O
governo recém empossado por um golpe parlamentar tem anunciado propostas
envolvendo alterações no FGTS e na Previdência Social. No primeiro, a ideia
seria aumentar os rendimentos dos recursos do Fundo de Garantia para os
trabalhadores. Na Previdência, entre outras medidas, a intenção é aumentar a
idade mínima para a aposentadoria e igualar o tempo para a aposentadoria entre
mulheres e homens. Tudo isso devido a um suposto déficit nas contas do INSS.
Por
trás do palavreado com pretensões de objetividade técnica, estão interesses
poderosos. Em ambas as questões estão em jogo não apenas direitos e conquistas
dos trabalhadores, mas o controle de enormes recursos financeiros.
O
patrimônio total do FGTS passa dos 470 bilhões e é administrado pela Caixa
Econômica Federal. Os defensores das mudanças alegam que os recursos dos
trabalhadores têm uma remuneração muito baixa se comparada a outras aplicações
financeiras. Caso sua administração passasse a ser feita pelas instituições do
mercado, a disputa pelos recursos elevaria os rendimentos oferecidos.
A
argumentação tem lógica. Mas não aquela que interessa à maioria da sociedade. Os
recursos do FGTS não existem apenas para formar um “pé-de-meia” para ajudar o
trabalhador demitido a sobreviver até sua reentrada no mercado de trabalho. Eles
também são muito importantes para o financiamento de programas de habitação
popular, saneamento básico e infraestrutura urbana.
É
verdade que essas funções estão longe de ser desempenhadas adequadamente pelos
administradores do FGTS a desvios de finalidade, corrupção, má gestão etc. Mas
entregar sua gestão a corporações do mercado dificilmente resolverá esses
problemas. Ao contrário, deve agravá-los. Abrir mão da administração pública do
Fundo significa entregar enormes recursos financeiros a especuladores sem
nenhuma chance de estabelecer sobre eles um controle confiável, muito menos
democratizado e socialmente justo.
Aquilo
que deveria ser gerido pela sociedade através de mecanismos participativos e
empregado para diminuir as desigualdades sociais, passa a ser objeto de
negociações individualizadas entre trabalhadores e fundos privados controlados
por especuladores, com enormes riscos para os primeiros.
O
caso da Previdência Social é parecido. O grande argumento em favor da restrição
de vários de seus direitos seria um déficit em suas contas. Uma das principais causas
desse “rombo” seria o aumento da expectativa de vida da população, que
comparado à menor proporção de jovens no mercado de trabalho tornaria
insustentável a situação contábil do INSS. Mas não é nada disso.
Segundo
a economista Denise Gentil, professora da UFRJ, a receita bruta da previdência
em 2014 foi de R$ 349 bilhões para pagar R$ 394 bilhões em benefícios. Mas
quando se incluem os mais de R$ 310 bilhões arrecadados da CSLL, Cofins e
PIS-Pasep, o orçamento chega a R$ 686 bilhões. E o déficit vira superávit com
folga (1).
Quanto
ao aumento da expectativa de vida, os “reformistas” alegam que esse fenômeno
causa problemas para custear a aposentadoria por tempo de contribuição. Ocorre
que dos 32 milhões de benefícios do INSS, apenas 16% estão nessa modalidade. Resultado,
aliás, do alto índice de informalidade do mercado de trabalho (1).
Outro
dado muito utilizado é a idade em que se dão as aposentadorias. Segundo dados
do governo, a média seria de 55 anos de idade. Parece cedo, mas o que quase não
se discute é o fato de que a grande maioria não se aposenta para descansar. A
grande maioria continua a trabalhar e as aposentadorias servem apenas como um
reforço na renda familiar.
Além
disso, como afirma Sara Granemann (1), professora da Escola de Serviço Social
da UFRJ:
O
aumento da expectativa de vida é um feito da humanidade no século 20. Se elevar
para todo mundo a aposentadoria para 65 anos, por exemplo, você terá pessoas se
aposentando a menos de dez anos da morte.
Já
Vilson Romero, presidente da Associação Nacional dos Fiscais da Previdência,
lembra que não há como estabelecer uma idade mínima para aposentadoria num país
“onde se morre aos 55 anos no campo e há quem viva até os 85, 90 anos no Rio
Grande do Sul” (1).
Ou
seja, o verdadeiro objetivo aqui é diminuir o acesso dos trabalhadores aos
benefícios para manter e aumentar o redirecionamento dos enormes recursos para fins
completamente alheios à missão da previdência social.
É
o que acontece, por exemplo, com a Desvinculação das Receitas da União (DRU).
Este mecanismo foi criado pelo governo Fernando Henrique para possibilitar que retira
20% das receitas de contribuições sociais destinadas às áreas de saúde,
assistência social e previdência social. Recentemente, o DRU passou a desviar
30%, inclusive com impulso inicial do governo Dilma, pouco antes do golpe.
E
para onde vão esses recursos? Principalmente, para pagar os juros da enorme e
ilegítima dívida pública brasileira. São mais de meio bilhão de reais
embolsados anualmente pela minoria rica e poderosa que detém a quase totalidade
dos papéis dessa dívida. É quase um orçamento inteiro da Previdência indo para
o bolso dos banqueiros e grandes empresários todos os anos.
Por
outro lado, com esse mecanismo sugando os recursos previdenciários, nem mesmo mais
cortes nos direitos dos trabalhadores poderiam equilibrar o sistema. É bem
possível que o próximo passo seria declará-lo inviável e propor sua
privatização, mantendo-se sob responsabilidade do Estado apenas os benefícios
para os mais pobres. Os trabalhadores de renda mais alta ficariam cobertos por
planos de previdência privados.
Desse
modo, seria rompido o princípio da solidariedade, cujo objetivo é fazer os
melhor remunerados ajudarem a viabilizar financeiramente aposentadorias e
benefícios para os de menor renda. A previdência pública se transformaria em um
sistema miserável para miseráveis. Já a previdência privada, seria uma
oportunidade de lucros abundantes para alguns e investimento de elevado risco
para muitos.
O
que realmente importa nas questões acima é o controle do que se costuma chamar
de fundo público. Segundo definição de Evilasio Salvador:
O
fundo público envolve toda a capacidade de mobilização de recursos que o Estado
tem para intervir na economia, além do próprio orçamento, as empresas estatais,
a política monetária comandada pelo Banco Central para socorrer as instituições
financeiras (...). No Brasil, os recursos do orçamento do Estado são expressos
na Lei Orçamentária Anual (LOA) aprovada pelo Congresso Nacional (2).
São
os pedaços deste grande bolo bilionário que os vários setores sociais disputam
quando se fala em verbas governamentais.
Como
diz Salvador, do ponto de vista estrutural, o fundo público costuma funcionar
como uma espécie de “acumulação primitiva” para os capitalistas. Ou seja, ele
pode ser utilizado pelo Estado para viabilizar a atividade produtiva, criando
as condições que os empresários não podem ou não querem explorar lucrativamente.
É
o caso da infraestrutura urbana, de transporte e de energia. Os recursos da
Previdência Social foram utilizados para a construção de Itaipu e da Ponte
Rio-Niterói. Dois exemplos do tipo de empreendimento que estava fora do alcance
da capacidade de investimento do capital privado.
As
verbas do FGTS serviram para a criação de habitações populares e investimento
em saneamento básico que teriam pouco retorno lucrativo para o mercado, mas
eram úteis para alojar os trabalhadores que vinham da zona rural para trabalhar
nas fábricas que começavam a se instalar no País.
Outro
exemplo é mais recente e menos grandioso, mas igualmente importante. Já sob os
governos petistas, a ampliação da base de benefícios no Regime Geral de
Previdência Social foi responsável pela injeção de R$ 257,2 bilhões na economia.
Este número refere-se ao ano de 2009 e ajudou a manter a continuidade do
consumo e impedir consequências ainda piores da crise mundial que começou em
2008.
Os
benefícios sociais e serviços públicos também representam salário indireto que
deixa de ser pago pelo patrão para serem arcados pelo conjunto da sociedade por
meio dos impostos que formam o fundo público.
No
caso brasileiro, no entanto esse financiamento é apropriado pelo setor privado
de modo ainda mais injusto. Elaine Rossetti Behring alerta para o fato de que
aqui o fundo público é “financiado de forma regressiva” (3). Isso acontece
porque nossa estrutura tributária incide principalmente sobre o consumo, colocando
nas costas dos mais pobres o maior peso pelo pagamento de impostos. Afinal, o tributo
pago na boca do caixa é o mesmo para quem vive de alguns salários mínimos e
para quem recebe dez vezes mais.
O
resultado é que os quase 80% da população brasileira que recebem até três
salários mínimos arcam com 53% da arrecadação tributária total. Enquanto isso,
quem recebe acima de 20 mínimos contribui com apenas 7,3% (4).
Ao
mesmo tempo, a tributação sobre a propriedade responde por 6% da arrecadação
brasileira. Metade do arrecadado em países como Estados Unidos e Reino Unido e
50% a menos que Argentina e França. Já os impostos sobre o consumo, chegam a
44% no Brasil, mais que o dobro da dos Estados Unidos (18%), e bem maior que a
do Reino Unido (30%) ou da França (25%) (5).
É
por isso que Behring diz que “a exploração da força de trabalho na produção é
acompanhada de uma espécie de exploração tributária”.
Só
por essa realidade, a administração dos fundos públicos já seria injusta ao
devolver muito pouco desses tributos na forma de serviços públicos verdadeiramente
dignos e realmente universais. Mas há algumas décadas, a injustiça só faz
aumentar.
Desde
os anos 1980, o capitalismo vive uma crise que vem sendo respondida com
políticas neoliberais. E uma das principais características dessa resposta é se
apropriar de recursos do fundo público para transformar grandes porções dele em
atividades lucrativas. Situação que só piorou desde o início da crise de 2008,
cujo fim não se vê no horizonte próximo.
O
pior é que se essa apropriação se concretizar tal como quer o grande capital,
dificilmente resultará em recuperação ou criação de empregos, muito menos do
valor da massa salarial. A tendência é se agravarem as condições de vida para a
maioria, enquanto os recursos do fundo público minguam, limitando ainda mais
sua capacidade de aliviar a situação dos mais pobres e mesmo de camadas médias
da população.
A
pilhagem promovida pelo grande capital dos recursos do fundo público pode
tornar-se, assim, um elemento importante para a consolidação de um cenário de
barbárie social.
A
resposta dos movimentos populares, sindicais e forças de esquerda só pode ser a
denúncia e a resistência a essa política de depredação dos recursos do fundo
público. É preciso desmascarar a ideia de que a crise dos sistemas públicos de
previdência, saúde, habitação, emprego, educação é uma questão contábil,
técnica, administrativa.
Temos
que desmentir quem afirma serem ideológicas as denúncias que revelam os
interesses por trás dos que pretendem privatizar a gestão e/ou o patrimônio
público. Abordar a administração do fundo público sob a ótica do mercado também
está carregado de ideologia. A ideologia baseada em valores que reservam o bem-estar
para alguns e a precariedade social para a grande maioria.
Além
disso, é preciso discutir um projeto para o fundo público realmente voltado
para os interesses da maioria da sociedade. Uma proposta que comece por democratizar
sua gestão e colocá-lo sob controle dos trabalhadores e da maioria da
população. Por impedir sua fragmentação para que se transforme em mecanismo efetivo
e de largo alcance na redistribuição de renda e patrimônio e, portanto, no
combate à injustiça social.
Um
projeto como este, aliado à construção uma economia baseada em meios de
produção cuja propriedade e gestão sejam socializados, pode fornecer bases
importantes para a construção de uma verdadeira sociedade socialista. Mas o
primeiro passo é reconhecer que a disputa pelos recursos do fundo público é uma
das questões centrais no momento atual da luta de classes.
Setembro
de 2016
Artigo publicado na revista do Departamento Intersindical de Estudos e Pesquisas de Saúde e dos Ambientes de Trabalho, edição 42, de fevereiro de 2017.
Referências:
1 - “Sobra dinheiro na previdência”, Revista Poli, da Escola Politécnica
de Saúde Joaquim Venâncio/Fiocruz, publicada em 18/07/2016.
2
- “Fundo público e políticas sociais na crise do capitalismo”, de Evilasio
Salvador - Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 104, p. 605-631, out./dez. 2010.
3
- “Sobre o Financiamento das Políticas Sociais no Brasil’, de Elaine Rossetti
Behring - Revista Conexão Geraes, nº 3, 2º semestre de 2013.
4
- InfoMoney, portal UOL, 14/08/2014: http://economia.uol.com.br/noticias/infomoney/2014/08/14/injusto-quem-recebe-ate-tres-salarios-minimos-e-quem-mais-paga-impostos-no-brasil.htm
(acessado em 10/09/2016).
5
- Portal de notícias da Câmara Federal,
em 31/07/2015: http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/ECONOMIA/492946-ARRECADACAO-TRIBUTARIA-SOBRE-PROPRIEDADE-NO-BRASIL-E-MENOR-QUE-SOBRE-O-CONSUMO.html
(acessado em 10/09/2016).
Nenhum comentário:
Postar um comentário