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Capitalismo e Pós-capitalismo: o novo por dentro do velho

O livro “Pós-Capitalismo: um guia para o nosso futuro”, de Paul Mason, foi publicado originalmente em 2015, mas a edição brasileira é de 2017, lançada pela Companhia das Letras. O objetivo da obra, diz o autor:

“... é explicar por que substituir o capitalismo não é mais um sonho utópico, além de esclarecer como as formas básicas de uma economia pós-capitalista podem ser encontradas no interior do sistema vigente e de que modo é possível expandi-las rapidamente”.

A teoria dos ciclos longos de Kondratiev

Mas para iniciar o desenvolvimento de sua hipótese, Mason lança mão da elaboração do economista russo Nikolai Kondratiev e sua teoria das ondas ou ciclos longos, exposta pela primeira vez em janeiro de 1926, no livro "As ondas longas da conjuntura".

Na teoria de Kondratiev, cada ciclo longo tem uma ascensão que dura cerca de 25 anos, alimentada pela implantação de novas tecnologias e alto investimento de capital. Haveria, em seguida, uma desaceleração pelo mesmo período aproximadamente, geralmente, terminando com uma depressão. Na fase ascendente, o capital flui para as indústrias produtivas. Na fase decadente, fica preso no sistema financeiro.

Da teoria de Kondratiev, seus adeptos deduziram cinco ciclos longos desde a Primeira Revolução Industrial, por volta de 1770, até o quinto, impulsionado pelas tecnologias de rede, comunicações móveis, um mercado verdadeiramente global e bens de informação. Mas este último, diferente dos outros, teria estagnado. E a razão pela qual ele estancou está relacionada com a própria tecnologia, mas também com o neoliberalismo, afirma Mason.

Em primeiro lugar, ciclos longos não são produzidos apenas por tecnologia mais economia. Há um terceiro fator crítico: a luta de classes. E é nesse aspecto que a teoria original da crise de Marx fornece uma compreensão melhor do que a teoria de Kondratiev, diz o autor.

Se a classe trabalhadora resiste ao ataque, o sistema é forçado a uma mutação mais fundamental, permitindo que um novo paradigma surja. Mas na quarta onda, vigente entre o Pós-Guerra e o início dos anos 1970, fica claro o que acontece quando os trabalhadores não conseguem resistir com sucesso. O problema, argumenta Mason, é que, a partir do final dos anos 1980, abre-se um período de derrota e de rendição moral do trabalho organizado.

Em todos os três ciclos anteriores, os trabalhadores resistiram à solução barata e desagradável para a crise - cortes salariais, desqualificação e redução do salário social. Na quarta onda, sua resistência teria falhado. Foi esse fracasso que permitiu que toda a economia global fosse reequilibrada em favor do capital.

Enquanto isso, a relação entre trabalho físico e informação mudou. O grande avanço tecnológico do início do século 21 não consiste no surgimento de novos objetos, mas em transformar os antigos em artefatos inteligentes. O conteúdo de conhecimento dos produtos está se tornando mais valioso do que os elementos físicos usados para produzi-los.

Segundo Mason, há um crescente corpo de evidências de que a tecnologia da informação, longe de criar uma forma nova e estável de capitalismo, o está dissolvendo: corroendo os mecanismos de mercado, erodindo os direitos de propriedade e destruindo a velha relação entre salários, trabalho e lucro.

O raciocínio é o seguinte. Uma vez que você pode copiar e colar algo, sua reprodução pode ser gratuita. Os “info-capitalistas” apresentaram uma solução para isso: tornar legalmente impossível copiar certos tipos de informação. Mas o fato é que qualquer que seja o expediente utilizado para proteger as informações, elas permanecem copiáveis e compartilháveis e a um custo insignificante.

Economistas convencionais presumem que os mercados promovem a concorrência perfeita e que imperfeições são sempre temporárias. Mas uma vez que a economia é composta de bens de informação compartilháveis, é a competição imperfeita que se torna a regra.

Com o “info-capitalismo”, um monopólio não é apenas uma tática inteligente para maximizar o lucro. É a única maneira de um ramo empresarial funcionar. Em setores tradicionais, há geralmente de quatro a seis grandes “players”. Mas a Google precisa ser a única empresa de busca. O Facebook, o único lugar para construir identidades online. O Twitter monopoliza a divulgação de opiniões. O iTunes é a única loja de música online.

Ao mesmo tempo, surgiram mecanismos não mercantis: ações descentralizadas de indivíduos, trabalhando por meio de formas de cooperativas e atividades voluntárias. A Wikipedia é o melhor exemplo. Se fosse administrada como um site comercial, a receita da Wikipedia poderia chegar a US $ 2,8 bilhões por ano. No entanto, a Wikipedia não dá lucro. E, ao fazer isso, torna-se quase impossível para qualquer outra iniciativa obter lucro no mesmo espaço.

A Wikipedia funciona em rede e permite organizar a produção de forma descentralizada e colaborativa, sem utilizar o mercado nem a hierarquia de gestão. E ainda assim utilizar o trabalho voluntário de 12 mil membros para produzir 26 milhões de páginas.

Mas se há alguém que previu claramente que a capacidade de criar preços se dissolveria caso as informações fossem distribuídas coletivamente e incorporadas em máquinas, foi Karl Marx, diz Mason.

O autor refere-se especificamente ao “Fragmento das Máquinas”, que faz parte dos “Grundrisse” (“Elementos fundamentais para a crítica da economia política”), escritos entre 1857 e 1858. Nesta passagem, Marx considera a possibilidade de que a evolução tecnológica venha a tornar o conhecimento uma força produtiva por si só, superando amplamente o trabalho real gasto na criação de uma máquina. Desse modo, a grande questão já não seria mais a que envolve a oposição salários versus lucros, mas quem controla o “poder do conhecimento”.

Mais do que isso, diz o autor, Marx imagina que em uma economia em que as máquinas fazem a maior parte do trabalho, em que o trabalho humano se resume a projetá-las, supervisioná-las e consertá-las, a natureza do conhecimento encerrado nelas só pode ser "social".

Mason usa um exemplo contemporâneo. Um desenvolvedor de software utiliza uma linguagem de programação para escrever o código. Cada camada do processo foi criada compartilhando informações, agrupando-as, ajustando o código e as interfaces.

Com a informação, parte do produto fica com o trabalhador de uma forma que não acontecia na era industrial. O registro deixado por cada interação com o site pode ser de propriedade integral de uma empresa. No entanto, é produzido socialmente.

No século XX, a esquerda via o planejamento do Estado como a rota de saída do capitalismo. Eles presumiram que as contradições internas do capitalismo residiam na natureza caótica do mercado.

O Fragmento marxiano de 1858, entretanto, dá indícios de que um modelo diferente de transição é possível: uma rota de saída do capitalismo baseada no conhecimento, em que a principal contradição é entre a tecnologia e os mecanismos de mercado.

O capitalismo entra em colapso porque não pode coexistir com o conhecimento compartilhado. Por que Marx não seguiu essa ideia mais amplamente? Porque em sua época, a socialização do conhecimento inerente ao telégrafo e à locomotiva a vapor não era suficiente para ameaçar as bases do capitalismo.

Está claro no “Fragmento” que Marx, pelo menos, imaginou informações produzidas socialmente sendo incorporadas às máquinas. Em suma, ele supôs algo próximo ao info-capitalismo em que vivemos, conclui o autor.

Os problemas da transição

A teoria do valor-trabalho é a única que permite modelar adequadamente onde começa e termina o valor em uma economia do conhecimento, diz Mason. É a única capaz de nos dizer como medir o valor em uma economia em que as máquinas podem ser construídas gratuitamente e durar para sempre.

Já o marginalismo, teoria favorita dos economistas do sistema, é uma teoria de preços e preços apenas. Desse modo, é incapaz de compreender um mundo de bens a preço zero, espaço econômico compartilhado, organizações não mercantis e produtos não proprietários.

Já a formulação teórica de Marx, prevê que a automação pode reduzir o trabalho necessário a quantidades tão pequenas que o trabalho se tornaria opcional. Coisas úteis que podem ser feitas com pequenas quantidades de trabalho humano provavelmente acabarão sendo gratuitas, compartilhadas e de propriedade comum.

No âmbito da info-tecnologia, você pode ter máquinas que não custam nada, duram para sempre e não quebram, afirma Mason. O software é uma máquina que, uma vez construída, durará infinitamente. Claro que pode se tornar obsoleto, mas o mundo está cheio de softwares antigos que podem funcionar para sempre desde que o hardware certo seja encontrado para executá-lo. Uma vez que o custo do projeto é pago, o dispêndio para a produção do software é reduzida ao custo da mídia na qual está armazenado ou flui: o disco rígido ou a rede de fibra.

Imprimir um milhão de transistores em um pedaço de silício caiu de um dólar para 6 centavos em dez anos. Quase no mesmo período, o custo de um gigabyte de armazenamento caiu de um dólar para 3 centavos. E o custo de uma conexão de banda larga de um megabit caiu de US$ 1.000 no ano 2000 para US$ 23 hoje.

Bits ocupam espaço na realidade: consomem eletricidade, liberam calor e têm de ser armazenados algures. A famosa nuvem do Google ocupa, na verdade, hectares de espaço de servidores com ar-condicionado.

A verdadeira maravilha da informação não é que seja imaterial, mas que erradique a necessidade de trabalho em uma escala incalculável. A nova informação produzida por um computador tem um valor de uso, ou utilidade, massivamente superior a suas partes componentes.

O autor destaca o seguinte trecho dos “Grundrisse”:

“Se as máquinas durassem para sempre, se não consistissem, elas mesmas, em material transitório que precisa ser reproduzido (...), então elas corresponderiam mais completamente à sua concepção”.

Segundo Mason, Marx não está falando aqui do imaterial, mas do material não transitório: isto é, algo que não se degrada. Máquinas nas quais partes do valor são inseridas gratuitamente pelo conhecimento social e pela ciência pública não são conceitos estranhos para a teoria do trabalho. Eles são fundamentais para isso. Mas se existissem em grande número, diz Marx no “Fragmento sobre as Máquinas”, elas explodiriam um sistema que tem por base os valores criados pelo trabalho humano.

O sujeito revolucionário

E aqui, Mason, chega à dimensão política de sua elaboração. Comecemos pela seguinte passagem:

“Aqueles que se mantêm apegados à ideia de que o proletariado é a única força capaz de impulsionar a sociedade para além do capitalismo estão ignorando dois traços fundamentais do mundo moderno: que a rota para o pós-capitalismo é diferente; e que o agente da mudança passou a ser, potencialmente, cada indivíduo sobre a terra” (pag. 235).

Se o capitalismo deve ter um começo, meio e fim, a história do trabalho organizado também deve ter. Ele sobreviverá em uma forma tão diferente que provavelmente se parecerá com outra coisa. Como sujeito histórico, está sendo substituído por uma população global diversificada cujo campo de batalha são todos os aspectos da sociedade - não apenas o trabalho - e cujo estilo de vida não é sobre solidariedade, mas impermanência.

Em “O que fazer?”, Lênin disse que o movimento operário teria de ser "desviado" de seus caminhos moderados espontâneos e em direção à tomada do poder. Isso está em total contradição com a compreensão de Marx da classe trabalhadora, afirma o autor. Para Marx, a classe trabalhadora era o próprio agente da história. Para Lênin, era mais como um reagente - precisando do catalisador do partido de vanguarda liderado por intelectuais para desencadear o processo histórico.

Lênin voltou à teoria da “aristocracia operária” de Engels, segundo a qual os trabalhadores qualificados seriam uma fonte de patriotismo e moderação contaminando o movimento operário.

Para Marx, a classe trabalhadora é capaz de se tornar comunista espontaneamente. Para Lênin, não. Para Marx, a habilidade está destinada a desaparecer por meio da automação. Para Lênin, o trabalhador qualificado na metrópole é o resultado permanente do colonialismo no exterior.

Mas essa formulação se mostrou superada a partir de 1920, quando ocorreram acontecimentos de proporções revolucionárias na Alemanha, Itália e Rússia, e pré-revolucionários na Grã-Bretanha, França e em alguns lugares dos Estados Unidos. Em cada um desses casos, as lutas foram lideradas pela chamada “aristocracia operária”.

A camada qualificada tinha, em outras palavras, consistentemente se movido para além do “sindicalismo puro”. Seu objetivo era o controle do local de trabalho e a criação de uma sociedade paralela dentro do capitalismo

Segundo Mason, Lênin estava certo ao dizer que o comunismo revolucionário não era a ideologia espontânea do proletariado. Mas ele não viu que a ideologia espontânea era sobre controle, solidariedade social, autoeducação e a criação de um mundo paralelo. Os trabalhadores queriam algo maior do que poder. Eles queriam controle. E o quarto longo ciclo iria, por um tempo, fornecer isso.

No final da década de 1970, foram os trabalhadores que realmente comandaram o processo de produção. Qualquer proposta para resolver problemas macroeconômicos sem seu consentimento era inútil. Em resposta, uma nova geração de políticos conservadores decidiu que todo o sistema teria que ser desmontado. O segundo choque do petróleo, após a revolução iraniana em 1979, deu-lhes a oportunidade. Desta vez, sob uma nova e profunda recessão, os trabalhadores enfrentaram empresários e políticos determinados a tentar algo novo: o desemprego em massa, fechamento de fábricas, cortes salariais e nos gastos públicos.

O conservadorismo absoluto da classe trabalhadora nunca foi embora: o que ela sempre desejou foi ordem e prosperidade, diz o autor. E no final dos anos 70, quando os trabalhadores já não podiam mais ver suas expectativas serem atendidas pelo modelo keynesiano, eles se renderam ao neoliberalismo.

Até que no mundo da crise pós-2008, um contrato permanente com um salário decente tornou-se um privilégio inatingível para muitas pessoas. Fazer parte do “precariado” tornou-se o mundo real para até um quarto da população mundial.

Enquanto isso, cada vez mais se confundiam as fronteiras entre trabalho e lazer, afirma Mason. Agora, o empregado precisa responder e-mails em casa, trabalhar durante as viagens de lazer, ficar de “sobreaviso”, preparado para trabalhar além da jornada para cumprir metas.

Com o surgimento da tecnologia da informação, a velha solidariedade - onde os laços de trabalho eram reforçados por uma comunidade socialmente coesa - existe muito mais esporadicamente do que em qualquer outro momento da história do capitalismo.

Mas nos últimos vinte anos, adverte Mason, o capitalismo reuniu uma nova força social que será seu coveiro, assim como reuniu o proletariado fabril no século XIX. Esta nova geração de pessoas em rede entende que está passando por uma terceira revolução industrial, mas começa a perceber por que ela estagnou.

A economia já está produzindo e reproduzindo um estilo de vida e uma consciência em rede, em desacordo com as hierarquias do capitalismo. O apetite por mudanças econômicas radicais é evidente. Segundo o autor, há um novo sujeito histórico. Não é apenas a classe trabalhadora com uma aparência diferente. É a humanidade em rede.

O Estado Wiki

Depois de tratar o pós-capitalismo como um processo que surge espontaneamente, Mason se propõe explicar o que um projeto pós-capitalista em grande escala pode envolver. É o que ele chamou de Projeto Zero, já que seus objetivos seriam um sistema de energia zero carbono; a produção de máquinas, produtos e serviços com custo marginal zero; e a redução do tempo de trabalho necessário o mais próximo possível de zero.

Não há como entrarmos nos detalhes desse projeto, mas a definição de Mason para o estado do pós-capitalismo ajuda a entender. Pela proposta dele, o estado pós-capitalista agiria como um staff da Wikipedia. Sua missão seria alimentar as novas formas econômicas até o ponto em que decolem e operem organicamente. Como na velha visão do comunismo, o estado deve “definhar”. Mas aqui o declínio de seu papel econômico deve estar em seu centro, não apenas nas funções de garantia da lei e da defesa.

Um governo que levasse a sério o pós-capitalismo daria um sinal claro: não haveria ação proativa das forças de mercado. Simplesmente por tentar isso, os esquerdistas relativamente convencionais do Syriza na Grécia foram abertamente sabotados.

A próxima ação que o estado pode empreender é remodelar os mercados para favorecer resultados sustentáveis, colaborativos e socialmente justos.

Projetos solidários, modelos de negócios colaborativos e atividades sem fins lucrativos. Uma das primeiras coisas a serem feitas seria abrir um espaço na selva capitalista para que essas novas plantas crescessem. O planejamento de infraestrutura continua sendo uma das disciplinas menos transformadas pelo pensamento em rede. Isso precisa mudar, afirma o autor.

Em resumo: sob um governo que abraçou o pós-capitalismo, o estado, o setor empresarial e as empresas públicas poderiam ser levados a buscar fins radicalmente diferentes. Uma mistura de governo e corporações altamente regulamentadas criaria apenas a estrutura do próximo sistema econômico, não sua substância.

O único setor onde seria imperativo suprimir completamente as forças do mercado, diz ele, é o de produção de energia. Para enfrentar as mudanças climáticas com ações urgentes, o estado deve assumir a propriedade e o controle da rede de distribuição de energia, além de todos os grandes fornecedores de energia baseados em carbono.

Seria preciso estatizar o banco central, que passaria a ter uma meta de sustentabilidade: todas as decisões seriam modeladas em relação aos seus impactos climáticos, demográficos e sociais. Seus chefes, é claro, seriam eleitos e supervisionados democraticamente.

Com energia e serviços bancários socializados, o objetivo a médio prazo seria manter um setor privado o mais amplo possível e mantê-lo aberto a uma gama diversificada e inovadora de empresas.

No projeto pós-capitalista, afirma Mason, a finalidade da renda básica é radical: (a) formalizar a separação entre trabalho e salários e (b) subsidiar a transição para uma semana, ou dia, ou vida mais curta de trabalho. O efeito seria socializar os custos da automação.

Os próprios salários seriam cada vez mais sociais - na forma de serviços prestados coletivamente - ou desapareceriam. Portanto, como uma medida pós-capitalista, a renda básica é o primeiro benefício na história cuja medida de sucesso é que ela encolhe até chegar a zero.

O info-capitalismo é baseado na assimetria: as corporações globais obtêm seu poder de mercado sabendo mais - mais do que seus clientes, fornecedores e pequenos concorrentes. O princípio simples por trás do pós-capitalismo deveria ser que a busca pela assimetria de informação é errada - exceto quando se trata de privacidade, anonimato e questões de segurança pública.

Nossa estratégia, conclui Mason, deve ser a de moldar o resultado do processo que começou espontaneamente de modo que se torne irreversível e forneça resultados socialmente justos o mais rápido possível. Isso envolverá uma mistura de planejamento, provisão estatal, mercados e produção cooperativa.

Precisamos ser utopistas desavergonhados, defende o autor. Os empresários mais eficazes do capitalismo inicial foram exatamente isso, assim como foram todos os pioneiros da libertação humana.

Observações críticas

A título de sumária avaliação crítica, importante destacar o rigor teórico do autor ao defender sua hipótese principal. Qual seja a de que a tecnologia da informação como força produtiva estaria colocando em xeque a capacidade de reprodução e adaptação do sistema capitalista. Ao fazer isso, Mason não só reafirma a teoria do valor-trabalho como a única capaz de dar conta dos mais recentes fenômenos do sistema do capital, como aponta formulações teóricas que Marx não chegou a desenvolver plenamente, mas que já teriam antecipado várias contradições presentes no capitalismo contemporâneo.

Há, sem dúvida, não poucos aspectos heterodoxos em relação à tradição marxista na elaboração de Mason. Mas muitos grandes nomes dessa tradição foram heterodoxos. Assim foi Lênin, ao defender a possibilidade de uma ruptura socialista em uma sociedade predominantemente camponesa como a da Rússia czarista. E o próprio Marx chegou a se declarar não marxista diante das apropriações dogmáticas que sua obra sofria.

Em primeiro lugar, Mason rompe com uma ideia relativamente consensual no interior do marxismo de que não há possibilidade de o socialismo surgir no interior do capitalismo. Segundo esse consenso, não seria possível a ocorrência do que aconteceu, por exemplo, na passagem do feudalismo ao capitalismo, quando as relações produtivas começaram a ser transformadas por dentro do velho modo de produção, com a burguesia ganhando força econômica, social e política até colocar os aparelhos de dominação a serviço de seus interesses.

Ao proletariado, defende a tradição marxista, este caminho não estaria disponível. Despojado da posse de meios de produção, lhe restaria apenas o caminho que passa pela tomada do poder político para, a partir dele, realizar as transformações econômicas necessárias para a transição socialista rumo ao comunismo.

Para Mason, haveria na estrutura produtiva atual processos em desenvolvimento que já são o pós-capitalismo em ação. Segundo ele, a produção colaborativa e o consumo compartilhado já não devem ser vistos apenas como mecanismos de sobrevivência ou válvulas de escape do mundo neoliberal, mas como “uma nova forma de viver em processo de formação”.

A questão é como garantir que tais processos não tenham o mesmo destino de outras experiências e iniciativas a partir de baixo, como as cooperativas. Ainda que tais iniciativas devam ser estimuladas e fortalecidas como embriões de formas alternativas de organização do trabalho e da produção, submetidas à lógica férrea da acumulação capitalista vêm se tornando empresas como quaisquer outras ou sobrevivem a duras penas nas franjas do sistema capitalista.

Outra importante contribuição da obra é o relevo dado à luta de classes como elemento fundamental e definidor em relação a processos contraditórios que se originam no terreno da produção e circulação das mercadorias. Nesse aspecto, Mason acerta ao considerar o peso da luta de classes como fundamental para a definição dos rumos tomados pela economia a cada desfecho dos ciclos de Kondratiev. No entanto, suas considerações sobre o papel do proletariado no processo de superação do capitalismo aparecem como o ponto mais frágil de sua formulação.

Para não falar em algumas sérias imprecisões na crítica que Mason faz sobre a concepção do que seria o proletariado para Marx, parece muito insuficiente conferir o papel de agente de transformação a “cada indivíduo sobre a terra” ou a uma genérica “humanidade em rede”.

É verdade que algumas das formulações presentes em “O que fazer”, de Lênin, foram superadas. Mas isso o próprio Lênin reconheceu, desencorajando a adoção de sua obra como manual político válido para todas as situações e lugares. Também é verdade que o conceito de “aristocracia operária” retomado por Lênin da obra de Engels mostra-se cada vez mais problemático. A própria revolução russa não seria possível se operários qualificados, um extrato extremamente minoritário dos trabalhadores russos, não assumissem sua vanguarda.

O problema é que Mason parece substituir a aristocratização do operariado por uma aristocratização mais ou menos uniforme do conjunto dos trabalhadores por meio de sua submissão à lógica das redes digitais. Se antes os mais qualificados transformaram-se em vanguarda da transformação, agora uma qualificação generalizada tornariam a massa dos explorados igualmente capaz de assumir o papel de agente transformador. Aparentemente, já não haveria vanguarda porque não haveria retaguarda.

Desse modo, falta na elaboração de Mason toda a complexidade que envolve identificar a quem pode caber o protagonismo histórico da luta dos explorados e oprimidos num mundo, sem dúvida, muito diferente daquele conhecido pelos fundadores do marxismo, mas, com certeza, ainda marcado pelos mesmos fundamentos. Algo que o autor reafirma ao lançar mão dos “Grundrisse” de Marx para basear grande parte de seu esforço teórico.

De qualquer maneira, o resumo acima não faz jus a toda a complexidade das teses defendidas por Paul Mason. Por isso, e pela importância dos temas abordados, a leitura integral da obra é importante para todos os que se propõem a debater sobre a criação de uma sociedade socialista e, principalmente, a lutar por sua concretização.

Janeiro de 2021

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