Doses maiores

31 de julho de 2023

Barbenheimer ou Missão Oppenheimer?

“Barbenheimer” é como ficou conhecido o lançamento simultâneo das superproduções “Barbie” e “Oppenheimer” nos cinemas. Mas faria mais sentido algo como “Missão Oppenheimer”, em referência a “Missão Impossível”, outro blockbuster que estreou na mesmo época.

Quem involuntariamente sugeriu a conexão entre as duas produções foi o próprio diretor de “Oppenheimer”. Em entrevistas, Christopher Nolan referiu-se à possibilidade de a inteligência artificial vir a controlar armas nucleares. Segundo ele, a história da criação dos armamentos nucleares deveria servir como lição de moral para o Vale do Silício.

Ora, o vilão da última versão de “Missão Impossível” é um poderoso algoritmo de inteligência artificial que foge ao controle humano e começa a ameaçar a humanidade.

Além disso, em 2019, Sam Altman, chefe-executivo da OpenAI, uma das empresas líderes em inteligência artificial, também citou Oppenheimer para dizer que o avanço científico é inevitável.

Em seu filme, Nolan mostra que a responsabilidade pela tragédia de Hiroshima e Nagasaki não foi de Oppenheimer, mas do dispositivo militar do imperialismo americano.

Mas e quanto à inteligência artificial? Seus efeitos trágicos muito prováveis também serão atribuídos aos “desdobramentos inevitáveis” do desenvolvimento tecnológico? Vai se tornar uma vilã conveniente, desligada de governos e de interesses econômicos poderosos, como sugere o filme estrelado por Tom Cruise?

É verdade que o capital funciona como uma força cega que submete a humanidade a sua lógica destrutiva. Mas isso não isenta de culpa a minoria poderosa que dele se beneficia. Tal como os carrascos nazistas ou os generais estadunidenses, ela não pode alegar que apenas acata ordens superiores.

Não é “barbenheimmer” nem é um meme. É barbárie, mesmo.

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28 de julho de 2023

Palavras ouvidas apenas pelos anjos

Em um dos capítulos do belo livro “O Infinito num Junco”, de Irene Vallejo, a autora cita o filme “Asas do Desejo”, de Wim Wenders, que tem como personagens principais anjos que possuem o dom de ouvir os pensamentos das pessoas. Em certo momento, eles entram em uma biblioteca e começam a ouvir as frases lidas pelos frequentadores dentro de suas cabeças.

Irene utiliza a cena para lembrar que, desde os primeiros séculos da escrita até a Idade Média, a norma sempre foi ler em voz alta, para nós mesmos ou para outros.

Um texto escrito era como uma partitura muito básica. Por isso, as palavras apareciam, uma atrás de outra, numa cadeia contínua sem separações nem sinais de pontuação, diz a autora. Era preciso pronunciá-las para entendê-las. Eram frequentes as leituras em público e os relatos que agradavam andavam de boca em boca. Desse modo, diz Irene:

...os leitores antigos não tinham a liberdade da qual você desfruta para ler à sua vontade as ideias ou as fantasias escritas nos textos, para parar, para pensar ou para sonhar acordado quando lhe apetece, para escolher e ocultar o que escolhe, para interromper ou abandonar, para criar os seus próprios universos. Esta liberdade individual, a sua, é uma conquista do pensamento independente face ao pensamento tutelado, e foi conseguida passo a passo ao longo do tempo.

Você é um tipo de leitor muito especial e descende de uma genealogia de inovadores, afirma a autora. Este diálogo silencioso, livre e secreto, é uma invenção surpreendente, conclui ela, em grande estilo.

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27 de julho de 2023

Oppenheimer e a bomba mais eficiente

Chegou aos cinemas o filme sobre o grande responsável pela criação da bomba atômica. No grandioso “Oppenheimer”, Christopher Nolan coloca o público em contato com os principais personagens, impasses e polêmicas envolvendo a mais terrível arma já inventada.

Mas o poder das bombas que destruíram Hiroshima e Nagasaki não está no número de vítimas que fizeram em agosto de 1945. As mortes diretas causadas por elas foram cerca de 110 mil. Já o bombardeio de Tóquio, ocorrido no ano anterior, tirou a vida de pouco mais de 100 mil pessoas.

Portanto, a grande diferença entre elas é outra. O bombardeio de Tóquio levou meses, fazendo uso de milhares de bombas e dezenas de aviões. Hiroshima e Nagasaki exigiram apenas dois artefatos, duas aeronaves e alguns minutos. Um enorme ganho de eficiência, segundo critérios de racionalidade que fariam inveja aos nazistas.

Mas a comparação também mostra que a lógica da guerra nuclear já estava presente antes da invenção de seus armamentos. Trata-se da indiferenciação entre alvos militares e civis.

Na Segunda Guerra ficou mais claro do que nunca. Para derrotar o inimigo é preciso minar todos os seus recursos. E entre os mais estratégicos destes, estava a força de trabalho. Necessária não apenas na indústria bélica, mas em todo o esforço exigido por uma economia voltada para a guerra.

Derrotar o fascismo era fundamental, sem dúvida. Mas para o imperialismo estadunidense foi mais importante deixar uma advertência para os soviéticos e as heroicas forças populares da resistência comunista. A vitória dos Aliados não foi a da democracia e da liberdade. Foi da máquina de morte mais eficiente.

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26 de julho de 2023

Racismo operário na África do Sul

Segundo João Bernardo, em seu livro “Labirintos do Fascismo”, a primeira greve da África do Sul ocorreu em 1850. Mas sua motivação não foi das mais nobres. O movimento se restringia a operários brancos e pretendia impedir o desembarque de condenados a trabalhos forçados. Temia que uma colônia penitenciária fosse transformada em reserva de mão-de-obra gratuita, levando a um achatamento salarial.

Momento mais significativo, porém, ocorreu em 1911, quando foi promulgada uma lei estabelecendo demarcação rigorosa entre trabalhadores brancos e negros nas minas e fábricas, com pouca resistência dos sindicatos. Essa forma embrionária de apartheid acabou por institucionalizar as barreiras racistas que impediriam o proletariado de se constituir como classe e, portanto, de enfrentar de maneira eficaz o capital.

Em 1921, os donos das minas iniciaram uma grande ofensiva para que os mineiros negros mais habilidosos tivessem acesso a funções semiqualificadas. Surgiu uma enorme onda de greves em defesa dos privilégios da mão-de-obra de origem europeia que logo se transformou numa grande insurreição. Alguns sindicatos armaram os operários e cerca de 50 deles morreram.

Ao mesmo tempo em que defendiam a separação racial dos mercados de trabalho, os grevistas procuravam fundar uma república dos trabalhadores. Dos trabalhadores brancos, claro. A palavra de ordem era “Proletários de todo o mundo uni-vos por uma África do Sul branca”. O mais lamentável é que o movimento foi impulsionado por militantes da Internacional Comunista.

A este fenômeno Bernardo chama de “nacional-bolchevismo”. Ou seja, a luta socialista subordinada a objetivos nacionalistas. O caso sul-africano mostra que as consequências de uma concepção como esta podem ser as mais trágicas e vergonhosas.

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25 de julho de 2023

O consumo como ameaça à humanidade

Acabou de aparecer na imprensa. Com 1,6 milhão de metros quadrados, um gigantesco lixão situado no Pacífico tem tamanho equivalente ao do estado do Amazonas. A quase totalidade desses detritos é formada por plástico. Material que se tornou o grande vilão da sujeira ambiental.

Diante dessa tragédia, uma medida importante seria diminuir drasticamente a utilização do plástico. Principalmente, nas embalagens, tão presentes em nosso consumo diário, atualmente. Mas um estudo escocês mostra que não é bem assim.

Segundo a pesquisa, sacolas plásticas, quando comparadas a suas equivalentes em papel, geram menos gases de efeito estufa, assim como consomem menos água e energia em seu processo de fabricação.

Mas as surpresas não param por aí. Em 19/07/2023, o New York Times divulgou estudo que demonstra que “Vazamentos de gás natural podem ser tão ruins para o clima quanto o carvão”. Considerado alternativa limpa ao carvão, bastam “que apenas 0,2% de gás natural vaze para que ele se torne um fator de mudança climática tão grande quanto o carvão”, concluiu a pesquisa.

O fato é que o maior problema em relação à sustentabilidade ambiental não diz respeito apenas aos materiais e recursos utilizados. É a escala e velocidade da circulação de capital. Para manter as taxas de lucros dos grandes monopólios, o consumo precisa ocorrer em ciclos cada vez mais curtos, massivos e sujos.

Não basta apenas estimular hábitos sustentáveis de consumo, se o próprio consumo continuar sendo a razão de ser da humanidade e uma das grandes ameaças a sua existência enquanto espécie.

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24 de julho de 2023

Inteligência artificial contra bactérias e sindicatos

Em recente artigo, Yanis Varoufakis divulgou uma “rara boa notícia”:

...a inteligência artificial (IA) permitiu que pesquisadores desenvolvessem um antibiótico capaz de matar uma superbactéria exótica que desafiava todas as drogas antimicrobianas existentes. Um algoritmo baseado em IA mapeou milhares de compostos químicos em proteínas-chave da “Acinetobacter baumannii”, uma bactéria que causa pneumonia e infecta feridas tão gravemente que a OMS a classificou como uma das três “ameaças críticas” à humanidade.

No mesmo texto, no entanto, o autor denuncia a existência de um dispositivo de IA que pode detectar comportamentos favoráveis a sindicalização em todos os armazéns da Amazon em tempo real e a custo zero.

É desconcertante dizer isso, conclui Varoufakis, mas a “IA destruidora de sindicatos depende exatamente das mesmas descobertas científicas que produziram a IA destruidora de germes”.

É a confirmação de uma das teses mais célebres de Karl Marx:

Em certa fase de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes. De formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas relações transformam-se em seus entraves.

Ou seja, uma força produtiva como a inteligência artificial pode beneficiar toda a humanidade, como no caso das bactérias. Mas as atuais relações de produção também a transformam em instrumento de opressão que garante os privilégios de um dos maiores monopólios da história do capitalismo.

Além disso, ainda há o risco de que sucessos científicos como o comemorado por Varoufakis acabem sendo patenteados por uma gigante da indústria farmacêutica. Nesse caso, seria só mais uma oportunidade de altos lucros.

É a lógica do capitalismo infectando tudo.

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4 de julho de 2023

Quando escrita e memória resgatam-se uma à outra

“Fahrenheit 451” é um famoso livro de Ray Bradbury sobre um mundo distópico, em que todos os livros são queimados. Para salvá-los, heroicos voluntários passam a decorar o conteúdo integral de exemplares que escaparam da fogueira.

Em seu livro “O Infinito num Junco”, Irene Vallejo afirma que algo parecido aconteceu na China. Foi no século 3, quando o imperador Qin Shi Huang ordenou que fossem queimados todos os livros. Ele queria que a história começasse com seu reinado e pretendia abolir tudo o que veio antes dele.

Felizmente, décadas depois, já sob uma nova dinastia, foi possível reescrever muitos daquelas obras perdidas. Correndo riscos inacreditáveis, escribas tinham conservado na memória livros inteiros, em segredo, ao abrigo da guerra, das perseguições e das fogueiras.

No século 20, durante o período stalinista, afirma nossa autora, amigos de Anna Akhmátova memorizaram poemas do seu livro “Réquiem”, à medida que era escrito, para preservá-lo caso algo acontecesse a sua autora.

A escrita e a memória não são adversárias, diz Irene. Na verdade, ao longo da história, salvaram-se uma à outra: as letras resguardam o passado; a memória, os livros perseguidos.

Por outro lado, explica ela, a escrita permitiu criar uma linguagem complexa que os leitores podem assimilar e sobre a qual meditam com mais tranquilidade. Além disso, desenvolver um espírito crítico é mais simples para quem tem um livro na mão, podendo interromper a leitura, reler e parar para pensar.

Com essas belas reflexões de Irene Vallejo, as pílulas entram em breves férias, esperando que continuemos na resistência contra a amnésia e as fogueiras.

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3 de julho de 2023

Sobre toupeiras, serpentes e águias

Em recente artigo sobre Junho de 2013, Vladimir Safatle discute a hipótese de que “a característica política mais relevante do século 21 foi uma impressionante sequência de insurreições populares de luta contra o capital e de recuperação paulatina da soberania das massas espoliadas”.

O autor cita eclosões populares como aquelas ocorridas desde 2010, com Occupy Wall Street, Primavera Árabe, manifestações em Madri e Istambul, o próprio Junho de 2013, os Coletes Amarelos na França, até chegar às grandes marchas de 2019, em Santiago do Chile.

Mas há até quem identifique o início desse processo nos protestos de Seattle, em 1999, e lembre também as manifestações contra a Guerra do Iraque, em 2003.

Neste exato momento, chama a atenção do mundo uma grande revolta que vem ocorrendo nos subúrbios de Paris.

Tudo isso faz pensar na metáfora da toupeira, muito utilizada por Marx. Tal como aquele animal, dizia ele, o processo revolucionário ocorreria nos subterrâneos da sociedade e irromperia do solo nos lugares e momentos mais inesperados.

Além disso, o bicho também representaria a militância cotidiana. Persistente, pouco gloriosa e voltada para a união das forças que lutam contra a exploração e a opressão a partir de baixo.

Ao mesmo tempo, a toupeira é nossa melhor aposta contra o fascismo. Enquanto ela abre seus caminhos sob a terra, aproveita para destruir os ninhos de ovos de serpente que encontra pela frente.

Águias, falcões e gaviões são bonitos e impressionantes. Mas costumam simbolizar a rapina das classes dominantes e voam distantes dos perigos que ameaçam a maioria cá embaixo. Sem falar que também botam uns ovos muitos suspeitos.

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1 de julho de 2023

As falácias do machismo-alfa e do etarismo

Na edição de 25/03/2023 da revista New Yorker a jornalista Rivka Galchen publicou um artigo divulgando dados que refutam a teoria da importância dos machos-alfa na natureza e questionam a discriminação contra pessoas com base em sua idade, conhecida como etarismo. Um exemplo de etarismo ocorre quando jovens têm suas opiniões desprezadas porque seriam imaturos. Mais comum, porém, é o desrespeito a idosos, cujas capacidades são consideradas obsoletas.

O artigo de Rivka aborda as descobertas de Kira Cassidy, pesquisadora do Parque Nacional de Yellowstone, nos Estados Unidos. Observando lobos, ela descobriu que o fator decisivo nas brigas entre matilhas não é o tamanho do grupo ou um macho-alfa em sua liderança. É a presença de indivíduos idosos, machos ou fêmeas, que torna mais provável a vitória do grupo em uma batalha.

Depois disso, ela pesquisou estudos sobre outros animais e encontrou achados semelhantes. Em tempos de seca, as manadas de elefantes com uma matriarca veterana se saem melhor. Quando há escassez de peixe, as orcas seguem a avó do grupo. “Nas lutas entre bandos, vemos que os anciãos não entram em pânico”, diz Kira. “Costumam acalmar os companheiros e mantê-los unidos. Ou talvez ajudem o bando a evitar brigas que eles sabem que não podem vencer, o que aumenta sua taxa de vitórias”, conclui ela.

Essas conclusões não seriam nada surpreendentes em muitas sociedades antigas ou alternativas, nas quais a experiência dos mais velhos sempre foi muito importante. Mas em nosso meio, a obsolescência programada da produção capitalista contamina as relações pessoais. Enquanto isso, velhas falsidades, como o “machismo-alfa” e a estupidez senil, são revalidadas.

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