiro de 2024

Fé e Fuzil: o crime como modo capitalista de funcionamento

Já comentamos o estatuto que rege o funcionamento do PCC, a partir de informações do livro “A Fé e o Fuzil”, de Bruno Paes Manso. Segundo este autor, trata-se da “governança do PCC”, com a qual “procurava-se garantir a justiça e a concorrência entre os irmãos, cabendo à mão invisível do mercado ilegal empurrar seus membros para uma ação mais racional e lucrativa”.

O bandido impulsivo, com sangue nos olhos, disposto a matar ou morrer, diz Manso, tinha dado lugar a uma gama de profissionais, como doleiros e advogados capazes de comprar fazendas, postos de gasolina, bares e emissoras de rádio que podiam esquentar o capital fazendo apostas em sites esportivos, criando contas-laranja, investindo em criptomoeda, paraísos fiscais, empresas e imóveis.

Afinal, informa o autor, já que crimes e dinheiro ilegal são inevitáveis, o jeito era enquadrar os criminosos dentro de certos limites para diminuir os danos. Se o dinheiro viesse do crime, mas o ladrão seguisse uma ética mínima, evitando a violência quando possível, emprestando dinheiro e empreendendo em negócios legais, as portas do sistema se abririam para ele. Foi o que aconteceu.

Foram encontrados fortes indícios de participação do PCC em empresas de transporte alternativo em São Paulo. O mesmo acontecendo no Rio, mas, neste caso, sob controle das milícias. O objetivo principal? Criar firmas legais para lavar dinheiro e desviar recursos públicos.

Tudo isso sem preferências partidárias. A criminalidade empreendedora interage com representantes da esquerda e da direita. Afinal, ambas precisam de dinheiro para vencer eleições, conclui Manso.

Tá errado? Sim, muito. Mas o crime sempre fez parte do modo capitalista de funcionamento.

Leia também: Fé e Fuzil: PCC, religião e racionalidade

26 de fevereiro de 2024

Fé e Fuzil: a revolta aliada da barbárie

Abaixo, outro relato do livro “A Fé e o Fuzil”, de Bruno Paes Manso.

Ney Santos nasceu em um bairro pobre de Embu das Artes, na Grande São Paulo. Não veio de movimentos sociais ou das comunidades católicas. Em 1999, foi condenado por receptação. Quatro anos depois, foi preso em flagrante, dentro de um automóvel utilizado em um assalto, passando dois anos na cadeia. De volta à liberdade, montou uma ONG que distribuía brinquedos no Dia das Crianças e passou a produzir shows na cidade.

Em 2010, se candidatou a deputado estadual. Durante a campanha, foi acusado de lavar dinheiro para o PCC em seus quinze postos de gasolina. Não foi eleito. Em 2012, elegeu-se vereador, mas foi condenado por compra de votos. Conseguiu manter o mandato graças a uma decisão judicial.

Teve a candidatura à prefeitura de Embu barrada pela Lei da Ficha Limpa, em 2016. Com uma liminar, venceu a disputa e assumiu o cargo. Criou uma guarda municipal ao estilo da Rota. Simpático e comunicativo, administrava em contato direto com a população nas redes sociais. Promoveu shows populares com celebridades do sertanejo e atuou com agilidade durante a Pandemia. Enfrentou novos processos, mas foi reeleito em 2020.

Durante a campanha, pesquisas mostraram que seu suposto envolvimento com o PCC era considerado positivo pela maioria. Facilitaria o controle dos roubos na cidade.

Apoiou Bolsonaro em 2018 e 2022.

Esse  caso é apenas mais um exemplo dos caminhos que tomou a frustração popular frente à “democracia racionada” da qual também nos tornamos reféns. No lugar da revolução, a revolta que se alia à barbárie.

Leia também: Fé e Fuzil: PCC, religião e racionalidade

23 de fevereiro de 2024

Fé e Fuzil: PCC, religião e racionalidade

O primeiro estatuto do PCC tinha como uma de suas referências os Dez Mandamentos. “Não usarás o nome do Senhor em vão”, por exemplo, inspirava um item que proibia o uso do PCC para objetivos pessoais. Quem flertava com as mulheres de outros presos infringia proibição semelhante ao mandamento “Não cobiçarás a mulher do próximo”. E havia o batismo, em que o novo integrante assumia a defesa da organização e das leis do crime.

O PCC também criou um sistema de comunicação eficiente para disseminar suas leis. Os “torres” usavam telefones para ditar as regras aos “sintonias”. Estes, espalhados pelos presídios e quebradas, rapidamente repassavam as mensagens.

Os “disciplinas” faziam funcionar um sistema informal de justiça com espaço para acusação, defesa, análise das provas e prolação de sentenças.

Os sintonias e os disciplinas formavam as células do PCC espalhadas pelas novas unidades penitenciárias construídas depois de 1995, durante a gestão do governador Mário Covas. Entre 1990 e 2020, mais de 1 milhão de pessoas passaram por uma de suas unidades.

Quanto maior a quantidade de presos, mais crescia o tamanho do contingente à disposição da facção e o volume de conexões entre as prisões e as ruas. Era uma estrutura inteligente e durável que não estava ligada a nomes ou pessoas, mas a funções. O isolamento ou morte de um “sintonia” ou “disciplina” não afetava o funcionamento do sistema.

As informações acima estão no livro “A Fé e o Fuzil”, de Bruno Paes Manso. Mostram como doutrina religiosa e racionalidade capitalista se combinaram para criar uma nova forma de organização do crime.

Leia também: Fé e Fuzil: a gênese da teologia do domínio

22 de fevereiro de 2024

A aposta de 1 bilhão de dólares na barbárie

Em 16/02/2024, Pedro Doria publicou o artigo “Como lidar com riqueza digital?”. Segundo o texto, recentemente Sam Altman, alto executivo da empresa de Inteligência Artificial OpenAI, deu uma entrevista em que declarou:

No meu grupo de chat com outros executivos de tecnologia temos um bolão para ver quem acerta o ano em que teremos a primeira empresa que vale US$ 1 bilhão com uma só pessoa.

Em seguida, o colunista explica que até 20 anos atrás, companhias avaliadas em US$ 1 bilhão tinham “parques fabris espalhados pelo planeta e centenas de milhares de funcionários”.

Já as atuais corporações tecnológicas que chegaram ao US$ 1 bilhão empregam somente algumas dezenas de milhares de trabalhadores. Agora, a utilização da inteligência artificial possibilitaria criar firmas com valor de mercado bilionário, empregando uma única pessoa, seu proprietário.

O articulista afirma que tais companhias poderiam ser pesadamente taxadas. Desse modo, financiariam um programa de renda mínima universal para socorrer os que tiverem seus empregos eliminados. Só que essa conta não fecha. O mesmo neoliberalismo que incentivou a criação dessas enormes corporações eliminadoras de empregos é especialista em transferir a carga fiscal do grande capital para os trabalhadores.

Claro que ainda há diversas atividades que exigem muita força de trabalho humana. Mas que a atual vanguarda tecnológica da economia capitalista trabalhe para aumentar ainda mais a concentração de patrimônio e riqueza mostra o tipo de sociedade que pretende construir.

E confirma que o propósito maior da inteligência artificial é descartar trabalho humano, contribuindo para condenar grandes parcelas da população ao subemprego, superexploração e desemprego.

A verdadeira aposta é na barbárie.

Leia também: Inteligência artificial e trabalho mal pago

21 de fevereiro de 2024

Fé e Fuzil: a gênese da teologia do domínio

"Frutificai e multiplicai-vos, e enchei a terra, e sujeitai-a; e dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves dos céus, e sobre todo o animal que se move sobre a terra", diz a famosa passagem do Gênesis.

Nos final dos anos 1980, setores evangélicos interpretaram o trecho acima como um mandato para dominar o mundo, inclusive nas esferas não religiosas. Surgia a teologia do domínio.

“Chegara a hora de os ímpios serem governados pelos abençoados”, pregavam os evangélicos adeptos dessa doutrina. E para chegar ao poder, eles precisam avançar sobre os “Sete Montes”: família, religião, educação, mídia, entretenimento, finanças e governo.

Em 1987, o deputado da Assembleia de Deus, Matheus Iensen, propôs a emenda parlamentar que aumentou de quatro para cinco anos o mandato de José Sarney. Três dias antes da votação da proposta, foram liberados 110 milhões de cruzados para a Confederação Evangélica do Brasil

As concessões de rádio e TV se tornaram importantes moedas de troca. Entre 1985 e 1989, o presidente concedeu 632 canais FM e 314 AM. Deputados da bancada evangélica receberam sete concessões de rádios e duas de TV.

Em 2005, com uma grande emissora de TV nas mãos, a Universal fundou o Partido Republicano Brasileiro. Entre seus filiados, estava o então vice-presidente da República de Lula, o empresário José de Alencar.

As informações acima estão no livro “A Fé e o Fuzil”, de Bruno Paes Manso. Mostram a gênese de um fenômeno que viria a ajudar a fortalecer algo que, sem ser divino ou diabólico, manifesta-se como uma das piores formas da maldade humana: o fascismo.

Leia também: Fé e Fuzil: lições sobre hegemonia pentecostal

20 de fevereiro de 2024

Sionismo e Apartheid irmanados

Desmond Tutu ganhou o Prêmio Nobel da Paz de 1984 por sua luta contra o Apartheid na África do Sul. Em agosto de 2009, ele afirmou: "O Ocidente se envergonha do Holocausto, com razão, mas quem paga por isso? Os palestinos estão pagando".

Em junho de 2015, Tutu repetiu a dose:

Nós, sul-africanos, sofremos décadas de apartheid e podemos reconhecer isso em outros lugares. Eu, pessoalmente, testemunhei a realidade de apartheid que Israel criou dentro de suas fronteiras e nos territórios palestinos ocupados.

Mas muito antes, em 1987, um israelense já havia chegado a essa conclusão. Militante do movimento por direitos civis, Uri Davis escreveu um livro cujo título é autoexplicativo: “Israel: An Apartheid State”.

E, em 2006, o ex-presidente estadunidense Jimmy Carter em seu livro “Palestine: Peace not Apartheid”, definiu a situação na Palestina como:

... um sistema de apartheid, com dois povos ocupando a mesma terra, mas completamente separados uns dos outros, com os israelenses totalmente dominantes e com extrema violência, privando os palestinos de seus direitos humanos básicos.

Há quem diga, com razão, que foi o sionismo que inspirou o nazismo. No caso da relação entre os apartheids sul-africano e israelense é difícil afirmar algo parecido. Mas o regime segregacionista da África do Sul foi implantado em 1948. No mesmo ano, aconteceu a "nakba", que em árabe quer dizer "catástrofe". A palavra refere-se à expulsão de 750 mil palestinos de seus territórios para dar lugar ao Estado de Israel.

Assim, o que é possível concluir, com certeza, sobre os dois regimes é que ambos se irmanam nas implementação de políticas estatais genocidas.

Leia também: O sionismo inspirando o nazismo

19 de fevereiro de 2024

O sionismo inspirando o nazismo

O “Jüdische Rundschau” foi um jornal publicado em Berlim de 1902 até 1938, como órgão da Federação Sionista da Alemanha. É sobre ele o trecho abaixo, retirado do livro “Labirintos do Fascismo”, de João Bernardo:

Nos primeiros dias de abril de 1933, mais de oito anos antes de as autoridades do Reich terem tornado obrigatório o uso da estrela amarela pela população judaica, um artigo assinado pelo chefe de redação do “Jüdische Rundschau” apelara para que os judeus tomassem eles próprios esta iniciativa, mostrando a vontade de se excluírem da sociedade germânica. Para que progredisse o estabelecimento na Palestina era indispensável que os judeus da diáspora se sentissem renegados pelos países onde haviam nascido.

Segundo Bernardo, em meados de 1939, vários meses depois do início da mais aterrorizante onda de antissemitismo na Europa, Ben-Gurion, sionista e futuro primeiro-ministro do Estado de Israel, declarou numa sessão a portas fechadas da Agência Judaica da Palestina: “Se eu soubesse que todas as crianças judias europeias poderiam ser salvas graças a sua transferência para a Grã-Bretanha e só metade poderia ser salva através da ida delas para a Palestina, eu escolheria a última solução”.

Não à toa, o professor da universidade de Dresden, Victor Klemperer, denunciou o parentesco e os pontos em comum entre o sionismo e o nazismo. Alemão, de família judia, Klemperer foi muito perseguido pelo antissemitismo germânico. Mas ao se referir ao fundador do sionismo, ele não teve dúvidas em afirmar: “A doutrina da raça de Theodor Herzl é a fonte dos nazistas. São eles que copiam o sionismo, não o contrário”.

Leia também: O racismo sionista instrumentaliza o racismo antissemita

9 de fevereiro de 2024

O carnaval como celebração da resistência

Em 1988, a Mangueira desfilou com o enredo “Cem anos de liberdade, realidade ou ilusão?”. Naquele ano completava-se o centenário da Abolição e a escola questionava se os negros estavam realmente livres da escravidão. O samba de Hélio Turco, Jurandir e Alvinho dizia:

...a Lei Áurea tão sonhada / Há tanto tempo assinada / Não foi o fim da escravidão / Hoje dentro da realidade / Onde está a liberdade / Onde está que ninguém viu

(...)

Pergunte ao Criador / Quem pintou esta aquarela / Livre do açoite da senzala / Preso na miséria da favela

No mesmo ano, a Unidos de Vila Isabel, trouxe o samba “Kizomba, Festa da Raça”. A letra de Rodolpho, Jonas e Luiz Carlos da Vila não deixou de lembrar a resistência negra, a rica herança africana, mas enfatizou seu caráter de festa e celebração:

Zumbi valeu / Hoje a Vila é Kizomba / É batuque, canto e dança / Jogo e Maracatu

(...)

Sarcedote ergue a taça / Convocando toda a massa / Nesse evento que congrassa / Gente de todas as raças / Numa mesma emoção

As duas escolas levantaram as arquibancadas e empolgaram a avenida. Na apuração, a votação foi apertada, com a Vila sendo campeã por apenas um ponto de diferença.

Mas o mais importante foi demonstrar em plena Sapucaí que não pode haver oposição entre festa e luta. Ou melhor, que não há resistência popular que permaneça sem que seja 
celebrada constantemente.


Bom carnaval e boas batalhas. As de confete e as outras!

Leia também: Salve a carnavalesca e milenar resistência popular!

8 de fevereiro de 2024

Fé e Fuzil: lições sobre hegemonia pentecostal

O movimento social está dizendo que o mundo está acabando, que o fascismo está tomando conta, uma série de desgraças. Mas o pessoal da favela já é doutor em desgraça, ele não precisa ouvir mais essas. Já os pastores estão lá, dizendo para o desgraçado que ele é tudo pra Jesus. Se eu estou numa situação de abandono, eu me agarro.

As palavras acima são do dirigente da Central Única das Favelas (Cufa), Preto Zezé. Estão no livro de Bruno Paes Manso “A fé e o fuzil”. Organizações como a Cufa, lembra ele, são moldadas pelos valores da era pentecostal, ligados ao empreendedorismo.

Os evangélicos pentecostais ofereciam algo que outras estruturas de poder seculares, criadas para produzir controle e ordem, não conseguiam, afirma o autor. Isso ocorria, em primeiro lugar, pela força de suas mensagens. As pessoas as obedeciam porque acreditavam nas explicações, seguiam suas regras e mudavam de comportamento porque queriam ser recompensadas por isso.

Como a competição com os mais ricos era inglória, o crime surgia como opção para os revoltados e cínicos. Já a crença em um poder divino podia favorecer o amor-próprio e trazer satisfação pessoal. Os pentecostais também conseguiram criar uma poderosa estrutura de comunicação, diz o autor.

Quanto maior o alcance da mensagem, menos exótica ela se tornava, e conforme deixava de ser estranha ao senso comum, mais normalizada e mais adeptos conquistava. Templos surgiam com a mesma agilidade que botecos e biroscas, tornando-se presença inseparável do ambiente das favelas, conclui Manso.

Nesses poucos parágrafos, muitas lições sobre disputa de hegemonia, ainda que orientada por valores conservadores e neoliberais.

Leia também: Fé e fuzil: o sagrado e a luta de classes

7 de fevereiro de 2024

O Pravda enganando a perseguição czarista

No centenário da morte de Lênin, importante lembrar uma atividade que ele considerava fundamental para a construção de um partido revolucionário: o jornalismo militante.

Mas sob a ditadura czarista, publicar um diário proletário exigia muita astúcia. O relato abaixo está no artigo “Lenin’s Pravda”, de Tony Cliff, e refere-se ao período de 1912 a 1914:

O regulamento de imprensa da época exigia que os três primeiros exemplares de cada edição fossem enviados à censura. Os editores do Pravda tentavam ganhar o máximo de tempo possível entre o envio material e a muito provável chegada da polícia à gráfica. A lei não especificava limite de tempo máximo para o deslocamento entre a gráfica e a polícia. Assim, a tarefa diária de entregar os exemplares foi confiada a um trabalhador de 70 anos, cuja idade avançada era pretexto para a lentidão com que chegava ao seu destino. Depois de fazer sua entrega, o portador permanecia no escritório, fingindo descansar, mas observando tudo. Se depois de ler o Pravda, o inspetor passasse a examinar outro jornal, o emissário encerrava sua missão. Mas quando o censor telefonava para o distrito policial da jurisdição em que ficava a sede do jornal, o entregador saía rapidamente e chamava um táxi para avisar vigias que se postavam nos arredores da gráfica. Uma vez dado o alarme, todos começavam a trabalhar para retirar o máximo possível de exemplares. Quando a polícia chegava, a maior parte da edição já havia desaparecido, sobrando apenas uma quantidade mínima para que a manobra não fosse facilmente descoberta.

Não há movimento revolucionário, sem muita criatividade subversiva.

Leia também: Pravda: como fazer jornalismo revolucionário

6 de fevereiro de 2024

Fé e fuzil: o sagrado e a luta de classes

Com a chegada dos pentecostais à arena política no início do século, o debate passou a girar em torno dos costumes que, teoricamente, numa república democrática, deveriam ficar restritas ao universo privado, diz Bruno Paes Manso, em seu livro “A fé e o fuzil”.

Os temas morais ganharam destaque. As leituras da Bíblia e não os debates técnicos indicavam o caminho sobre políticas públicas e os rumos do país. Nesse sentido, o que aconteceria se os pentecostais se tornassem a maioria do eleitorado? Uma guerra santa? Não necessariamente.

Pentecostalismo não é sinônimo de alienação ou de fanatismo, afirma Manso. Marina Silva foi senadora, deputada federal e ministra de Estado. Apesar de ser missionária da Assembleia de Deus, sempre evitou levar suas crenças para o debate público. Manteve um diálogo ecumênico com indígenas, quilombolas e ribeirinhos em defesa de causas comuns. Nas três eleições presidenciais que disputou, entre 2010 e 2022, nunca usou a religião para ganhar votos, ressalta o autor.

Anthony Garotinho foi o primeiro candidato à Presidência a ser apoiado pelos evangélicos. Apesar da boa votação, não chegou ao segundo turno. Os governos Lula e Dilma receberam o apoio dos evangélicos nos partidos do centrão. A eleição de Marcelo Crivella, bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, para a prefeitura do Rio foi um primeiro sinal de alerta.

Depois, Bolsonaro recebeu sólido apoio das cúpulas evangélicas. Pouco importava que fosse um dos políticos mais infames da história brasileira. O “sagrado” sempre esteve em disputa nas lutas pelo poder. Ultimamente, inclinando-se fortemente à direita.

A luta de classes escreve reto por linhas tortas ou vice-versa.

Leia também: Fé e fuzil: o Jesus pacifista cancelado

5 de fevereiro de 2024

“O Corte”: eliminando a concorrência, literalmente

O filme “O Corte”, de 2005, poderia servir como uma espécie de metáfora dos tempos neoliberais.

Trata-se de uma obra do cineasta grego Costa-Gavras. Tem como protagonista Bruno Davert, que se vê demitido após 15 anos trabalhando como engenheiro de produção. Provavelmente, foi descartado graças às técnicas que ele mesmo ajudou a implantar visando eliminar custos com força de trabalho para seus patrões.

No início das férias forçadas, Davert acredita que logo encontrará seu lugar no mercado de trabalho. Mas após dois anos de desemprego, começa a entrar em depressão e a ter problemas com a família. Resolve reagir. Ao disputar pela enésima vez uma vaga em sua especialidade, elabora um plano mirabolante. Abre uma empresa de fachada para recrutamento de profissionais para o posto que ele pretende ocupar. Desse modo, atrai seus concorrentes e os submete a uma avaliação técnica. Em seguida, começa a matar aqueles que apresentavam qualificação suficiente para desbancá-lo na competição.

Apesar do caráter macabro dos métodos do protagonista, a produção é uma comédia irônica. Afinal, se o neoliberalismo ensina que a concorrência selvagem é um dado natural da sociedade, por que os indivíduos não deveriam lançar mão de todos os meios possíveis para alcançar seus objetivos?

Não cabe revelar o desfecho do filme, não porque isso teria um efeito estraga-prazer. Mas porque não há spoiler possível quando o final é óbvio. Desde bem antes de 2005, passando pela crise iniciada em 2008, já sabemos muito bem como tudo isso vai acabar se continuar prevalecendo a racionalidade capitalista em sua fase neoliberal.

Leia também: Contra o neoliberalismo, outra razão do mundo

2 de fevereiro de 2024

Pravda: como fazer jornalismo revolucionário

Continuamos a destacar algumas informações retiradas do artigo “Lenin’s Pravda”, de Tony Cliff, sobre o Pravda, jornal do partido bolchevique.

Para escapar às perseguições da ditadura czarista, o jornal nomeava editores nominais que iam para a prisão no lugar dos editores efetivos. Eram aproximadamente quarenta militantes, muitos deles quase analfabetos. Nos primeiros anos de existência do Pravda, eles passaram muitos meses na prisão.

Metade dos exemplares era vendida nas ruas e metade nas fábricas. Nas grandes empresas de São Petersburgo, cada departamento tinha um responsável que distribuía o jornal, arrecadava recursos e mantinha contato com os editores. A distribuição do Pravda fora da cidade acontecia por meio de seis mil assinaturas postais, mas distribuí-las era complicado. Os exemplares eram enviados a cinco ou seis agências de correio diferentes, que eram trocadas diariamente para despistar a polícia. Além disso, pacotes do Pravda eram entregues às províncias por diversas rotas complexas. Membros do partido ou simpatizantes que trabalhavam nas ferrovias jogavam os fardos ao longo da rota para serem recolhidos por outros integrantes.

Eram cerca de 40 mil durante a semana e 60 mil aos sábados. Números impressionantes, especialmente porque o partido era ilegal. No entanto, Lênin escreveu um artigo em abril de 1914, dizendo:

Precisamos distribuir três, quatro, cinco vezes mais exemplares. Publicar um suplemento sindical e ter representantes de todos os sindicatos e grupos no conselho editorial. Lançar suplementos regionais (Moscou, Urais, Caucasianos, Bálticos, Ucranianos)...

Mas uma de suas maiores preocupações era garantir a participação regular dos trabalhadores no trabalho editorial.

Sem teoria revolucionária não há movimento revolucionário, dizia Lênin. Sem jornalismo revolucionário também não.

Leia também: Jornalismo revolucionário: os oito nomes do Pravda

1 de fevereiro de 2024

Fé e fuzil: o Jesus pacifista cancelado

Em meio ao caos violento da vida urbana nacional, uma leitura belicosa da Bíblia justifica o tratamento truculento das contradições e problemas sociais. É o que mostra Bruno Paes Manso, em seu livro “A fé e o fuzil”.

Do Velho Testamento emergia a autoridade superior, infinita, onipresente, onisciente, que criou o universo e estabeleceu uma série de regras a serem obedecidas pelos descendentes de Abraão e do povo de Israel, afirma o autor.

A aliança divina entre o povo de Deus e seu criador garantia o triunfo dos que obedeciam e o castigo aos que desacreditavam. Deuteronômio 32,41-42 é particularmente explícito: “Embriagarei minhas flechas com sangue e minha espada devorará a carne, sangue dos mortos e cativos, das cabeças cabeludas do inimigo.”

O episódio bíblico da invasão de Jericó por Josué costuma ser muito citada. É nele que Deus autoriza o assassinato de velhos e crianças para poder governar por intermédio de reis e profetas comprometidos com suas leis.

O apóstolo Paulo instrui os crentes a permanecer em estado de alerta contra o inimigo que nos afasta de Jesus. O inimigo interno, dentro de nós, mas também o externo.

As passagens bíblicas também podem servir para justificar as execuções sumárias. Em Êxodo 22,1: “Se um ladrão for surpreendido arrombando um muro, e sendo ferido morrer, quem o feriu não será culpado do sangue”.

Não à toa, as bancadas da Bala e da Bíblia são aliadas permanentes no Congresso Nacional. Integraram os mesmos partidos do Centrão que apoiaram Bolsonaro.

O Jesus fraterno e pacifista da Teologia da Libertação foi silenciado e cancelado, conclui Manso.

Leia também: Fé e Fuzil: a Teologia da Libertação contra a ditadura

31 de janeiro de 2024

O racismo sionista instrumentaliza o racismo antissemita

No momento em que o Estado de Israel aprofunda sua política de genocídio contra os palestinos, atingindo principalmente a população da Faixa de Gaza, é importante recuperar um pouco da história do sionismo.

É o que faz João Bernardo, em seu livro “Labirintos do Fascismo”, ao lembrar que na obra considerada fundadora do movimento sionista, “O Estado Judeu”, publicada em 1896, Theodor Herzl dizia que bastava uma presença substancial de judeus para necessariamente provocar reações antissemitas. Desse modo, a única alternativa seria a separação e o estabelecimento dos perseguidos num território autônomo. Tal território seria a Palestina.

Já Chaim Weizmann, que se tornaria o primeiro presidente de Israel, declarou em 1912, em uma palestra feita em Berlim, que “para evitar perturbações internas, cada país só pode absorver um número limitado de judeus. E a Alemanha já tem judeus demais”.

Segundo Bernardo, era essa a doutrina básica do sionismo, cujos dirigentes encontravam no racismo dos outros povos a condição indispensável para se tornarem, eles também, governantes de um povo eleito. Por isso desde muito cedo o movimento sionista procurou estabelecer acordos com governos hostis aos judeus e convencê-los de que ambos convergiam no mesmo objetivo imediato. Se os antissemitas queriam desembaraçar-se dos compatriotas judaicos e os sionistas pretendiam aumentar o número de judeus na Palestina, por que não unirem os esforços?

Um século depois, o sionismo continua usando o antissemitismo para falsear a realidade. Confunde as denúncias contra o governo assassino de Israel com ataques aos judeus. Quer sobrepor o legítimo direito à autodeterminação dos israelenses à própria existência de outros povos.

Leia também: A estupidez do sionismo de esquerda

30 de janeiro de 2024

Jornalismo revolucionário: os oito nomes do Pravda

No centenário da morte de Lênin, voltamos ao artigo “Lenin’s Pravda”, de Tony Cliff, sobre o jornalismo revolucionário defendido pelo líder russo. Nele ficamos sabendo que o Pravda, principal jornal do partido bolchevique, mudou de nome oito vezes. As constantes alterações aconteciam devido à forte perseguição que o periódico sofria da ditadura czarista.

Frequentemente, as instalações do jornal eram invadidas, edições confiscadas, multas impostas, editores presos, jornaleiros assediados. Mesmo assim, foram publicados 645 números de 1912 a 1914, quando deu lugar a outros jornais até retornar após a revolução de 1917. Isto foi possível em grande parte devido à engenhosidade da equipe editorial para contornar as perseguições, ao apoio financeiro dos leitores, a lacunas na lei de imprensa e à ineficiência da polícia.

Uma linguagem codificada procurava evitar o confisco imediato das edições. No lugar do nome do partido, “subterrâneo”, “buraco” ou “velho”. O programa bolchevique, que defendia a república democrática, confisco das propriedades fundiárias e jornada máxima de 8 horas era chamado de “exigências de 1905” ou os “três pilares”. Um bolchevique era um “democrata consistente” ou um “marxista consistente”. Os trabalhadores mais militantes conseguiam decifrar essa linguagem sem maiores problemas.

Essas e outras dificuldades para fazer circular um periódico revolucionário em plena ditadura autocrática na Rússia do início do século passado deveriam servir de exemplo. As dificuldades e obstáculos atuais são bem diferentes e igualmente enormes, mas Lênin defendia que o trabalho revolucionário era resultado de intervenções concretas adaptadas às situações concretas, sejam elas quais fossem. Hoje, como na época de Lênin, não adianta tentar combinar com os russos.

Voltaremos ao tema.

Leia também: O jornalismo revolucionário segundo Lênin

29 de janeiro de 2024

Fé e Fuzil: a Teologia da Libertação contra a ditadura

A chamada Teologia da Libertação surgiu para “evitar a revolução”, diz Bruno Paes Manso em seu livro “A fé e o fuzil”. É verdade. Tudo começou com o Concílio Vaticano II, em meados dos anos 1960. Em plena Guerra Fria, a cúpula católica queria fazer sua parte na resistência ao comunismo, propondo uma leitura da Bíblia centrada na opção pelos pobres.

Mas dito isso, não se pode esquecer o papel fundamental de importantes setores católicos na resistência à ditadura militar no Brasil. Como diz Manso:

A articulação política da Igreja, os holofotes jogados nos porões, a análise crítica sobre a economia e a sociedade, a presença nas periferias e nas favelas e a defesa dos pobres das cidades formavam um poderoso projeto político de oposição, que dialogava fortemente com os anseios da época (...). Apostava-se na queda dos militares, na restituição da democracia para mediar o imenso potencial do sistema de mercado e adequá-lo à necessidade das pessoas.

A esquerda tornara-se “portadora dos sonhos e utopias urbanos, potencializados pelo carisma de um Jesus Cristo rebelde e progressista”. Estava sendo posto em prática “um projeto consistente, que gerava engajamento, contribuía para unir as forças de oposição” e contava com a participação de uma elite intelectual pronta para reassumir as rédeas do país.

Contra os militares, forjou-se “um projeto alternativo vinculado a uma maior participação popular”, conclui o autor.

Foi desse campo que saiu a poderosa liderança de Lula. Muitos de nós participamos de sua ascensão vitoriosa. Hoje, o projeto perdeu seu potencial utópico, golpeado pela distopia do neopentecostalismo conservador. Somos testemunhas de sua heroica, mas precária sobrevivência.

Leia também: Fé e fuzil: surgem os esquadrões da morte

26 de janeiro de 2024

Fé e fuzil: surgem os esquadrões da morte

José Miranda Rosa, o Mineirinho, era morador do Morro da Mangueira e acusado de diversos assaltos e homicídios. Em maio de 1962, foi executado por policiais com treze tiros. Em junho daquele mesmo ano, Clarice Lispector publicou na revista Senhor a crônica “Um grama de radium – Mineirinho”. Um trecho dizia:

Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina – porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro.

Em uma entrevista publicada em 1977, ela explicaria: “Qualquer que tenha sido o crime dele, uma bala bastava. O resto era vontade de matar. Era prepotência.”

Em 1958, o general Amaury Kruel, chefe do Departamento Federal de Segurança Pública, já encarnara essa prepotência violenta criando o grupo Diligências Especiais para atuar em casos de grande repercussão. Seu líder era Milton Le Cocq, o policial que viria a conduzir a caçada que executou Mineirinho. Em 1965, policiais criaram uma irmandade batizada de Scuderie Le Cocq. Os esquadrões da morte entravam em cena para ficar. Apenas assumiriam novas formas, como as atuais milícias.

As informações acima estão no livro “A Fé e o Fuzil” de Bruno Paes Manso. Continuaremos a comentar essa obra na próxima pílula.

Leia também: Fé e fuzil: a Cristolândia tocando “pragod” na Cracolândia