Há
muito tempo, se convencionou dizer que socialismo é sinônimo de ditadura. O
mesmo que trocar emprego, saúde, educação, por partido único, censura, pouca liberdade,
sindicatos controlados pelo Estado. O pior é que costumam invocar Marx, Engels
e Lênin para justificar tal entendimento. Principalmente, a ideia de “ditadura
do proletariado”, que os três revolucionários defenderam. No entanto, nenhum deles
usou este conceito com o significado de regime autoritário.
Para começar, é preciso lembrar o que significa o Estado para os marxistas.
Antes de Marx e Engels, praticamente todos os teóricos políticos clássicos viam
o Estado como um elemento imprescindível. Mesmo para os que desgostavam de sua
existência, era um mal necessário. Portanto, fazia sentido ficar discutindo se
uma forma de governo ou regime era melhor que outra, qual era mais justa, qual
era mais injusta etc.
O Estado como necessidade social
A formulação de Engels e Marx partia de uma ideia oposta. O Estado surgiu como
uma necessidade social, sim. Mas essa necessidade tinha como raiz a dominação
de uma parte da sociedade sobre a outra. Ou seja, foi produto da da divisão da sociedade em classes. Da separação entre quem trabalha e quem administra. Quem pensa
e quem executa. Quem é explorado e quem explora. Mas essa situação foi criada
na medida em que a produção de bens da comunidade aumentou de tal maneira, que
permitiu que a divisão de trabalho beneficiasse mais uns do que outros.
O que era apenas uma função administrativa tornou-se uma função política. O
crescimento da produção, por exemplo, permitiu que alguns se afastassem do
trabalho direto e se dedicassem ao controle e administração do que era
produzido. Isso também levou a que uma parte da sociedade adquirisse poder
suficiente para dominar o restante. Os mecanismos de controle podiam ser tanto
o domínio da escrita e da aritmética, como a formação de uma força militar.
Esta última pode ter surgido sob o pretexto de defender os estoques de bens da
comunidade. Mas logo essa proteção estendeu-se para os próprios guardiões dos
bens. Estava formado o Estado, com um corpo de funcionários e um corpo militar.
A partir daí esse corpo também monopolizaria as funções de fazer leis e julgar
quem as descumpre. Na verdade, todas essas funções já eram desempenhadas pelo
conjunto da comunidade. O Estado surge do monopólio que uma parte da sociedade
consegue estabelecer no desempenho dessas funções.
O que acabamos de descrever é um resumo muito rápido de elementos presentes no
livro “A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado”, de Engels,
publicado em 1884. Trata-se da ideia de que o Estado é um instrumento de
dominação. Portanto, diferente de Platão, Aristóteles, Kant, Hegel e outros
pensadores, o Estado era para Marx e Engels um elemento negativo. Não adiantava
ficar discutindo formas de governo, se o essencial era seu caráter de dominação
social em qualquer de suas manifestações.
Que o Estado é um instrumento de dominação. Que é algo que deve desaparecer.
Com tudo isso, os anarquistas, em geral, também concordam. Mas, em geral, eles
enxergam no Estado a origem da dominação e não um sintoma de uma doença. Acham
que eliminando o sintoma, a doença desaparecerá. Mas a origem da doença está
nas relações sociais. A existência do Estado é o resultado do desenvolvimento
das relações sociais e do crescente domínio do ser humano sobre as forças da
natureza. E somente o próprio desenvolvimento das relações sociais será capaz
de dar uma resposta a essa situação.
Por isso, a fase de transição entre o Estado burguês e a sociedade sem classes
não é só um pretexto para que alguns continuem a governar. Ao contrário, a
causa maior da existência do Estado precisa desaparecer, antes que ele mesmo
desapareça. As classes devem desaparecer para que o Estado já não tenha mais
razão para existir. E isso exige a fase de transição a que Lênin chamou de
socialismo.
Ditadura como conteúdo de classe, não
como forma de governo
Do ponto de vista político, Marx e Engels chamaram essa fase de “ditadura do
proletariado”. Ou seja, ditadura dos trabalhadores. O problema é que muita
gente identifica a palavra “ditadura” com fim das liberdades, censura, tortura
e morte. E tem razão. No século 20, é assim que ficaram conhecidos regimes como
os de Stalin, Mussolini, Hitler, Pinochet, os governos militares no Brasil e na
Argentina etc. Mas a palavra ditadura já teve muitos sentidos ao longo da
história. Na Roma Antiga, por exemplo, era uma forma prevista na constituição
política. Um ditador poderia ser nomeado em um estado de emergência, numa
guerra ou numa revolta contra o as instituições e assim por diante. De fato, o
que entendemos por “ditadura”, hoje, era chamado de “despotismo” ou “tirania”,
antigamente.
De qualquer maneira, quando Marx e Engels começaram a usar a palavra ditadura
eles se referiam à dominação burguesa em geral. Não estavam falando sobre a
forma de governo, mas sobre o conteúdo de classe. Deste ponto de vista, o parlamentarismo
inglês, o presidencialismo estadunidense ou a ditadura paraguaia eram a mesma
coisa. Todas elas eram formas assumidas pela dominação burguesa. Por outro
lado, isso significa que ditadura do proletariado não é o mesmo que fim das
liberdades, censura, prisão e fuzilamentos. Quando Marx falava de ditadura do
proletariado, falava sobre quem mandava. Ou seja, os trabalhadores. Não falava
sobre como deveriam mandar. Essa resposta, ele não tinha pronta e acabada.
Tanto Marx quanto Engels sempre deram poucas indicações a respeito da
organização de um futuro Estado dos trabalhadores. Não gostavam de bancar os
profetas. Mas quando surgiu a Comuna de Paris, em 1871, adotaram-na como modelo
de ditadura do proletariado. Em seu livro “O Partido e a Internacional”, de
1875, Marx e Engels afirmaram: “Querem saber em que consiste essa ditadura [do
proletariado]? Olhem para a Comuna de Paris.” E o que é que eles admiravam
tanto nessa experiência de governo popular que durou apenas 72 dias? Em seu
livro “Guerra Civil na França”, Marx destaca as características da Comuna que
aprovava. Entre elas:
- Eleições de todos os seus membros por voto direto e universal, incluindo as
mulheres;
- Todos os representantes eleitos são
passíveis de responsabilização e seus mandatos são revogáveis a qualquer
momento;
- Salários de trabalhadores para todos
os funcionários e deputados;
- Polícia sob controle da Comuna;
- Todos os juízes são eleitos, sujeitos
à punição e seus mandatos são revogáveis a qualquer momento;
- A Comuna é um corpo de trabalhadores,
não parlamentar, sendo executivo e legislativo ao mesmo tempo e Abolição do
exército permanente e do funcionalismo público permanente.
Ou seja, trata-se de uma república democrática. Não uma república democrática
burguesa, mas uma república democrática em que a classe dominante seria a
classe trabalhadora. Não se trata de negar as liberdades burguesas, mas de
mostrar como elas são apenas formais. De cumprir as promessas de liberdade da
burguesia através da democracia operária, com a classe trabalhadora no poder,
controlando as instituições.
A cozinheira que pode ser estadista
Tudo isso significa ir tirando as funções do Estado e transferindo-as para a
comunidade. Aquela mesma comunidade que perdeu o direito de governar a si mesma
há milhares de anos. Lênin dedicou um capítulo de “Estado e Revolução” a
comentar as páginas de Marx sobre a Comuna de Paris. Segundo ele, trata-se de
uma democracia “exercida integral e coerentemente”, de modo a transformar a
“democracia burguesa” em “democracia proletária”, e a mudar o “Estado”,
entendido como força especial para a repressão de uma classe determinada, em
“algo que não é mais exatamente o Estado”. Daí o famoso exemplo que Lênin usou,
de que numa sociedade assim, até uma cozinheira poderia desempenhar funções de
estadista. Também foi nesse livro que Lênin disse que “a transição do
capitalismo para o comunismo, sem dúvida, não pode deixar de produzir grande
número e variedade de formas políticas”, mas “sua essência será inevitavelmente
uma só: a ditadura do proletariado”.
Como sabemos, não foi nada disso que aconteceu na ex-União Soviética. O Estado
se fortaleceu ao invés de desaparecer. A sociedade foi esmagada pelo peso de
corpo burocrático estatal. A censura, a repressão, a exploração e a opressão
permaneceram e se fortaleceram. Alguém poderia alegar que a o risco de que isso
acontecesse já estava implícita na admissão leninista de que o socialismo comportaria
uma “variedade de formas políticas”. O “socialismo” ditador seria apenas a
forma política que acabou prevalecendo. E qualquer tentativa de fazer o mesmo
em qualquer outro lugar e época acabaria necessariamente da mesma forma. Viva o
capitalismo, então! Ou, pelo menos, viva a socialdemocracia!
Não é bem assim. É importante lembrar que a base da dominação burguesa é a
exploração capitalista. É econômica. Portanto, se depois de destruído o Estado
burguês, a exploração econômica continuar a se fortalecer, o novo Estado irá se
transformar um outro instrumento de dominação. Por isso, é fundamental que o
novo Estado surgido da destruição do antigo inicie imediatamente mudanças
econômicas no sentido de mudar as relações econômicas. É preciso inverter a
relação. A política precisa começar a mandar na economia. O controle social dos
trabalhadores tem que mandar na produção.
O problema é que na União Soviética isso não chegou a acontecer. Socialização
começou a ser entendida como estatização da indústria, da agricultura, do
comércio e dos bancos. Na verdade, isso transformou aqueles que controlavam o
novo Estado em novos exploradores. A economia continuou a mandar na sociedade.
E, desta vez, não eram os burgueses tradicionais, mas uma nova camada dirigente
que se beneficiava da exploração e do domínio sobre a sociedade. Não se
tratava, portanto, de socialismo, mas de uma forma específica de capitalismo,
com outro tipo de dominação. Era que alguns setores da esquerda chama de
Capitalismo de Estado Burocrático.
O fato é que socialismo não é o mesmo que estatização. É sinônimo de controle
democrático dos trabalhadores sobre a estrutura produtiva. Nesse caso, a
experiência cooperativista é importante. No capitalismo, as cooperativas tendem
a falir ou a se tornar empresas disfarçadas. Isso acontece devido à pressão da
concorrência dos empresários privados. Numa sociedade em que existem apenas
empresas socializadas, essa pressão desaparece. Claro que para isso é preciso
que a socialização seja feita em nível mundial. Do contrário, a concorrência
virá de empresas de outros países, que permanecem capitalistas. É por isso que
a ideia stalinista de que é possível existir socialismo em um só país, ou em
alguns deles, é só uma forma de esconder a continuidade da exploração e da
repressão sobre a classe trabalhadora. A contrarrevolução stalinista começou
pelo controle do aparelho partidário-estatal, mas ela se consolidou
efetivamente com o Primeiro Plano Quinquenal, quando se coloca em marcha o
processo de acumulação de capital.
Desfecho da Revolução Russa afetou todos
as outras revoluções
Como a revolução mundial não aconteceu, a União Soviética viu-se cercada e quem
estava no poder aproveitou para manter e ampliar as relações de exploração.
Aprofundar a industrialização, explorar os camponeses retomar o
conservadorismo. O machismo, a perseguição a homossexuais, o racismo, o
antissemitismo voltaram com tudo. Foi até criado um novo nacionalismo baseado
no amor à pátria socialista. Além disso, Lênin, Trotsky e outros revolucionários
também cometeram erros que colaboraram para o desastroso resultado final do
processo revolucionário que começou em 1905, na Rússia. Mas erros serão sempre
cometidos. O problema é as consequências menores ou maiores que eles acarretam.
E isso só é possível medir conforme as condições objetivas. Na medida em que
elas se tornam mais adversas, as consequências dos erros se ampliam e podem se
transformar em verdadeiras tragédias.
De qualquer maneira, as lições que temos que tirar desse processo não podem abrir
mão de contribuições como as de Antônio Gramsci, Rosa Luxemburgo e outros
teóricos revolucionários. Rosa alertou para o autoritarismo que o livro “O que
fazer” (1902), de Lênin, trazia implícito. Apesar de Lênin afirmar que seu
livro já estava superado, os stalinistas utilizaram a obra para impor sua
própria versão do autoritarismo estatal. Por outro lado, Gramsci mostrou como a
tática dos revolucionários russos era limitada em países com instituições
políticas e sociais mais desenvolvidas. Diferente da Rússia do início do
século, as sociedades europeias ocidentais contavam, por exemplo, com
parlamentos fortes, algumas liberdades democráticas, altos níveis de
sindicalização, imprensa atuante e ampla rede escolar. Desse modo,
multiplicavam-se os instrumentos de dominação da burguesia.
Ao mesmo tempo, o desfecho da Revolução Russa afetou o destino dos processos
revolucionários posteriores. Afinal quando a primeira revolução socialista
aconteceu, nenhum Estado apareceu para apoiá-la. Mas isso mudou quando a União
Soviética passou a se comportar como um Estado. Aí, as rupturas revolucionárias
em outros países passaram a fazer parte da disputa geopolítica entre o poder
soviético e as potências imperialistas tradicionais. A pressão para que outros
processos revolucionários também se burocratizassem e se tornassem regimes com
pouca liberdade aumentou. Os novos “Estados Socialistas” autoritários surgidos
na China, Iugoslávia, Cuba, Vietnã são alguns dos exemplos desse tipo de
pressão. Isso sem falar nos “socialismos” criados por decreto na Europa do
Leste.
Lutar por reformas, mostrando seus
limites
Voltando à questão das formas de governo, Lênin já dissera que não é
indiferente aos socialistas que o domínio burguês tome a forma de uma ditadura
(agora, falando no atual sentido da palavra) ou de uma democracia burguesa. Sob
uma ditadura, as condições para a luta ficam muito piores. Os socialistas
precisam se esconder na clandestinidade, não podem fazer propaganda aberta, são
presos, torturados, mortos etc. Por isso, a luta por liberdades democráticas é
fundamental. Mas no ocidente, muitas dessas liberdades eram maiores do que na
Rússia. E isso faz muita diferença porque junto com elas vêm as ilusões de que
é possível mudar o sistema por dentro. Através de reformas graduais.
Claro que lutar por reformas é muito importante. É uma forma de a classe se
convencer de que ela é capaz de arrancar conquistas com sua ação organizada.
Mas o avanço das lutas dos trabalhadores tem que ir mostrando os limites dessas
conquistas. Afinal, por mais avançadas que sejam as conquistas alcançadas, o
poder político continua nas mãos da burguesia. O Estado continua monopolizando
o poder de esmagar a classe trabalhadora e anular as conquistas, assim que o
equilíbrio de forças permitir. É o que aconteceu na Europa, com várias
conquistas e direitos desaparecendo durante a ofensiva neoliberal a partir dos
anos 1980.
Assim, a luta por reformas precisa apontar também para seus próprios limites.
Mostrar que direitos e avanços sociais somente se tornarão permanentes com a
destruição do atual Estado. Com sua substituição pelo governo dos
trabalhadores, ou pela “ditadura do proletariado”, como dizia Marx.
Tudo isso significa que qualquer participação dos socialistas nas instituições
democráticas da burguesia deve ser subordinada a um objetivo maior. Por mais
votos que os socialistas consigam para ocupar um parlamento ou um governo
burguês, eles jamais conseguirão modificá-los. É uma ilusão pensar que os
socialistas podem modificar o Estado burguês. É o Estado burguês que modifica
os socialistas. Por isso, a participação nas eleições é muito importante, mas
não é o objetivo de um partido socialista. É apenas um dos meios para dar fim
ao Estado. Em última instância, a qualquer Estado.
Sérgio Domingues - Abril de 2006
Referências Bibliográficas:
Bobbio, Norberto: A teoria das Formas de Governo - Editora UNB – 10ª edição –
1976.
Cliff,
Toni: State Capitalism in Russia -
http://www.marxists.org/archive/cliff/works/1955/statecap/
Draper, Hal: Karl Marx's Theory of Revolution, - Vol. 3 – Dictatorship of the
proletariat - (Monthly Review Press – Londres – 1986)
_________: Karl Marx's Theory of Revolution. Vol 2 - The Politics of Social
Classes - (Monthly Review Press – Londres – 1986)
Engels, Friedrich: A Origem da Família, da
Propriedade Privada e do Estado - http://www.moreira.pro.br/textose37.htm
Luxemburg, Rosa: Reform or Revolution -
http://www.marxists.org/archive/luxemburg/1900/reform-revolution/index.htma
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