Doses maiores

21 de dezembro de 2023

Sobrevivencialismo e bunkerização

O mais recente sucesso da Netflix é “O Mundo Depois de Nós”. Um dos personagens do filme é um “sobrevivencialista”. Ou seja, alguém preparado para sobreviver a catástrofes extremas, o que inclui transformar sua casa em um bunker. Ele é de classe média remediada, mas seus medos são compartilhados com gente com muito mais dinheiro.

É o caso dos multibilionários que há alguns anos se preparam para uma hecatombe decorrente de mudanças climáticas ou guerras generalizadas. É o caso de Mark Zuckerberg, que está construindo um abrigo subterrâneo com fontes de energia próprias, no Havaí.

Mas esse fenômeno não é tão restrito. Na verdade, a “bunkerização” se espalha pela sociedade. O que muda é sua forma e eficácia. Pode ser um enorme porão com alimentos, rádio por satélite e forças armadas particulares. Mas também um condomínio cercado tanto de muros e vigilantes, como de muita pobreza e injustiça. O que torna sua segurança bastante vulnerável, inclusive frente à ação de milícias.

O empreendedorismo popular é outro desses castelos de areia, cuja proteção contra tormentas econômicas é quase nula. Planos de saúde e de previdência complementar iludem com garantias que podem desaparecer graças a qualquer instabilidade empregatícia ou remuneratória.

Tudo isso é produto de décadas de neoliberalismo. Aqui e no mundo, foram sendo abandonadas diversas formas de resistência e proteção coletivas, muito mais eficazes para a defesa não apenas da subsistência, mas da dignidade. Não há sobrevivencialismo que dê jeito. Não é o mundo depois de nós, mas um mundo infernal que uma minoria minúscula e cada vez mais covarde e irresponsável está querendo nos deixar.

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20 de dezembro de 2023

Botando pra quebrar no trabalho!

O ludismo, como resistência dos trabalhadores nos locais de produção, caracteriza-se pela autonomia, capacidade de escolher seus próprios métodos e melhoria das condições de trabalho. Não enxerga a tecnologia como neutra, mas como um espaço de luta.

Não se trata de uma postura moral individual, mas de uma série de práticas que podem proliferar e crescer através da ação coletiva. O ludismo opõe-se às relações sociais capitalistas, que só podem ser eliminadas através da luta, e não por fatores como reformas do Estado, abundância de bens supérfluos ou uma economia melhor planejada.

Atualmente a população é praticamente unânime: quer desacelerar. Vivemos em tempos pessimistas quanto aos avanços tecnológicos. Há uma espécie de sensibilidade difusa que é antagônica à forma como o capitalismo funciona. Por isso, o ludismo pode se manifestar de formas diferentes, de acordo com o contexto.  

Como disse Marx em uma carta ao socialista holandês Ferdinand Domela Nieuwenhuis: “As antecipações doutrinárias e necessariamente fantasiosas sobre o programa de ação para uma futura revolução só conseguem nos desviar das lutas do presente”.  Em vez disso, o primeiro passo para organizar o descontentamento generalizado em uma política coletiva requer reconhecer e recuperar nossa autoatividade radical. Inclusive, e talvez especialmente, quando se trata de quebrar coisas no trabalho.

Os trechos acima são do livro “Breaking Things at Work”, de Gavin Mueler. Servem como encerramento da série de pílulas sobre esse interessante estudo que tem por objetivo mostrar o potencial revolucionário do ludismo. Em uma futura e necessária tradução para português, fica a sugestão de que seu título seja “Botar pra quebrar no trabalho!”

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19 de dezembro de 2023

Inteligência artificial e trabalho mal pago

Em seu livro “Breaking Things at Work”, Gavin Mueler cita o crítico de tecnologia Jathan Sadowski para falar sobre inteligência artificial (IA). Segundo ele, muito do que é alardeado como um sistema de máquinas autônomas é na verdade “IA Potemkin”, referindo-se às brutais condições de trabalho dos marinheiros do famoso encouraçado russo.

Afinal, diz Mueller, “serviços que pretendem ser alimentados por software sofisticado, na verdade dependem de pessoas agindo como robôs”. Desde programas de transcrição de áudio que disfarçam os trabalhadores humanos como “software de reconhecimento de fala” até carros “autônomos” controlados remotamente, as façanhas da “inteligência artificial avançada” não apenas mascaram relações trabalhistas como reforçam a percepção de que um dia não seremos mais necessários.

A Samasource, especializada em treinamento de IA, utiliza o trabalho de moradores de favelas do mundo todo como solução barata para as tarefas chatas, repetitivas e intermináveis de alimentar sistemas de aprendizado de máquina. O trabalho mal pago, costuma ser justificado pelo humanitarismo típico do Vale do Silício. Remunerações maiores poderiam inflacionar os custos de habitação e alimentação nas comunidades envolvidas.

Embora a inteligência artificial seja frequentemente comparada à magia, falha regularmente em tarefas simples para pessoas, como reconhecer sinais de trânsito, fundamental para automóveis autônomos. Mas mesmo casos bem-sucedidos de IA exigem enormes quantidades de trabalho humano. Incluindo o dos usuários.

Sempre que você resolve um daqueles quebra-cabeças de identificação por imagem para provar que não é um robô, está ajudando a treinar IA. Seus idealizadores dizem que apenas aproveitam nossos momentos improdutivos. Improdutivos para quem?

Eles acham que somos burros. Temos que parar de dar-lhes razão.

Leia também: A economia política da internete

18 de dezembro de 2023

A economia política da internete

Na década de 1990, a web era um território de amadores e diletantes. As empresas geravam receitas através do fornecimento de acesso à internete. Mas, uma vez nela, o comportamento dos usuários corria livremente em espaços que eram, na sua maioria, não comerciais.

Segundo a terminologia de Marx, este seria um período de subsunção formal das atividades desempenhadas nos ambientes em rede. Nele, reinavam os imperativos capitalistas gerais da troca de mercadorias, mas o comportamento individual dos usuários não estava sob controle. Seria o equivalente dos galpões, do início do capitalismo, em que um patrão reunia os trabalhadores, mas estes utilizavam as ferramentas e máquinas seguindo seu próprio ritmo.

Isso mudaria com o parcelamento do trabalho em várias pequenas fases, transferindo o controle do ritmo de trabalho ao empregador. A esse processo Marx chamou de subsunção real do trabalho ao capital. Fenômeno que se aprofundaria com a introdução da linha de montagem.

Essa mudança também corresponde à transição da extração da mais-valia absoluta, baseada na extensão das horas de trabalho, para a extração da mais-valia relativa, em que a intensidade do trabalho aumenta mais que sua duração.

No mundo cibernético, isso se traduziu na transição do tempo gasto na utilização dos dados para o tempo despendido na produção deles. Já não se trata apenas de trocas velozes de informações e publicidade, mas de produção intensiva de likes e compartilhamentos. Estes, por sua vez, geram informações estratégicas valiosas a serem negociadas com gigantescos atacadistas de mercadorias e serviços.

Essas interessantes pistas sobre a economia política da internete estão no livro “Breaking Things at Work”, de Gavin Mueler.

Leia também: Os latifúndios digitais e a dark web

15 de dezembro de 2023

O planeta rumo à eliminação de algumas de suas pragas

A 28ª edição da Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP28) acabou há poucos dias. Aconteceu nos Emirados Árabes. Sob a presidência de um sultão, o país tem a sexta maior reserva de petróleo do mundo.

Um detalhe importante é que a maior representação do agronegócio veio do Brasil. Eles eram 10% dos membros de grandes indústrias mundiais do setor presentes. Todos juntos e misturados na grande delegação liderada pelo presidente Lula.

A próxima edição deve ocorrer no Azerbaijão, que, apesar de não ser governado por um sultão, tem um terço de sua economia ligado aos combustíveis fósseis.

Já a COP30, em 2025, será em Belém, na Amazônia. Seria bom lembrar que, em agosto passado, a capital paraense foi sede da Cúpula da Amazônia, que reuniu oito países da região. Do encontro resultou a chamada “Declaração de Belém”. Mas o documento não fixou metas ou prazos para a conservação florestal. A necessidade de zerar o desmatamento foi mencionada apenas como "um ideal a ser alcançado".

O texto também evitou estabelecer um compromisso de pôr fim à exploração dos combustíveis fósseis na Amazônia. A única autoridade a protestar contra isso foi o presidente da Colômbia, Gustavo Petro, que não se deixou influenciar pelo próprio sobrenome.

O fato é que apesar da heroica resistência dos movimentos populares, essas conferências vão cada vez mais se tornando um ponto de encontro de poderosos produtores de sujeira ambiental de todo tipo.

Enquanto isso, o planeta arde como uma febre que antecede o agravamento da doença que pode expelir algumas pragas de seu organismo. Adivinhem quem está entre essas pragas?

Leia também: O capitalismo verde e os latifundiários dos ventos

14 de dezembro de 2023

Os latifúndios digitais e a dark web

Internete e web não são a mesma coisa. A internete nasceu descentralizada e livre. A web a centralizou e submeteu aos interesses das grandes empresas de comunicações, publicidade e entretenimento.

Em seu livro “Breaking Things at Work”, Gavin Mueler cita o ativista Tim O’Reilly. Ele foi um dos defensores da criação de programas de código aberto para lutar contra o controle monopolista da internete. Mas o capital inverteu o jogo. Criou o que o próprio O’Reilly chamou de Web 2.0.

Um exemplo claro dessa inovação é a Google. Em vez de oferecer software para os usuários instalarem em seus computadores, a Google fornece serviços remotos utilizando softwares que rodam em seus próprios servidores. São sistemas operacionais de código aberto, mas sob estrito controle da empresa, isolados naquilo que ficou conhecido como “nuvem”.

Desta forma, diz Mueller, a Google pode atuar como intermediário entre nós e nossa experiência online, ao mesmo tempo que coleta nossos dados.

O que aconteceu na prática é que Google, Facebook e similares tornaram-se verdadeiros latifúndios digitais que dizimaram milhões de pequenos serviços da rede mundial e dividiram entre si quase a totalidade do mercado.

Uma resposta a essa situação, afirma o autor, seria a criação da chamada dark web. Um ambiente que foge ao rastreio e à captura de dados da rede dominada pelos monopólios. O problema é que esse espaço clandestino também serve a práticas criminosas e ilícitas. E mesmo quando se trata de atividades legais, prevalece a lógica da troca capitalista de mercadorias.

Criar uma verdadeira resposta ludita anticapitalista a essa situação continua a ser um desafio.

Leia também: O ludismo do software livre

13 de dezembro de 2023

O ludismo do software livre

Gavin Mueller afirma que em vez de destruir máquinas, os hackers as adotaram. Portanto, diz ele em seu livro “Breaking Things at Work”, deveriam ser um dos movimentos menos ludistas do planeta.

Mas, em 1976, sob pressão da indústria de software, a suprema corte estadunidense decidiu que os códigos-fonte de programação estavam sujeitos aos direitos autorais. Em inglês, “copyright”. De repente, copiar era crime.

Compartilhar e copiar códigos tornou-se uma prática essencial na nascente cultura hacker e promoveu uma pedagogia da autonomia e da criatividade. Um dos primeiros e mais influentes exemplos desse tipo de organização foi o movimento do software livre, liderado pelo programador independente Richard Stallman.

Em 1988, Stallman formulou um conjunto de licenças alternativas de software projetado para proteger o compartilhamento aberto do código-fonte. Fazendo um trocadilho, chamou essas licenças de “copyleft”, cuja tradução pode ser tanto “permitida a cópia”, como “cópia de esquerda”.

O software livre é um exemplo de tecnologia ludita, diz Mueller. Uma inovação que procura preservar a autonomia dos trabalhadores contra a imposição de controle sobre o processo de trabalho pelos capitalistas.

No entanto, ressalva o autor, a cultura hacker é frequentemente impregnada de elitismo, efeito colateral infeliz, frequentemente encontrado em culturas artesanais que acabam se tornando meritocráticas. Poucos usuários têm conhecimento técnico para usar suas ferramentas complexas. Menos ainda têm os meios materiais para resistir às reviravoltas cibernéticas promovidas pela indústria da informática.

Uma delas foi a estrutura web. Criada para facilitar o acesso à rede mundial, logo tornou-se instrumento de criação de latifúndios digitais como Microsoft, Facebook, Google etc. Este será o tema da próxima pílula.

Leia também: Na era cibernética, quebrar máquinas “faz muuuito bem!”

12 de dezembro de 2023

Na era cibernética, quebrar máquinas “faz muuuito bem!”

Em seu livro “Breaking Things at Work”, Gavin Mueller afirma que a informatização, mais que uma ferramenta de gestão, transformou os escritórios em um ambiente de vigilância total, levando os trabalhadores “de colarinho branco” a internalizar os ditames do poder.

No entanto, diz ele, nada disso impediu que a resistência dos trabalhadores administrativos assumisse um caráter subversivo centrado, principalmente, na sabotagem às ferramentas eletrônicas.

Com esse espírito surgiu uma revista alternativa chamada “Processed World”, publicada nos Estados Unidos em 1981. Seu foco eram os absurdos dos trabalhos gerenciais que começavam a ser automatizados.

Ficou famoso um artigo publicado na revista intitulado “Sabotagem: o videogame definitivo”. Assinado por uma funcionária cujo pseudônimo era “Gidget Digit”, o texto exaltava as virtudes da quebra das máquinas.

“O desejo de sabotar o ambiente de trabalho”, afirma ela, “é provavelmente tão antigo quanto o próprio trabalho assalariado. Talvez mais antigo”. Digit liga este desejo antigo ao novo aparato tecnológico dos escritórios e seus dispositivos, como terminais de computador e máquinas de fax: “Projetados para controle e vigilância, eles muitas vezes aparecem como a fonte imediata de nossa frustração. Danificá-los é uma forma rápida de desabafar a raiva ou de ganhar alguns minutos extras de valioso descanso”.

Um leitor concordou, escrevendo o seguinte comentário para a revista: “Deixarei para os teóricos discutirem sobre as nuances dialéticas da sabotagem. Basicamente, há uma razão esmagadora para fazer isso: faz você se sentir muuuito bem!”.

Esse “prazer” muito específico, nascido da disciplina sorrateira imposta pela cibernética aos escritórios, pode ter levado muitos trabalhadores administrativos a se tornarem hackers. São os ludistas da era digital.

Leia também: As primeiras formas de ludismo digital

11 de dezembro de 2023

O capitalismo verde e os latifundiários dos ventos

Em 02/12/2023, o presidente da COP28 anunciou várias promessas para investimentos em energia renovável. A principal delas pretende triplicar a capacidade instalada global desse tipo de recurso até 2030. Mas, como no mundo dominado pelo capitalismo sempre tem um “mas”, a eliminação de novos investimentos em combustíveis fósseis ficou fora do texto.

O filósofo e escritor Airton Krenak costuma dizer que não adianta nada adotar fontes renováveis de energia se elas não substituírem recursos energéticos mais sujos, como petróleo, carvão e gás.

Fontes sustentáveis de energia não anulam os estragos sociais e ambientais. Apenas diminuem seu impacto. Enquanto não tomarem o lugar das fontes mais poluentes, acrescentarão novos problemas aos antigos. Além disso, é preciso considerar o caráter monopolista que assume a quase totalidade dos empreendimentos capitalistas na atualidade.

Vejamos o exemplo da energia eólica. Segundo um artigo publicado pelo portal ClimaInfo, empresas desse setor controlam pelo menos 262 mil hectares no Rio Grande do Norte, atualmente. Isso representa 5% da área do estado ou quase duas vezes o tamanho da capital paulistana. Metade disso está sob controle de 27 empresas sediadas aqui e a outra metade, com 19 companhias estrangeiras. “São os latifundiários dos ventos”, diz o texto.

Enquanto isso, os pequenos proprietários que arrendaram suas terras para as instalações eólicas viram seus rendimentos despencarem. Até porque estão impedidos por cláusulas contratuais de cultivar ou criar animais para não interferir na captação do vento.

Este é só um exemplo a mostrar como o verde das energias alternativas capitalistas restringe-se à cor do dinheiro que geram, tornando sustentáveis apenas os enormes lucros de uma minoria exploradora.

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8 de dezembro de 2023

O lulismo e a dieta do caranguejo

O governo Lula segue envolvido com acordos no Congresso, nomeações no STF, negociações com empresários, militares, latifundiários, governadores. Em meio a todos eles, muitos golpistas. Já as negociações, incluem negociatas de todo tipo e tamanho.

Quando surgiu como grande liderança sindical, nos anos 1970, Lula havia sido eleito presidente do sindicato do ABC com a bênção de pelegos da ditadura. Eles pretendiam transformar a jovem e talentosa liderança em seu fantoche. Não deu certo. Lula acabou comandando uma greve que abalou o governo dos militares, mas também lhe valeu uma temporada na cadeia.

Diferente de vários setores de esquerda, Lula representa as forças que optaram por tensionar a ampliação dos limites da democracia brasileira sem rompê-los. Isso inclui disputar eleições pra valer e não como tática para um possível levante popular ou revolução.

À frente do PT, perdeu todas as eleições presidenciais pau-a-pau com os favoritos do grande capital até ser eleito. Mas, tal como na convivência com os pelegos, assimilou vários setores da burguesia em suas coalizões governamentais.

Lula não desistiu da traiçoeira democracia nacional nem mesmo quando ela o colocou na prisão. Nunca o perdoaram pela insistência em tentar alargar a acanhada democracia brasileira. Hoje, defende um grande acordo nacional que inclui vários de seus carcereiros.

O projeto lulista tenta abrir caminhos por dentro dos intestinos da democracia brasileira. O perigo é acabar como aqueles caranguejos que se alimentam das entranhas de animais mortos. Pode até saciar, mas um cadáver é sempre um cadáver. E quando se trata de uma democracia tão moribunda como mortal, é grande o risco de agonizar dentro com ela.

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7 de dezembro de 2023

A estupidez do sionismo de esquerda

Tony Cliff era o pseudônimo de Ygal Gluckestein (1917-2000). Nascido na Palestina, tornou-se conhecido como um militante revolucionário na Inglaterra. Apesar de judeu, era antissionista, não aceitando a concepção que atribui ao povo judeu a “missão sagrada” de tomar a Palestina de seus povos originários.

O relato abaixo é de sua autobiografia, “A World to Win”. Mostra bem o que significa ser sionista de esquerda.

Em fevereiro de 1934, em Viena, os trabalhadores fizeram um grande levante contra o fascismo. Embora os trabalhadores tenham sido derrotados, Viena tornou-se um marco que inspirou todo o movimento internacional da classe trabalhadora. No ano anterior, em 1933, o movimento dos trabalhadores alemães – o mais forte e mais bem organizado do mundo – tinha capitulado perante os nazistas sem praticamente nenhuma luta. Em todo o mundo, lembro-me, socialistas, comunistas e antifascistas repetiam o slogan “Mais Viena do que Berlim”. Naqueles dias, participei de uma reunião organizada pelo partido socialdemocrata sionista, em Haifa. O secretário do conselho sindical da cidade começou seu discurso, dizendo: “Apenas uma vez na história houve tal heroísmo: a Comuna de Paris”. Concluiu afirmando: “Precisamos da unidade dos trabalhadores”. Quando ele terminou, interrompi e acrescentei uma palavra: “internacional”. Ou seja, precisamos da “unidade internacional dos trabalhadores”. Se eu tivesse gritado “Viva a classe trabalhadora britânica” ou “Viva a classe trabalhadora chinesa”, ninguém teria se importado. Mas na Palestina, minhas palavras significaram unidade com os árabes. Três comissários se aproximaram de mim. Dois seguraram meus braços, enquanto o terceiro torceu um de meus dedos até quebrá-lo. Comuna de Paris tudo bem, mas trabalhadores árabes, de jeito nenhum.

Leia também: Malcolm X pergunta pelo messias do sionismo

6 de dezembro de 2023

As primeiras formas de ludismo digital

Em outubro de 1969, reunido com representantes da indústria armamentista, o General William Westmoreland revelou a existência de um projeto secreto do Pentágono: no campo de batalha do futuro, as forças inimigas seriam localizadas, rastreadas e alvejadas quase instantaneamente através da utilização de links de dados, avaliação de inteligência assistida por computador e controle automatizado de tiros.

Foi mais um elemento a contribuir para acirrar os ânimos na mobilização contra a Guerra do Vietnã nos Estados Unidos. Um movimento presente no próprio exército estadunidense, com os soldados organizando protestos, recusando-se a lutar e sabotando equipamentos, claro.

Outro estopim foi a repressão da Guarda Nacional contra manifestantes pacifistas no estado de Kent, em 4 de maio de 1970. Quatro mortes e dezenas de feridos geraram grandes revoltas em várias universidades estadunidenses. E os computadores tornaram-se um alvo frequente.

Em 7 de maio daquele ano, estudantes ocuparam por algumas horas o centro de informática da Universidade de Syracuse. Logo depois, após uma semana de protestos, ativistas tomaram conta de um laboratório de informática na Universidade de Wisconsin, destruindo o computador central.

Na Universidade de Nova Iorque, cerca de 150 manifestantes invadiram e ocuparam o laboratório de informática. Eles abandonaram a ocupação dois dias depois, deixando napalm no computador central conectado a um fusível de queima lenta. Dois professores conseguiram desativar o fusível antes que os explosivos detonassem. Mas na Universidade de Stanford, o centro de computação foi incendiado.

Os relatos acima estão no livro “Breaking Things at Work”, de Gavin Mueller. Mostram as formas iniciais do ludismo digital como resistência à exploração e dominação capitalista.

Leia também: Automação e superexploração do trabalho feminino

5 de dezembro de 2023

Automação e superexploração do trabalho feminino

Um dos temas do livro “Breaking Things at Work”, de Gavin Mueller, é a automação do trabalho, que mostra de modo inegável como a tecnologia é utilizada pelo capital para aumentar a exploração dos trabalhadores.

Em muitos casos, diz Mueller, a automação eliminou e precarizou empregos tradicionalmente ocupados por mulheres. É o caso das telefonistas. Integrantes de um setor quase inteiramente feminino, elas lutaram durante décadas contra condições de trabalho cada vez mais mecanizadas, que concentravam cada vez mais o trabalho nas mesas telefônicas para cada vez menos operadoras, ao mesmo tempo em que eliminavam o tempo de inatividade.

Mas esse tipo de inovação, diz o autor, também teve impacto no trabalho não remunerado das donas de casa. As promessas eram de que a tecnologia aliviaria as tarefas delas e aumentaria seu tempo de lazer. Mas a racionalização do trabalho rapidamente se transformou na racionalização da esfera doméstica.

Uma vez que o trabalho doméstico é uma relação de poder patriarcal, a tecnologia capitalista jamais libertou as mulheres de seus pesados, cansativos e repetitivos afazeres. Ao contrário, seu tempo acabou por ser preenchido com mais trabalho doméstico.

Inovações como o fogão a gás e o moedor de farinha libertaram os homens do corte de lenha e da moagem de grãos, permitindo-lhes mais tempo para trabalhar fora de casa. Mas deixaram para trás mulheres mais sobrecarregadas pelo trabalho doméstico.

A introdução da máquina de lavar substituiu a dependência de lavadeiras profissionais. Ocupações remuneradas trocadas pelo trabalho gratuito das donas de casa.

Em todos esses casos, a tecnologia capitalista intensificou ainda mais a exploração do já super-explorado trabalho feminino.

Leia também: A autossabotagem soviética

4 de dezembro de 2023

Malcolm X pergunta pelo messias do sionismo

Em 1964, Malcolm X escreveu um artigo de apoio irrestrito ao povo palestino contra a invasão israelense a seu território. O texto começa pelo seguinte raciocínio:

Se os sionistas israelenses acreditam que sua atual ocupação da Palestina árabe é o cumprimento das previsões feitas por seus profetas judeus, então eles também acreditam religiosamente que Israel deve cumprir sua missão “divina” de governar todas as outras nações com um cetro de ferro, o que significa apenas uma forma diferente de
governo de ferro, ainda mais firmemente entrincheirado do que o das antigas potências coloniais europeias.

Após denunciar o sionismo como representante dos interesses imperialistas, não só no Oriente Médio, mas também na África, ele termina perguntando:

Os sionistas tinham o direito legal ou moral de invadir a Palestina árabe, arrancar os cidadãos árabes de suas casas e tomar para si todas as propriedades árabes apenas com base na alegação “religiosa” de que seus antepassados viveram lá há milhares de anos? Há apenas mil anos, os mouros viviam na Espanha. Será que isso daria aos mouros de hoje o direito legal e moral de invadir a Península Ibérica, expulsar seus cidadãos espanhóis e depois criar uma nova nação marroquina onde a Espanha costumava estar, como os sionistas europeus fizeram com nossos irmãos e irmãs árabes na Palestina?

Em resumo, o argumento sionista para justificar a atual ocupação da Palestina árabe por Israel não tem qualquer base lógica ou legal na história, nem mesmo em sua própria religião. Onde está o Messias deles?

Onde está o messias do sionismo? Há poucos dias, morreu um excelente candidato ao posto.

Leia também: Kissinger: que o inferno lhe seja pesado

1 de dezembro de 2023

Kissinger: que o inferno lhe seja pesado

“Henry Kissinger, criminoso de guerra amado pela classe dominante dos Estados Unidos, finalmente morre”. Esta é a manchete da revista Rolling Stone dedicada àquele que a publicação considera um dos “piores assassinos em massa da história”.

Já a matéria de Nick Turse para “The Intecept”  traz o seguinte obituário: 

Kissinger ajudou a prolongar a Guerra do Vietnã e a expandir o conflito para o Camboja; contribuiu para genocídios cometidos no Timor Leste, Camboja e Bangladesh; estimulou guerras civis no sul da África; e apoiou golpes de estado e esquadrões da morte em toda a América Latina. Ele tinha o sangue de pelo menos 3 milhões de pessoas em suas mãos.

Mas detalhemos alguns desses episódios:

Em 1969, os Estados Unidos lançaram mais de 540 mil toneladas de bombas no Camboja em uma operação articulada por Kissinger e Nixon. A guerra que se seguiu matou de 275 mil a 310 mil pessoas.

Em 1970, essa mesma dupla apoiou ação do governo militar do Paquistão Ocidental contra Bangladesh, que deixou entre 300 mil e 500 mil mortos.

Em 1973, Kissinger apoiou o golpe de Pinochet, que matou cerca de 3 mil e forçou ao exílio, 200 mil.

Em 1975, como secretário de Gerald Ford, deu luz verde para que o ditador indonésio Suharto invadisse o Timor-Leste, provocando uma guerra que deixou 200 mil mortos.

Em 1976, apoiou o golpe militar na Argentina, que levou à morte ou desaparecimento de 30 mil pessoas.

Ou seja, os povos do mundo só têm a comemorar e esperam que Kissinger desfrute de uma eternidade das mais
cruéis no inferno.

Leia também: A crise grega é política

A autossabotagem soviética

Na Rússia do início do século passado, a equivocada fé nos poderes da ciência e da tecnologia era compartilhada inclusive pelos bolcheviques, diz Gavin Mueller, em seu livro “Breaking Things at Work”.

Importante integrante da vanguarda revolucionária e marxista respeitado, Nikolai Bukharin escreveu que o “modo histórico de produção (...) é determinado pelo desenvolvimento das forças produtivas, ou seja, pelo desenvolvimento da tecnologia”. O problema é que Marx jamais reduziu o conceito de forças produtivas à tecnologia.

Já Lênin, ansioso por aumentar a produtividade na nascente União Soviética, defendia combinar o poder soviético com conquistas do capitalismo como o taylorismo. Em oposição a ele, Alexandre Bogdanov, outra grande liderança bolchevique, acreditava que o taylorismo minaria os objetivos da revolução, forçando os trabalhadores a tarefas repetitivas que causariam a atrofia de suas capacidades críticas e criativas.

Para Stalin, desenvolvimento industrial era sinônimo de socialismo. Outra simplificação grosseira do marxismo, mas que acabou se tornando política de estado, gerando desdobramentos desastrosos como a ideologia stakhanovista, de produção a qualquer custo. Não faltaram protestos, resistência e sabotagens dos trabalhadores alegando que os ideais da Revolução Bolchevique, como a limitação da jornada de trabalho e condições dignas de produção, seriam minados pela devoção fanática ao trabalho.

A adoção de técnicas, métodos e tecnologias capitalistas beneficiaram a economia soviética por algum tempo. Mas foi incapaz de enfrentar a concorrência imposta pela exploração desenfreada promovida pelo capitalismo de mercado.

O regime stalinista chamava a resistência dos trabalhadores nas fábricas de sabotagem contrarrevolucionária. Mas, ao mimetizar a produção capitalista,  o modelo produtivo soviético foi o maior responsável por seu próprio fracasso.

Leia também: A sabotagem como economia política dos trabalhadores