Doses maiores

30 de junho de 2020

A pandemia e a doença K

Na Folha de hoje, reportagem de Fernando Canzian avisa “Saída da crise em forma 'K' ampliará desigualdade”. Referindo-se à pandemia, ele explica:

Nas especulações sobre o formato de saída da crise, em “V” (queda e recuperação) ou “L" (queda e estagnação), entre outros, o que vem se impondo é o “K”: os mais ricos e companhias maiores ganhando e os trabalhadores e empresas menores empobrecendo, abrindo a distância entre os dois grupos.

Isso ocorre sobretudo por dois movimentos contrários: 1) o isolamento social atingiu em cheio o setor de serviços, repleto de vagas precárias e salários baixos; e 2) a avalanche de dinheiro barato dos bancos centrais têm chegado com mais facilidade às grandes empresas e provocado a rápida revalorização de ativos como ações.

Os parágrafos acima são bem claros. O que já era muito ruim no “velho normal”, no “novo normal” ficará ainda pior.

Na verdade, o coronavírus não provocou pandemia alguma. Ele causou apenas uma doença, cujos efeitos foram enormemente potencializados pela forma como nos organizamos socialmente. Suas trágicas consequências são como aqueles apitos tocando sem parar nas UTIs. Deveriam funcionar como um alarme a denunciar a múltipla falência do sistema todo.

Diante desses sinais de alerta, nossa espécie deveria providenciar correções ágeis e radicais em seu relacionamento com a natureza e consigo mesma.

Mas a humanidade é incapaz de fazer isso porque está dividida entre uma imensa maioria impotente e uma pequena minoria poderosa e irresponsável, vítima de outra patologia, muito mais grave e antiga. Há mais de 150 anos, Marx já havia identificado essa doença. Em alemão, ele a batizou de “Kapital”.

Leia também: A pandemia e os gatilhos do caos

29 de junho de 2020

Ideais nazistas continuam a prosperar nos locais de trabalho

No livro “Livres para obedecer”, o historiador francês Johann Chapoutot mostra como o moderno gerencialismo empresarial foi fortemente influenciado por ideólogos nazistas.

É o caso da ideia de que trabalhadores devem ser vistos como colaboradores de seus patrões. Seriam todos companheiros e não inimigos de classe. Afinal, todos faziam parte da grande comunidade racial germânica, pura e superior.

Terminada a guerra, já na Alemanha Ocidental, a retórica ariana desapareceu, mas manteve-se a ideia da necessidade de ampla participação da força de trabalho na gestão da produção. Era preciso evitar conflitos de classe que pudessem facilitar a pregação comunista.

Um dos principais ideólogos desse modelo era Reinhard Höhn, ex-oficial da SS e general do exército derrotado. Justus Beyer e Franz-Alfred Six eram outros desses altos oficiais nazistas. Convertidos em professores de marketing, trabalhavam tranquilamente para os defensores do “mundo livre”.

Foi desse modo que na Alemanha e na Europa formaram-se redes de solidariedade entre ex-integrantes da SS, permitindo-lhes ajudar nos esforços para garantir um retorno lucrativo aos capitais investidos pelos países aliados nas economias destruídas.

Nos escritos de Höhn já não havia mais qualquer traço de antissemitismo e racismo. Porém, restava uma ideia fundamental: a vida é uma guerra também no terreno da produção industrial.

Os nazistas não criaram essa concepção. Apenas a herdaram do darwinismo social, militar, econômico e racista surgido no século 19 junto com o capitalismo industrial. Mas foram eles que a levaram ao auge em sua corrida insana por mais produção e dominação.

Derrotado nos campos de batalha, o nazismo perdeu seus uniformes e símbolos, mas continua prosperando nos locais de trabalho.

Leia também: Modernos métodos gerenciais têm raízes nazistas

27 de junho de 2020

Modernos métodos gerenciais têm raízes nazistas

“Livres para obedecer” é o mais recente livro do historiador francês Johann Chapoutot. Ainda sem tradução para o português, a obra mostra como o moderno gerencialismo empresarial foi fortemente influenciado por alguns teóricos leais a Hitler.

Segundo Chapoutot, o nazismo parece ter sido o mais opressivo regime que já existiu. E realmente o foi para as centenas de milhares de pessoas que foram suas vítimas por razões "políticas" ou "raciais". Mas esse mesmo sistema de dominação encorajou e financiou a criação de um novo modo de organização administrativa não autoritária.

Nesse modelo, a autonomia do trabalhador era prioridade: ele devia ser livre para escolher os meios, ainda que jamais para definir os objetivos. Entre estes estava, claro, a eliminação eficiente e rápida dos que eram considerados inimigos do regime, como judeus, comunistas, homossexuais, etc.

Reinhard Höhn foi um jurista respeitado e general da SS. Mas seu passado nazista foi ignorado quando ele fundou a escola Bad Harzburg, em 1956, na Alemanha Ocidental. Nela, ele continuou a utilizar o mesmo modelo administrativo que criou para o 3º Reich. Só que, agora, voltado para as empresas privadas.

Mais de 700 mil gerentes foram treinados por Höhn e sua equipe entre a criação da escola e o ano de sua morte, em 2000. Seu método de gestão era hierárquico sem ser autoritário. Oferecia aos "colaboradores" a possibilidade de gozar de plena liberdade para ser bem sucedido. Mas somente para realizar o que foi decidido de cima para baixo.

É por isso que muita gente afirma que o nazismo perdeu a guerra apenas militarmente, não ideologicamente. Voltaremos a esse livro.

Leia também: Na sala de estar, cadáveres dos campos de concentração

26 de junho de 2020

Na hora H, Hindenburg e Hitler

E lá vamos nós, de novo, tentar formar uma ampla frente de oposição ao fascismo. Vale chamar todo mundo contra Bolsonaro. Rodrigo Maia, FHC, Alckmin, Luciano Huck e, quem sabe, MBL...

No campo da esquerda, muitos defendem esse tipo de tática lembrando a falta de unidade entre comunistas e socialdemocratas na Alemanha dos anos 1930 no combate a Hitler.

Os comunistas, sob orientação stalinista, consideravam nazistas e socialdemocratas farinha do mesmo saco. Um de seus slogans era “Primeiro Hitler, depois nós”.

Os socialdemocratas achavam os comunistas radicais demais. Chegaram a pedir “voto útil” para o general Hindenburg, membro da elite agrária prussiana, contra os nazistas. Eleito, Hindenburg nomeou Hitler primeiro-ministro.

Ao mesmo tempo, comunistas e socialdemocratas atacavam-se uns aos outros. Estava dada a conjunção astral perfeita para a catástrofe que se seguiria.

Contra esse comportamento desastroso apenas alguns comunistas isolados. Trotsky e Clara Zetkin eram os dois mais importantes. Diziam que era preciso juntar todas as forças contra o avanço do fascismo.

Mas, atenção, sua proposta era a unidade entre as forças anticapitalistas. Claro que era possível acordos pontuais com setores da burguesia que não confiavam em Hitler. Mas nada além disso. A prioridade seria unir as forças operárias e populares em torno de propostas de esquerda.

A situação no Brasil atual tem muitas diferenças. Mas o oportunismo da burguesia é essencialmente o mesmo. Por trás dos chamados pela unidade em torno da democracia, o objetivo é salvar apenas seu próprio couro, se tiverem que se livrar de Bolsonaro.

Infelizmente, setores importantes da esquerda estão caindo nessa. Vão acabar achando um Hindenburg para chamar de seu.

Leia também:  Tem focinho de fascista, rabo de fascista, mas não é Bolsonaro

24 de junho de 2020

Antifascismo cotidiano e anticapitalismo radical

Os antifascistas não defendem a violência como tática única em seu combate à extrema-direita. Este é um dos principais pontos ressaltados por Mark Bray em seu livro “Antifa - O Manual Antifascista”.

A quem recomenda apenas ignorar os fascistas, Bray lembra que “quando eles chegam com paus, chaves de fenda ou facas, não é tão simples assim”. Por outro lado, como diz uma militante antifascista: “Se tudo o que você tem é um martelo, todos os seus problemas parecerão pregos”.

Daí, a importância daquilo que o livro chama de “antifascismo cotidiano”. Trata-se de aplicar uma visão antifascista a qualquer tipo de interação com os fascistas, todos os dias e em qualquer lugar. Desse modo:
Se a meta política antifascista normal é fazer com que os nazistas não permaneçam tranquilamente em público, o objetivo do antifascismo cotidiano é aumentar o custo social do comportamento opressor a tal ponto que aqueles que o promovem não vejam outra opção que não seja a de recuar e se esconder.
É como diz o antifascista italiano Niccolò Garufi:
Sempre defendi uma guerra total contra o fascismo, mas não no sentido militar. Você precisa estar pronto para atacar e se defender. Você tem que estar preparado, mas se trata principalmente de uma luta cultural, porque o fascismo cresce na classe trabalhadora. Temos que estar presentes na classe trabalhadora, no movimento estudantil, na organização de trabalhadores na comunidade e na construção de redes de solidariedade.
Mas tudo isso precisa ser orientado por uma visão radicalmente crítica à sociedade que torna o fascismo possível. Ou seja, é preciso ser radicalmente anticapitalista.

Leia também: Fantifas: as feministas antifascistas

23 de junho de 2020

Fantifas: as feministas antifascistas

Em seu livro “Antifa - O Manual Antifascista”, Mark Bray alerta para o que diz Dag, um militante antifascista norueguês: “Sempre que a violência faz parte da luta política, você terá problemas com machismo”.

Dag exemplifica citando problemas ocorridos nas cidades de Oslo e Trondheim, onde alguns grupos antifascistas se aliaram a torcedores violentos e apolíticos de futebol para combater os nazistas. Um tipo de aliança que, segundo ele, frequentemente descambava para a violência machista.

Daí a importância de destacar o papel das mulheres antifascistas, diz Bray. Dolores C., de Estocolmo, é uma delas. Ela lembra que sempre que as mulheres batiam nos nazistas suecos, eles não só mentiam, dizendo que foram homens, como começaram a se esconder para não passar por nova humilhação.

Já a militante Maya, da região central do Texas, diz que ela e suas companheiras costumavam se aproveitar de uma regra não escrita entre os texanos, segundo a qual se um homem põe uma mão em uma mulher, ela “fica livre para partir pra porrada sem ser punida por isso”.

Desse modo, as antifascistas texanas começaram a “explorar a misoginia dentro de uma cultura mais ampla”. Elas levavam homens fascistas a empurrá-las, dando-lhes oportunidade para liberar sua fúria antes que a polícia levasse os homens embora.

De acordo com Maya, nenhuma de suas companheiras antifas foi presa no Texas, exceto uma, que passou uma noite na cadeia depois de arrancar a mordidas um pedaço da orelha de um nazista.

A partir desse tipo de atuação, surgiram coletivos feministas conhecidos como “fantifas”. Um viva pra elas! E um “morram” vocês sabem pra quem...

Leia também: Fascista bom é fascista amordaçado

22 de junho de 2020

“Bacurau”: porque é preciso tirar nossas armas do museu

Uma cena de “Bacurau” foi muito lembrada quando a quarentena começou. É o momento em que o prefeito visita o vilarejo e a população, revoltada com suas pilantragens, tranca-se em casa, deixando as ruas desertas.

O filme foi lançado em 2019, antes da pandemia. Mas esse é apenas um de seus momentos que tem ares proféticos. Em outra cena, vários caixões funerários aparecem espalhados em uma estrada após o caminhão que os transportava ter tombado.

A presença na trama de caçadores estrangeiros que se divertem matando a gente pobre do sertão também parecia alertar para o que estava para acontecer no País. E não era a pandemia, claro. Era a chegada ao poder de defensores da morte como política de governo.

A produção de Bacurau teve início muito antes de que a eleição de Bolsonaro se mostrasse possível. Mas a onda ultraconservadora que tomava conta do país já era bastante visível. Atentos a esse momento, os realizadores do filme deram seu recado. A reação dos moradores do vilarejo teve a radicalidade necessária. Foi proporcional ao extremismo daqueles que os atacavam.

Para se defender, o povo de Bacurau lembrou-se de sua história de luta. Resgatou suas antigas armas, esquecidas no museu da cidade. No triste Brasil real em que vivemos, muitas das forças populares também abandonaram seus arsenais. Passaram a confiar em governos, parlamentos e tribunais para garantir-lhes justiça. Mas jamais saíram da linha de tiro.

Dos quilombos aos assentamentos. De Canudos às greves gerais. Da resistência anticolonial às ocupações urbanas. Enquanto a injustiça e a morte governarem, o lugar de nossas armas nunca será em museus.

Leia também: Bacurau ou o apocalipse programado

20 de junho de 2020

Bolsonaro em crise nunca foi motivo para otimismos fáceis

As Forças Armadas chegaram à conclusão que nos encontramos num fim de linha e que chegamos no limite social absoluto. Além disso, a classe dominante já delegou a tarefa de organização do capital para o pior, ela já deu carta branca para uma outra governança. É como se a classe dominante tivesse desistido do país que ela domina. A incrível ascensão espetacular do Governo-Militar-Democrático-Autoritário que estamos assistindo é a continuação da prática de governo militar de populações excedentes que vem se instalando no Brasil há algumas décadas. Uma gestão da barbárie (...) na qual se juntam polícias, milícias, igrejas pentecostais, editais culturais, ONG’s e todos os programas sociais de contenção.
O trecho acima pertence ao artigo Notas sobre uma hipótese militar, em que Frederico Lyra reúne conclusões dos professores de Filosofia, Paulo Arantes e Marildo Menegat.

É apenas um exemplo de avaliações que podem relativizar as atuais expectativas em torno de uma provável derrota do governo Bolsonaro.

É verdade que a crise no laranjal do governo parece quase terminal. Mas precisamos considerar três fatores importantes:

1) O governo Bolsonaro é o único desde o fim da ditadura que tem nas crises seu principal motor de funcionamento.

2) Bolsonaro também foi o único nesse mesmo período a recolocar os militares na cena política como protagonistas e espinha dorsal de seu governo.

3) Desde a chamada “redemocratização”, as forças de esquerda nunca estiveram tão afastadas da protagonismo político.

Claro que nada disso blinda Bolsonaro, necessariamente. Há muitas contradições. Mas não temos motivos suficientes para alimentar otimismos fáceis. O pessimismo da razão continua a ser o melhor conselheiro.

Leia também: A pandemia e a dose necessária de pessimismo inteligente

18 de junho de 2020

Fascista bom é fascista amordaçado

Voltamos ao livro “Antifa - O Manual Antifascista”, de Mark Bray, e sua abordagem sobre a liberdade de expressão.

Sempre que os antifascistas dizem que não se deve permitir aos fascistas o direito de manifestação, alguém adverte: “Hoje, são os fascistas, amanhã podem ser os comunistas, as feministas, os gays...”

Acontece, argumenta Bray, que os esforços para negar palanques aos fascistas não surgiram da iniciativa e caprichos de indivíduos aleatórios:

São parte de uma luta histórica, muitas vezes travada na autodefesa de movimentos de esquerda – judeus, não brancos, muçulmanos, queer, trans e outros – para garantir que os fascistas não crescessem o suficiente para assassiná-los. Trata-se do resultado de gerações de luta transnacional, não um experimento no campo das ideias.
E no decorrer dessas lutas, muitos corpos ficaram no chão sem que as “autoridades constituídas” fizessem valer o direito de suas vítimas de não serem agredidas ou mortas pelo fascismo.

Além disso, nenhum movimento antifascista na história desembocou em regimes de terror como aconteceu na Itália e Alemanha. Já os fascistas, muitas vezes, mesmo sem conquistar o poder, continuam a matar, torturar e estuprar nas ruas sem serem incomodados por governos liberais, cujas polícias costumam tratar com enorme violência até as mais pacíficas manifestações da esquerda.

Um antirracismo “passivo” é tudo que os supremacistas brancos querem, diz o autor. E conclui:

Se não os detivermos quando eles são pequenos, nós os enfrentaremos quando? Quando estiverem governando? Vamos esperar até que suásticas sejam levantadas em prédios públicos para que possamos nos defender?
Fascistas têm todo o direito de pensar merda em casa. Não de falar merda em público.

Leia também: Para os fascistas, nenhum palanque!

17 de junho de 2020

Para os fascistas, nenhum palanque!

Pode-se discordar de algumas conclusões do livro “Antifa - O Manual Antifascista”, de Mark Bray, mas sua leitura é obrigatória.

Ao tratar sobre “liberdade de expressão”, por exemplo, a publicação diz:
No coração da visão antifascista está uma rejeição da clássica frase atribuída a Voltaire: “Discordo do que você diz, mas defenderei até a morte seu direito de dizê-lo”. Depois de Auschwitz e Treblinka, os antifascistas se comprometeram a lutar até a morte contra a possibilidade de nazistas organizados falarem qualquer coisa.
Para os fascistas, “nenhum palanque”, afirmam os “antifas”. A defesa absoluta da liberdade de expressão, diz Bray, pressupõe um Estado neutro. Mas:
Os cadáveres de vários membros dos Panteras Negras assassinados mostram como o governo só assume uma posição neutra com relação à liberdade de expressão quando não está se sentindo ameaçado.
Os liberais dizem que a livre circulação de ideias permite que as boas se mantenham no superfície, enquanto as más escorrem pelo ralo. Isso já era falso quando apenas a grande mídia tradicional monopolizava a esfera pública. É ainda pior, hoje, com a chegada de monopólios como Google e Facebook e seus algoritmos que disseminam ódio e intolerância.

Muitos liberais querem limitar a defesa da legalização das drogas, mas não a propaganda nazista. Também não se importam que a polícia cale imigrantes sem documentos, enquanto permite à Ku Klux Klan divulgar suas mensagens de extermínio racista.

Os antifascistas também valorizam a troca livre e aberta de ideias. Mas se recusam a ouvir passivos aqueles que usam essa liberdade para promover genocídios ou questionar a humanidade das pessoas. Fascista bom é fascista amordaçado.

Leia também: Como combater o fascismo no campo das ideias

16 de junho de 2020

Sobre estátuas e monumentos ao fascismo

Entrar em um lugar chamado “Senzala” para tomar um café é a mesma coisa que um judeu entrar em um lugar chamado Auschwitz para dormir um pouquinho.
A frase acima é de Caê Vasconcelos em reportagem sobre a recente onda de destruição de estátuas que homenageavam escravizadores, torturadores e assassinos de negros e indígenas, na Europa e Estados Unidos. Por aqui, a estátua de Borba Gato está na mira dos movimentos antirracistas.

As palavras de Caê mostram que o racismo não se limita aos monumentos. E a comparação com o famoso campo de concentração nazista está longe de ser exagerada.

Entre as principais características do fascismo estão: eliminação ou escravização daqueles considerados de raça ou cultura inferior. Roubo de seus bens e territórios. Violência desmedida contra todos os que contestam o domínio branco. Glorificação de uma pátria que acolhe apenas o um “povo eleito”. Perseguição sem tréguas a quem considera humanos e dignos de respeito e direito à liberdade todas as pessoas.

Mas os elementos acima não surgiram na Itália fascista ou na Alemanha nazista. Muito antes disso, os impérios coloniais já praticavam o fascismo sobre os povos não europeus.

Foi somente quando este dispositivo diabólico se manifestou no interior dos próprios impérios e provocou as maiores matanças da história que passou a ser considerado uma aberração a ser derrotada. Ainda assim, jamais desapareceu porque funciona como dispositivo de segurança do sistema injusto que o criou.

O fascismo que precisamos derrotar não é somente aquele que alguns brancos poderosos fingem combater. É também o dos ídolos sangrentos aos quais eles sacrificam milhões de vidas há séculos.

Leia também:
Vandalismo e chifres
PM na USP e Palmares

15 de junho de 2020

Tem focinho de fascista, rabo de fascista, mas não é Bolsonaro

Seria Bolsonaro um fascista? Pergunta estranha, não? Afinal, Bolsonaro tem focinho de fascista, patas de fascista, rabo de fascista e fede a fascismo.

Já quanto a seu governo, as patas e o fedor do fascismo talvez estejam lá, mas não é possível dizer que o bicho já esteja totalmente formado.

E, por fim, o regime político definitivamente não é fascista. Ainda que, em suas várias versões, há séculos continue a exalar uma catinga forte de autoritarismo e elitismo racista.

Esse debate não tem nada de acadêmico ou diletante. Dependemos das conclusões que tirarmos dele para decidir sobre o que fazer.

Se não é possível dizer que vivemos sob uma dominação fascista, o focinho, patas e rabo do chefe do governo não deixam dúvidas. A ameaça de uma conversão de governo e regime ao fascismo é cada vez mais concreta.

Diante desse perigo terrível, há quem defenda uma “ampla aliança das forças democráticas nacionais”. Muito justo.

Mas quais forças políticas do País poderíamos considerar democráticas? As mesmas que participaram do golpe parlamentar de 2016? Aquelas que livraram Michel Temer do impeachment? Ou, ainda, as responsáveis por aprovar as reformas trabalhista e previdenciária que destruíram direitos e conquistas de milhões? Talvez, sejam os que alegremente comem sua pipoca enquanto assistem ao espetáculo de terror e genocídio promovido por Bolsonaro?

O fato é que se escolhermos nos aliar a “democratas” desse tipo, estaremos reduzidos não só a uma oposição incapaz de deter o fascismo. Mas daremos as mãos àqueles que, ao sentirem o mais leve cheiro de povo, criam patas, focinho e rabo muito parecidos com os de Bolsonaro.

Leia também: Qual democracia devemos defender contra Bolsonaro (2)

13 de junho de 2020

Negra, socióloga, jornalista, feminista e armada com um rifle

Ida Bell Wells era jornalista, sufragista, feminista e socióloga. Nascida no Mississipi em 1862, foi a mulher negra estadunidense mais famosa de sua época.

Nascida escrava, Ida foi libertada durante a Guerra de Secessão. Uma das precursoras da luta pelos direitos civis, ajudou a criar uma das mais antigas entidades de luta antirracista nos Estados Unidos, a Associação Nacional para o Avanço e Melhoramento das Pessoas de Cor, fundada em 1909.

Dona de um texto claro e incisivo, foi uma das donas do jornal “Memphis Free Speech and Headlight”, no Tennessee. À frente da publicação, denunciava incansavelmente os frequentes linchamentos de negros no sul estadunidense em matérias que se espalharam pelo país.

Não demorou para que seu jornal fosse atacado. Além disso, a confeitaria de um amigo, também negro, foi depredada por brancos. Apesar disso, foi o dono do estabelecimento que foi preso e acabou morto por um bando de racistas que invadiu a delegacia.

Diante disso, Ida decidiu mudar-se para Chicago, convocando a população negra da cidade a fazer o mesmo. Junto com ela, cerca de 6 mil pessoas abandonaram Memphis.

Em Chicago, casou e formou família. Até 1931, quando morreu, Ida continuou a escrever, dar palestras e organizar manifestações contra o racismo e por direitos para a população negra.

Com formação superior, jornalista talentosa e oradora imbatível, Ida apostava na conscientização política e na mobilização popular. Mas diante dos constantes ataques dos fascistas ianques, também recomendava:

Um rifle Winchester deveria ter um lugar de honra em cada lar negro para garantir a seus membros a proteção que a lei insiste em lhes negar.
Leia também: Racismo ianque: entre a suástica e a cruz inflamada

10 de junho de 2020

A esquerda em quarentena

Há um certo consenso de que, uma vez superada a pandemia, a vida jamais voltará ao normal. Também deveria ser consensual que, mesmo que Bolsonaro seja derrotado, não voltaremos à normalidade anterior.

O normal de antes da pandemia era o desmatamento que a provocou. Era o caos urbano que espalhou o vírus. Era a enorme desigualdade econômica e sanitária que tornou o covid muito mais mortal entre os pobres e não brancos.

E o normal antes de Bolsonaro, era o quê? A democracia? Qual democracia e para quem?

Lá onde a pandemia faz mais vítimas ficam os mesmos lugares onde a democracia sempre foi um conceito tão conhecido quanto abstrato. Em nenhum momento, por exemplo, essa ideia impediu que a polícia continuasse matando indiscriminadamente.

Nesses locais, do mesmo modo que a democracia não estava presente quando Bolsonaro chegou, não havia um mínimo de dignidade humana quando o coronavírus atacou.

Recentemente, foi divulgado o estudo “Bolsonarismo em crise?”, coordenado pelas pesquisadoras Camila Rocha e Esther Solano. Feito com eleitores de Bolsonaro das classes C e D, o levantamento apontou um certo arrependimento entre seus entrevistados.

Mas, mesmo entre esses “arrependidos”, a maioria repetiria o voto por “falta de alternativa” e graças a um persistente antipetismo.

Comentando os resultados de seu trabalho, Esther adverte que tal como acontece com a democracia, o significado de fascismo também permanece vago. E vai ser assim enquanto continuarmos a simplesmente definir fascismo como o oposto de democracia.

Bolsonaro ainda está lá, junto com o vírus. E nós? Nós já estávamos em quarentena muito antes dos dois chegarem.

Leia também: As ruas podem tornar o impossível inevitável

9 de junho de 2020

Vidas indígenas também importam

Elas morrem de pandemias há 500 anos. E morrem de balas também. E de etnocídio, que é o nome que se dá para a destruição da cultura de um grupo étnico por outro. São as populações indígenas.

Os indígenas morreram de gripe, sarampo, varíola. Pestes trazidas pelo colonizador. E morreram do chumbo disparado por armas brancas. Muitos morreram culturalmente. E continuam a morrer todas as vezes que sua identidade fica escondida por trás do termo “cor parda”.

Eles estão perdendo suas vidas em velocidade ainda maior, agora, durante a pandemia. Continuam a perdê-las pela força bruta, mas também sutilmente pelo vírus. 


A mando do agronegócio, garimpeiros e madeireiros avançam sobre seus territórios carregando o covid. E novamente vão deixando a morte nas florestas.

Eles ensinaram o colonizador a tomar banho, mas mal têm água limpa para lavar as mãos. Muitos dos rios que os alimentaram e banharam por séculos foram transformados em esgotos pelo homem branco.

Aqueles que vivem mais isolados, formam comunidades muito unidas, muito solidárias. Mas um único deles que traga a peste depois de voltar da cidade a espalha imediatamente. A ajuda médica mais próxima fica a dias de navegação fluvial.

Eles sabem lutar. Resistem bravamente. Mas continuam a ser mortos pelo chumbo, pela depressão, pelo gado, pela soja e, agora, pelo covid.

E nós facilitamos essas vitórias racistas cada vez que deixamos um “pardo” perdido entre uma identidade negra improvável e uma identificação branca alienada. Cada vez que os abandonamos à política de eugenia que mata seus povos e destrói sua cultura.

Sempre que aceitamos que vidas indígenas também não importam.

Leia também:
Contra a morte social, a comunhão das lutas
Abril de 1500: os Walking Dead desembarcam

8 de junho de 2020

Racismo ianque: entre a suástica e a cruz inflamada

“O Homem do Castelo Alto” é um livro de ficção científica escrito pelo norte-americano Philip K. Dick. A trama se passa em 1962, quinze anos após o fascismo derrotar os Aliados na Segunda Guerra, ficando o território dos Estados Unidos dividido entre a Alemanha nazista e o Japão imperial.

Recentemente, o livro foi transformado em série televisiva produzida pela Amazon, exibida de 2016 a 2019. Nesta versão, aparece um personagem que não está na obra original. É Edgar J. Hoover, que foi chefe absoluto do FBI por quase quatro décadas.

No mundo distópico da série, Hoover é um dos homens de confiança da ditadura nazista que domina os Estados Unidos. Mas o que chama a atenção é que a “liberdade ficcional” adotada pela adaptação seja bastante coerente em relação à possibilidade histórica explorada por Dick.

Na vida real, à frente da polícia federal americana, Hoover foi um feroz anticomunista, chantagista, corrupto e racista. Transformou o FBI em uma polícia política aos moldes da Gestapo. E perseguiu de forma impiedosa principalmente o movimento negro e lideranças como Malcolm X e Luther King. Mas também pessoas como John Lennon, por sua oposição à Guerra do Vietnã.

Na verdade, a série apenas mostra que alguém como Hoover pode servir perfeitamente tanto à democracia supremacista e elitista de Washington como à ditadura fascista de Berlim. Hipótese confirmada por cada ação assassina e covarde do aparelho de repressão ianque contra os não brancos.

O fato é que para uma parte considerável da população norte-americana, a vitória aliada sobre os nazistas fez pouca diferença. No lugar da suástica, a cruz em chamas.

Leia também: As cores que importam na tragédia capitalista

4 de junho de 2020

As ruas podem tornar o impossível inevitável

O inimigo sempre nos jogou nas ruas. Mas sempre tremeu ao nos ver nelas. O inimigo só nos quer nas ruas para nos explorar. O inimigo não nos quer nelas quando as tomamos com nossos protestos.

Entre as fileiras inimigas, por vezes, surgem divergências. Alguns diziam que aos escravizados devia ser proibida a diversão em seus terreiros. É neles que podiam ser coreografadas rebeliões e conjurações, afirmavam. Outros achavam útil a diversão. Elas distraíam de possíveis conspirações. E o povo irrompia nos terreiros para fazer uma coisa e outra. Dialeticamente.

A pandemia veio em boa hora, pensam alguns dos malditos: manterá o povo amedrontado. Deixem que venham, dizem outros deles: morrerá a quantidade necessária.

Para azar deles, nossos corpos são descartáveis individualmente, mas imprescindíveis coletivamente. Para o bem da saúde pública, descartáveis são eles.

Entre as fileiras aliadas também surgem divergências. Ir às ruas para sermos contaminados? Para cair em armadilhas fascistas? Para sermos vítimas da violência policial? Devemos deixar as ruas em paz?

Mas a paz jamais foi possível nas ruas. Sempre foram lugares de guerra. E não apenas em tempos de pandemia. Nos bairros pobres e na periferia, a morte pobre e não branca é epidêmica.

Deixar as ruas para quem? Para o inimigo, certamente. E para os muitos que já lá estão porque não têm como sobreviver a não ser nelas. E onde estão prontos a recebê-los os suicidas, homicidas e genocidas de verde e amarelo.

Confiar nas instituições? As instituições zombam das ruas até que sentem medo delas. Até que o que parecia impossível torna-se inevitável porque as ruas rugiram. Dialeticamente.

Leia também: Bolsonaro, governadores, prefeitos: uma aglomeração genocida

3 de junho de 2020

Ora, (direis) explorar as estrelas!

"Ora (direis) ouvir estrelas! Certo, / Perdeste o senso!", diz um famoso poema de Olavo Bilac.

Realmente, quem daria ouvidos às estrelas quando no rés-do-chão do planeta tanta gente morre e muitas ameaças assombram? Não só a pandemia, mas os problemas ambientais, a enorme desigualdade social e vários loucos à frente de governos pelo mundo.

Bom, o noticiário arranjou espaço para falar do lançamento da Demo-2, que decolou em 30/05/2020 rumo à Estação Espacial Internacional. A novidade é que a nave espacial é da SpaceX, primeira empresa privada a colocar pessoas em órbita.

A companhia foi contratada pela NASA para realizar a missão. Seu chefão é Elon Musk, também dono da Tesla e eleito pela ideologia neoliberal como um dos símbolos do empreendedorismo visionário e destemido.

Para entender melhor toda essa história não deixe de ler o artigo “O capitalismo ensaia sua distopia espacial”, de Alex Moraes, publicado no portal Outras Palavras. Nele você vai ficar sabendo que desde os anos 1960 houve algumas tentativas de estabelecer tratados internacionais que livrassem a exploração espacial da sanha do capitalismo por lucros.

Você também descobrirá que os projetos de Musk sempre contaram com muito dinheiro público. E que por trás da SpaceX está um modelo de exploração espacial tão selvagem como aquele que já vem destruindo a Terra há dois séculos.

Essa nova elite ultramoderna pretende habitar as galáxias, mas só consegue rastejar em meio aos animais mais peçonhentos já surgidos na natureza. Musk, por exemplo, apoia Donald Trump na sabotagem ao isolamento social contra a pandemia.

Diante de criaturas como essas, as estrelas só podem permanecer surdas.

Leia também: Bilionários do mundo preparam sua Arca de Noé

2 de junho de 2020

As cores que importam na tragédia capitalista

Em seu livro “Do fascismo ao populismo” Federico Finchelstein explica que o fascismo sempre foi um movimento “transnacional”. Exemplo óbvio foi o austríaco Hitler, que inspirou-se no italiano Mussolini para tomar o poder na Alemanha.

Mas o fascismo não é um fenômeno estritamente europeu. Sempre houve fascistas por todo o planeta desde os anos 1920.

E nos vários países em que atuavam, eles adotavam cores como marca de sua identidade. Vestiam camisas verdes no Egito e no Brasil, prateadas na Síria e azuis na China, Portugal e Irlanda. Vestiam laranja na África do Sul, dourado no México, marrom na Alemanha e preto na Itália.

Todas essas variações dizem muito sobre as adaptações nacionais do que era claramente uma ideologia global, diz Finchelstein. Uma ideologia global porque a exploração insana do capitalismo dissemina injustiças e destruição por todo o planeta.

O fascismo é o mecanismo político de extermínio em massa que as classes dominantes acionam quando as contradições do capitalismo chegam a extremos que tornam impossível esconder seu caráter profundamente desumano.

Pelos mesmo motivos, a luta contra o capitalismo e seus cães de guarda fascistas também precisa ser internacionalista. Por isso, a pátria dos socialistas só pode ser a classe trabalhadora mundial.

A cor dos socialistas é o vermelho porque sempre que os trabalhadores foram convocados a defender suas pátrias, somente seu sangue acabava tingindo o pano das bandeiras que defendiam.

E em meio àquela que pode ser a pior crise da história humana, outra vez é o sangue dos explorados e humilhados que está sendo sacrificado. Principalmente, aquele derramado com o massacre de vidas pretas.

Leia também: Fascismo é antes de tudo violência e muita covardia

1 de junho de 2020

O grande capital e o governo Bolsonaro

“Investidores já normalizaram o caos no Brasil. Mas há fatores capazes de minar a confiança”. Esta frase resume matéria do site e-investidor do portal do Estadão, de 29/05/2020. O texto comenta um relatório do banco Goldman Sachs que “sacudiu o mercado brasileiro”.

Segundo a matéria, o banco transnacional estaria apostando:

...que o cenário institucional ruim não se converterá em péssimo ou trágico. Naturalmente, há uma grande dose de subjetividade entre o que é péssimo para alguns e razoável para outros. Nesse caso, a possibilidade de “comprar barato e vender caro” é a aposta dessa leitura do Goldman.

Há um grande debate na esquerda sobre a melhor tática para derrotar Bolsonaro. Formar frentes amplas, mesmo que incluam inimigos da classe trabalhadora ou buscar alianças classistas radicais, correndo o risco de enfraquecer a oposição ao governo?

Muitas vezes, essa discussão vem se restringindo a observar movimentações parlamentares e palacianas, sem levar em conta o comportamento do grande capital e suas frações.

A matéria citada acima é só um exemplo do tipo de informação a que devemos prestar atenção. Os atores políticos não representam a si mesmos, muito menos os “valores da democracia”. Sua margem de manobra depende daqueles que financiam seus mandatos.

Somente uma avaliação clara sobre o nível de apoio dos vários setores do grande capital em relação a Bolsonaro pode mostrar quais setores políticos estariam realmente dispostos a derrotar seu governo.

Apenas analisando concretamente os interesses das classes em conflito saberemos como impulsionar uma frente com a radicalidade necessária para derrubar Bolsonaro.

Do contrário, seremos nós a baratear a vida de dezenas de milhões de pessoas.

Leia também: A poderosa boiada de Bolsonaro já está passando