Doses maiores

Florestan contra a “democracia racial”

O papel de “A integração do negro na sociedade de classes” no desmonte da ideologia racial da classe dominante brasileira.

Sérgio Domingues – abril de 2008

Há dados e números suficientes sobre a situação social dos negros no Brasil para afirmar que a idéia de que vivemos uma “democracia racial” é falsa. Do ponto de vista dos estudos sobre o assunto, um dos maiores responsáveis pelo desmonte desse mito foi o sociólogo Florestan Fernandes (1920-1995). Sua obra mais importante sobre o tema é “A integração do negro na sociedade de classes”, publicada pela primeira vez em 1965. O mais interessante é que o trabalho é resultado de pesquisas feitas no início da década de 1950, sob patrocínio da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco). O objetivo do projeto era provar que podia haver convivência harmoniosa entre “raças” em uma sociedade nacional. O Brasil foi escolhido porque era conhecido como um país cujas relações raciais apresentavam essa característica. Tratava-se de um esforço para encontrar respostas para situações de conflito racial como as verificadas em países como Estados Unidos e África do Sul. Também era produto das perplexidades causadas pela recorrência de problemas raciais em vários pontos do mundo, apesar da derrota das ideologias estatais racistas na Segunda Guerra Mundial.

A cargo de acadêmicos como o próprio Florestan, Thales de Azevedo, Oracy Nogueira e L.A. Costa Pinto, tais estudos acabaram por chegar a conclusões opostas ao que esperavam seus patrocinadores. Ao contrário do que parecia, as pesquisas mostraram que o racismo no Brasil existe e causa sérios prejuízos a sua população negra. A diferença é que o racismo brasileiro se manifesta como “preconceito de cor”. Ou seja, a identificação entre negro ou mestiço e pobreza mascaram as barreiras que mantêm a população não-branca afastada das oportunidades de mobilidade social abertas pela sociedade capitalista.

Claro que, antes disso, alguns estudiosos tentaram combater o mito da “democracia racial”. Clóvis Moura e José Correia Leite foram alguns deles. Mas estavam isolados. Afinal, a Academia não existe para produzir qualquer tipo de idéia. Na grande maioria das vezes, só têm espaço as idéias que interessam à manutenção do poder da classe dominante. A exceção representada pelos estudos patrocinados pela Unesco deveu-se exatamente à intenção original de confirmar o mito da harmonia racial no país.

As pesquisas coordenadas por Florestan se voltaram para a sociedade urbana paulistana. Segundo o autor, São Paulo apresentava um nível de desenvolvimento econômico mais intenso, acelerado e homogêneo quando comparado a outras cidades do país. Nas palavras dele, na capital paulistana a “revolução burguesa se processou com maior vitalidade”.

Tal escolha tinha a ver com o fato de que o sociólogo paulistano considerava que a idéia de “democracia racial” somente poderia surgir após o fim da escravidão e com o surgimento de relações capitalistas de produção, incluindo um mercado para venda e compra de força-de-trabalho. Afinal, antes disso, não haveria como defender a ausência de discriminação racial na sociedade brasileira. Ou seja, o conceito de “democracia racial” seria fenômeno típico de uma sociedade em que o capitalismo se desenvolvia com vigor e prometia igualdade de oportunidades para todos, independente da cor da pele. Portanto, quaisquer desigualdades sociais seriam produto da própria sociedade capitalista, com seus mecanismos de competição. Daí, Florestan se referir à sociedade capitalista como “ordem social competitiva” ou “sociedade de classes”. Isto é, uma forma de organização social que permite a ascensão social, ao contrário das sociedades estamentais ou de castas, em que a possibilidade de mudar de classe social inexiste ou é muito pequena. Assim, ser negro não seria impedimento para a ascensão social.

As pesquisas e questionários feitos pela equipe de Florestan demonstram a força desse tipo de convicção. Quando perguntados sobre racismo, a maioria dos entrevistados respondia com frases como: “no Brasil não existe racismo. Se o negro tiver dinheiro, será tratado com o mesmo respeito que os brancos”. Ou “os negros são desrespeitados porque são pobres, não porque são negros”. Com isso, a existência de democracia social podia até ser questionada, mas não a de “democracia racial”.

Uma justificativa para esse tipo de conclusão seriam os exemplos de negros que alcançaram fama e prestígio social na história brasileira. Personalidades como Machado de Assis, Nilo Peçanha, Luiz Gama, André Rebouças, José Nunes Maurício Garcia e outros. Mas, o fato é que tais figuras importantes faziam parte do que Florestan chamou de “mecanismo da ‘exceção que confirma a regra’”. Uma forma que a ordem escravocrata encontrou para afirmar que aos negros que se qualificassem para freqüentar a sociedade “branca” não lhes seriam fechadas as portas. No entanto, esse mesmo mecanismo fazia com que o sucesso de um membro da “raça negra” não implicasse valorização do conjunto da população negra. Ao contrário, um negro de sucesso era a prova do que pode realizar o esforço individual. Mas, se esse mesmo negro incorresse em erro, apenas provaria as deficiências de sua origem racial.

Estas eram as regras que a convivência racial assumiu no Brasil durante a vigência da escravidão negra. Teoricamente, tais regras deveriam se modificar quando começou a vigorar a “ordem social competitiva”. Negros e brancos passariam a ser considerados igualmente qualificados para tentar o sucesso social através dos mecanismos de competição da sociedade de classes. Mesmo que as chances de sucesso fossem pequenas, não deveriam sê-lo por motivos outros que não a competência social e profissional. A exceção relacionada à cor da pele deveria desaparecer. O problema é que, segundo Florestan, “a modernização do sistema de relações sociais não afetou os padrões tradicionais de convivência racial”.

Ao mesmo tempo, a sobrevivência desses valores tradicionais manteve o contato cotidiano e informal entre brancos e negros, como se se tratasse de convivência entre iguais. A verdade é que tal familiaridade somente resiste enquanto o negro permanece em posição social que corresponde ao que os brancos pensam ser o lugar dele. O de motorista, garçom, porteiro, serviçal e subordinados em geral. Quando as possibilidades abertas pela sociedade capitalista, com seus mecanismos de competição, permitem a ascensão social de negros, o preconceito se manifesta. E isso ocorre de forma mais forte exatamente porque a ascensão social de não-brancos enfrenta gigantescas barreiras. Na melhor das hipóteses, a ascensão social é vista como feito individual, pessoal, e jamais causa alteração nos padrões discriminatórios dos brancos em relação ao restante da população negra. Esse estado de espírito se manifesta em frases como: “nem parece que é preto”. Por outro lado, qualquer sinal de erro ou falha por parte do “negro que subiu” é visto como a confirmação dos limites da “raça” a que pertence. Nesse momento, surge a explicação típica: “tinha que ser preto”. É quando o “preconceito de cor” se revela nitidamente.

Assim, estamos diante da idéia contraditória de que existe uma igualdade entre brancos e negros, mas esta tem que respeitar as restrições de uma hierarquia. Tal idéia se manifesta em diversas frases destacadas pelo estudo apresentado por Florestan. É o caso de: “não tenho nada contra pretos, mas eles têm que saber qual é seu lugar”. Ou de pesquisas que mostraram a enorme resistência de pessoas brancas em aceitar a entrada de negros ou negras em suas famílias através do casamento. E, ainda, da recusa de trabalhadores brancos em aceitar negros como seus superiores hierárquicos.

Portanto, tal como acontecia na sociedade escravocrata, mobilidade social não é igual à inexistência de preconceito. E a conquista de prestígio social por um negro não impede que continue a ser tratado como inferior. Como diz uma passagem da obra:

“O ‘branco’ acha que conquistado o prestígio social, o negro livra-se do ‘preconceito de cor’. O negro, ao contrário, diz que aí sim é que vê seu caminho bloqueado pelo ‘preconceito de cor’”.

O problema é que ao tomar consciência desse bloqueio, os negros se vêm diante de todo um sistema montado para inviabilizar sua denúncia. Aliás, esta é uma característica de toda ideologia de dominação eficiente. Citando Florestan:

“Numa sociedade em que o ‘preconceito de cor’ se manifesta de modo assistemático, dissimulado e confluente (...) remar contra a maré era uma tarefa ingrata, difícil e incerta. Antes de convencer o branco, o ‘negro’ tinha que convencer a si próprio e de vencer as resistências aninhadas no meio negro”.

Ou seja, se poucos negros podem “vencer”, estes descobrem que sua “vitória” não superou o “preconceito de cor”. E quando se dão conta disso, ainda têm que enfrentar as convicções de grande parte dos negros de que as dificuldades nada têm a ver com a cor de sua pele.

Nesse momento, aqueles que procuram denunciar a situação e construir formas de resistência social têm que enfrentar um duplo desafio. É como diz Florestan, “o negro não quer algo socialmente apenas, também quer se livrar de algo que existe socialmente”. Os lutadores da resistência negra precisam unir “o que os ‘brancos’ separam no pensamento, mas unificam no comportamento efetivo”, diz o autor. Trocando em miúdos, é como se os representantes do que Florestan chamou de “ideologia racial branca” fizessem um desafio aos que a denunciam: “provem que vocês são vítimas de preconceito de cor não para nós, brancos, mas para seu próprio povo”, diriam eles.

Esse tipo de armadilha mostra a eficiência do mito da “democracia racial”. Escancara a dimensão gigantesca da luta contra o racismo na sociedade brasileira. Como diz o autor:

“Onde os interesses e os liames das classes sociais poderiam unir as pessoas ou os grupos de pessoas fora e acima das diferenças de ‘raça’, [estas] dividem e opõem, condenando o ‘negro’ a um ostracismo invisível e destruindo, pela base, a consolidação da ordem social competitiva como ‘democracia racial’”.

Nesta passagem, fica evidente o papel fundamental da ideologia racista nacional. Dividir para dominar não é novidade em qualquer formação social de classe. Mas, fazer isso através de mecanismos de discriminação sobre uma das maiores populações negras do planeta é, sem dúvida, uma prova de grande capacidade para manter sua dominação.

E nesse ponto, o trabalho de Florestan dá uma contribuição fundamental para entendermos o papel central do mito da "democracia racial" no conjunto do sistema de dominação. Por que, afinal, o senso comum é levado a pensar que a desigualdade existente no nível social não acontece em termos raciais? Estamos falando da admissão de que a classe social a que pertence uma pessoa determina a forma como ela será tratada pela sociedade. Ser pobre ou rico, determinaria as chances de sofrer discriminação ou não. Por que tal conclusão é permitida, e até incentivada, a ponto de ser utilizada, ainda hoje, por conservadores como Ali Kamel e Arnaldo Jabor?

Dentre as respostas possíveis, a mais provável é a de que admitir a existência da desigualdade social é bem menos perigoso do que aceitar a vigência de discriminação racial. Negar esta última e admitir a primeira parece, portanto, um elemento importante na estrutura de dominação de classe no Brasil, uma vez que ela causa e reproduz divisões entre os setores sociais dominados. Faz com que as condições sociais inferiores em que vive a grande maioria da população negra seja entendida como algo que deve ser atribuído aos indivíduos e não à forma como o sistema funciona.

No limite, o senso comum educado pela "democracia racial", entende que os negros não estão bem posicionados socialmente porque lhes falta competência. Mas, se, ao contrário, os setores subalternos se unissem na luta contra o racismo como um dos pilares da dominação capitalista, poderiam questionar a própria dominação burguesa e não apenas aceitar a desigualdade social como uma conseqüência da competição capitalista com a qual precisamos nos conformar.

Para dar conta das condições que levaram a esse nível de competência da “ideologia racial branca”, Florestan explica:

“O preconceito não desapareceu nem na formação, nem na fase de consolidação e de expansão acelerada do regime de classes. (...) Perdeu as bases materiais e morais que o suportavam no Antigo Regime (...), mas ganhou outras bases materiais e morais, que permitiram sua persistência”.

E isso aconteceu porque a revolução burguesa no Brasil teria sido, segundo suas palavras, “um fenômeno do mundo dos brancos”.

Assim, a primeira fase da revolução burguesa – que vai da Abolição ao início da Segunda Guerra – responderia aos “interesses dos fazendeiros e imigrantes”. E sua segunda fase, “subordinou-se aos interesses da burguesia que se formou na primeira fase”. E nesta última, a sociedade de classes não assimilou os negros como força-de-trabalho. Ao contrário, a população negra foi substituída por trabalhadores europeus e asiáticos. A obra que estamos comentando afirma:

“Não se tratava de converter o escravo em trabalhador livre, mas de mudar a organização do trabalho para permitir a substituição do ‘negro’ pelo ‘branco’”.

Já na segunda fase da revolução burguesa a que o autor se refere, houve uma assimilação maior da força-de-trabalho negra pelo mercado de trabalho nacional. Isso aconteceu devido à eclosão da Segunda Guerra, que interrompeu o fornecimento de força-de-trabalho européia e, principalmente, obrigou a uma intensificação do desenvolvimento econômico que não poderia deixar o grande contingente de braços negros de lado. Mesmo assim, Florestan afirma, na época, tratar-se de “fenômeno recente”, que “ainda não se refletiu nas condições de vida dos negros”.

É por isso que “o ‘negro’ ainda está tentando conquistar uma situação de classe”, diz Florestan. Isto é, o trabalhador negro estaria tentando conquistar o direito de entrar na arena capitalista de exploração para competir com os proletários em geral.

Ao mesmo tempo, Florestan parece indicar que o desenvolvimento da “ordem social competitiva” seria suficiente para que fossem superados os mecanismos de discriminação racial. É o que se pode concluir da seguinte passagem:

“O desenvolvimento da ordem social competitiva encontra um obstáculo, está sendo barrada e sofre deformações estruturais na esfera das relações raciais. A correção dessa anomalia não interessa apenas aos agentes envolvidos, inclusive os negros, mas é primordial para o próprio equilíbrio do sistema.”

E ainda:

“A única fonte de influência corretiva irrefreável é a própria expansão da ordem social competitiva.”

Essas afirmações, talvez, sejam produto da influência de Max Weber sobre o pensamento de Florestan Fernandes. Tal idéia de desenvolvimento capitalista parece mais ligada ao conceito weberiano de “tipo ideal” do que às contradições que se apresentam em cada situação histórica concreta. Ou seja, o capitalismo brasileiro teria sofrido uma espécie de desvio em seu caminho devido à persistência da dominação racial. No entanto, parece-nos que o desenvolvimento capitalista local fez uso da discriminação racial para inventar um caminho próprio. Assim, “o desenvolvimento da ordem social competitiva” não encontrou “um obstáculo” na “esfera das relações raciais”. Na verdade, fez da dominação racial um pilar de seu desenvolvimento como totalidade econômica e política.

Mas, o autor da obra que comentamos sinalizou para a possibilidade de desdobramentos alternativos àqueles que considerou serem os mais prováveis. Alerta, por exemplo, para o risco de se viabilizar uma “conciliação entre as formas de desigualdade inerentes à sociedade de classes e os padrões herdados das desigualdades raciais”.

De fato, estudiosos como Carlos Hasenbalg e Nelson do Valle Silva viriam a comprovar mais tarde que o acelerado desenvolvimento econômico da década de 70 não ampliou as oportunidades da população não-branca na competição capitalista. O padrão de discriminação racial se manteve bastante visível nos índices altos de pobreza, analfabetismo, desemprego e indicadores sociais em geral para a população negra. E o caráter da discriminação racial como elemento constitutivo da acumulação capitalista nacional se aprofundou.

Ao encerrar “A integração do negro na sociedade de classes”, Florestan cita as palavras de Joaquim Nabuco quanto à necessidade de reconstruir “o Brasil sobre o trabalho livre e a união das raças na liberdade”. E conclui: “Enquanto não alcançarmos esse objetivo, não teremos uma democracia racial e, tampouco, uma democracia”.

Sem dúvida, a obra de Florestan é um importante marco na busca da democracia em geral. Uma busca que deixe para trás dualidades como “democracia racial” x democracia social. E que entenda democracia social como aquilo pelo qual Florestan sempre lutou: uma sociedade sem classes, sem dominadores e exploradores. Composta de pessoas livres e iguais, independente de cor, gênero, orientação sexual, crenças etc. Diferentes apenas em sua capacidade de desenvolver a infinita criatividade humana na construção de sua própria história.

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