Adelmo Genro Filho
costumava explicar a necessidade de adotar o centralismo democrático com uma
imagem didática. Trata-se de imaginar um grupo de pessoas que encontra uma
grande pedra impedindo que sigam seu caminho. Se cada pessoa empurrar a pedra
para um lado diferente, não vão conseguir movê-la. Será preciso que entrem num
acordo, primeiro. Discutam e decidam com que força, ferramentas e em que
direção o obstáculo deve ser afastado. Só depois disso, todas devem iniciar a
ação. Se ela se provar errada, voltam a discutir e fazem nova tentativa.
No caso de um partido
socialista, a pedra é a exploração da sociedade capitalista, que temos que
superar, destruindo seus pontos de apoio. O movimento unitário é necessário
porque os pontos de apoio da sociedade capitalista também são centralizados. Os
capitalistas concorrem entre si ferozmente. Disputam postos no poder político e
econômico de modo selvagem. Mas diante da menor ameaça a seus interesses.
Diante de qualquer risco para seus lucros, suas propriedades, seu poder
político, eles se unem. Esquecem suas diferenças e as ofensas que trocaram.
Voltam-se unidos contra a ameaça. Geralmente, representada pela luta dos
trabalhadores. E estes não podem se dar ao luxo de permanecer dispersos,
enquanto seu inimigo está unido e forte.
Mas as coisas não são
tão simples. Quem acompanhou a história do movimento socialista do século
passado sabe que o centralismo democrático está longe de ser consenso entre as
forças anticapitalistas.
Voltando a usar a
imagem da pedra, o problema surge quando a maioria faz força empurrando a
rocha, enquanto alguns ficam só olhando. Ou pior, sobem na pedra e ficam dando
ordens lá de cima: “Mais pra direita, mais pra esquerda”. “Tem que usar mais
força. Desse jeito, não vai dar”. Falam muito e não fazem nada. É o que a
tradição socialista costuma chamar de centralismo burocrático. Ou seja, alguns
conseguem se instalar em posições de comando. Em posições administrativas. Em
confortáveis gabinetes e escritórios. Dão ordens, escrevem tratados, fazem
teorias. Enviam tudo, lá de cima, para que a maioria, cá embaixo, execute. Está
errado, claro. Nenhum socialista honesto pode aceitar isso.
No entanto, como
evitar que o centralismo democrático se transforme em centralismo burocrático?
Afinal, aparentemente, na grande maioria dos casos em que o centralismo
democrático foi utilizado como forma de organização, ele se transformou em sua
versão burocrática. Daí, a justa desconfiança de muitos camaradas combativos e
de luta em relação ao centralismo.
O
que fazer com Lênin?
Comecemos pelo começo.
O primeiro a usar o conceito de centralismo foi Lênin. Mas, antes dele, o
conceito já funcionava de alguma forma. É o caso das regras da Liga Comunista e
do estatuto da Associação Internacional dos Trabalhadores, da época de Marx. Em
ambos, estava prevista a necessidade de que seus membros agissem de forma
unitária. Uma vez que uma tarefa fosse votada e decidida, todos deveriam agir
juntos para cumpri-la.
Mas há experiências
ainda mais antigas. Desde as primeiras ações sindicais, o centralismo também
estava presente de alguma forma. Numa assembleia, podem se apresentar posições
contrárias ou favoráveis a uma greve. Porém, uma vez decidido o início de uma
paralisação, todos devem fazer a greve. Quem não fizer, é traidor. É
fura-greve.
Isso acontece porque a
classe operária é dividida. Dividida em ramos de trabalho diferentes. Dividida
pela competição por um salário melhor. Dividida por preconceitos de cor, sexo,
religião. A isso, as forças socialistas precisam responder com unidade. Com
centralismo. Se não, não dá pra fazer nem uma greve.
A diferença é que
Lênin teorizou o centralismo democrático para um partido revolucionário. Uma
organização que pretende enfrentar radicalmente os exploradores. Preparada para
travar a batalha final. Não ficar no meio do caminho e ver a classe dominante
retomar terreno.
Em 1904, Lênin
escreveu algo que faz arrepiar os cabelos até de seus mais entusiasmados
seguidores. Criticando os mencheviques disse:
...a
ideia básica do camarada Martov... é [produto] justamente de seu “democratismo”.
A ideia da construção do partido de baixo para cima. Minha ideia, ao contrário,
é o “burocratismo”, no sentido de que o partido deve ser construído de cima
para baixo. Do congresso para a organização individual do partido."
(Lênin, Obras [em russo], VII, pp 365-366 – citado por Toni Cliff, em sua
biografia sobre Rosa Luxemburgo).
Assustador, sem
dúvida. Tais posições ficaram ainda mais famosas em “O que fazer?” e “Duas
táticas da socialdemocracia na revolução proletária”, também de Lênin. Mas o
revolucionário russo não era homem de posições congeladas.
Em 1905, nos debates
de preparação para o 3o congresso do partido, disse que seus pontos
de vistas organizativos não eram universais: "Em condições políticas de
liberdade, nosso partido pode e deve refazer inteiramente a regras...". É
que Lênin pensou aquelas regras para um momento em que as condições políticas
da Rússia eram as de uma ditadura terrível. Já não era mais o caso, após a
revolução de 1905.
E quando Rosa
Luxemburgo criticou sua concepção de centralismo aparecida em “O que fazer?”,
Lênin respondeu que se tratava de uma posição superada. Tanto assim que, em
1920, não gostou da notícia de que “O que fazer?” seria traduzido para outros
idiomas. Pediu para que a edição fosse acompanhada por comentários claros sobre
as condições em que o livro foi escrito.
Outro exemplo
aconteceu quando a 3a Internacional Comunista discutia seus
estatutos, em 1919. Lênin se opôs a propostas que considerava “muito russas” e
exageravam a centralização. Ele dizia que o excesso de centralização não se
adaptava às condições da Europa ocidental.
Como vimos, as
posições de Lênin mudaram. Mas na verdade, o centralismo democrático nunca foi
uma fórmula rígida. Sempre foi uma maneira de combinar ampla discussão com ação
unitária. Sempre levando em conta as condições concretas da realidade. Quando
isso se transformou em uma fórmula é que tornou-se centralismo burocrático. A
insistência na variedade de formas com que o centralismo democrático se
manifesta sempre esteve presente nas obras dos marxistas.
Trotsky,
Gramsci e a tentação de subir na rocha
Em sua obra “Sobre o
centralismo e o Regime”, Trotsky chama a atenção para o fato de que centralismo
e democracia nunca estão em uma proporção exata: “Quando o problema é a ação
política, o centralismo domina a democracia. A democracia retoma seu lugar
novamente quando o partido precisa examinar criticamente suas próprias ações. O
equilíbrio entre democracia e centralismo se estabelece na luta real. Às vezes,
este equilíbrio é violado e de novo restabelecido”.
Gramsci tratou do tema
da mesma forma. Em “O moderno príncipe”, ele deu o nome de “centralismo
orgânico” ao centralismo democrático. Vejam o que ele disse:
Esta
“organicidade” somente pode ser encontrada no centralismo democrático. Algo que
seria, por assim dizer, um “centralismo” em movimento. Ou seja, uma contínua
adaptação da organização ao movimento real. Um encontro dos impulsos vindos de
baixo com as ordens a partir de cima. Um contínuo bombeamento de elementos
vindos da base partidária para dentro da moldura sólida em que ficam as lideranças
e que assegura a permanente e regular acumulação de experiências. O centralismo
democrático é “orgânico” porque dá conta do movimento. E este não passa do modo
orgânico como a realidade histórica se revela e não se solidifica mecanicamente
na forma de burocracia. Ao mesmo tempo, dá conta daquilo que é relativamente
estável e permanente, ou que, pelo menos, se move em uma direção mais
facilmente previsível...
Sem dúvida, são visões
dinâmicas e dialéticas da organização partidária. Ainda assim, são legítimas as
preocupações de quem vê com desconfiança o centralismo democrático. Este texto
não tem a intenção de resolver esses dilemas. Ao contrário. Tudo o que foi dito
não deve servir para desculpar Lênin, Trotsky e outros por erros ou tragédias
que vieram a ser cometidos em nome do centralismo. Mas também não podemos
trancar o debate com a recusa de algo que não pode ser recusado: a busca de
formas de criar e manter a unidade dos trabalhadores em luta.
A verdade é que não há
como garantir isso de forma pura. Vivemos numa sociedade hierárquica, em que
alguns mandam e muitos obedecem. Alguns pensam, a maioria executa. Com o tempo,
essas diferenças somente se aprofundam. Exercem uma pressão constante e
esmagadora sobre uma organização que pretende ser o contrário disso. Obrigam a
que esta organização reaja de forma quase espelhada. Respondendo ao
autoritarismo burguês com o centralismo dos trabalhadores. À repressão deles
com nossa autodefesa. A ideias conservadoras e autoritárias com valores
revolucionários e libertários. Este espelho está sempre tentando distorcer a
luz autoritária que vem de fora. Transformá-la em imagens do que devem ser as
relações humanas. Nem sempre isso acontece. É uma luta dura, mas que precisa
ser feita.
Por mais que tenhamos
divergências, a rocha continua no meio do caminho. A pressão para que alguns
parem de empurrar a pedra e passem a dar ordens é grande. Se cederem à
tentação, aí, eles passam a fazer parte do problema e não da solução. Temos que
ficar atentos a isso. Nesse caso, quem está sobre a pedra tem que ser removido
junto com ela.
Sérgio Domingues
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