Doses maiores

O capitalismo e o fim do amor

Sob a égide da liberdade sexual, os relacionamentos heterossexuais assumiram a forma de um mercado – encontro direto entre ofertas e demandas emocionais e sexuais, fortemente mediado por objetos e espaços de consumo e pela tecnologia.

Os encontros sexuais organizados como um mercado são vividos tanto como escolha quanto como incerteza. Ao permitir que os próprios indivíduos negociem as condições de seu encontro com muito poucas regras ou proibições, essa forma de mercado cria uma insegurança cognitiva e emocional generalizada. O conceito de “mercado” não é aqui simplesmente uma metáfora econômica, mas é a forma social assumida por encontros sexuais que são impulsionados pela tecnologia da internete e pela cultura do consumo.

Nossa modernidade contemporânea hiperconectada parece ser marcada pela formação de vínculos indiretos ou negativos. Nessa modernidade em rede, a não formação de vínculos torna-se um fenômeno sociológico em si, uma categoria social e epistemológica por si só. Se a primeira e a alta modernidades foram marcadas pela luta por certas formas de sociabilidade onde o amor, a amizade, a sexualidade estariam livres de restrições morais e sociais, na modernidade em rede a experiência emocional parece escapar às classificações e relações herdadas de épocas onde os relacionamentos eram mais estáveis.

Os relacionamentos contemporâneos se encerram, se rompem, se desvanecem, se evaporam e seguem uma dinâmica de escolha positiva e negativa, que entrelaça laços e não-laços.

As palavras acima resumem a principal linha de argumentação do livro “The End of Love: A Sociology of Negative Relations”, de Eva Illouz. É sobre como o capitalismo transforma os sentimentos sociais. E como isso causa muito sofrimento.

Eva Illouz aborda um fenômeno contemporâneo bastante disseminado. Trata-se de relações emocionais e ligações amorosas frouxas, cuja aparente liberdade acaba se revelando uma fonte de instabilidade e sofrimento.

Mas a autora optou por concentrar sua pesquisa nas relações heterossexuais. É que ela entende que a homossexualidade não tende a traduzir gênero em diferença, nem diferença em desigualdade. Também não se baseia na divisão de gênero entre trabalho biológico e econômico que caracteriza a família heterossexual. 

Nesse sentido, diz ela, o estudo dos efeitos da liberdade sobre a heterossexualidade seria sociologicamente mais urgente por interagir com a estrutura ainda generalizada e poderosa da desigualdade de gênero. Desse modo, a chamada liberdade sexual torna a heterossexualidade repleta de contradições e crises. 

Além disso, porque a heterossexualidade foi estritamente regulamentada e codificada pelo sistema social como algo que supostamente levava ao casamento, a mudança para a liberdade emocional e sexual nos permite compreender de forma mais nítida o impacto da liberdade nas práticas sexuais e a contradição que tal liberdade pode ter criado com a instituição do casamento (ou da união estável) que permanece no cerne da heterossexualidade.

Em contraste, a homossexualidade era, até recentemente, uma forma social clandestina e de oposição. Por isso, foi definida como uma prática de liberdade, conflitante e oposta à instituição doméstica do casamento, que usa e aliena as mulheres e atribui aos homens papéis patriarcais.

Se durante a formação da modernidade, diz a autora, a luta era pelo direito a uma sexualidade livre de constrangimentos comunitários ou sociais, a modernidade tardia assume que a liberdade sexual e emocional é exercida incessantemente pelo direito de não se envolver ou se desligar de relações.

Um processo, afirma ela, que podemos chamar de "opção pela não opção": optar por sair de relacionamentos em qualquer estágio.

Hierarquia, controle e contrato eram elementos centrais para o capitalismo em seu período moderno. Eles se refletiram na visão do amor como uma relação contratual, livremente celebrada, regida por regras éticas de compromisso, produzindo benefícios óbvios e exigindo estratégias emocionais e investimentos de longo prazo.

Mas o capitalismo se transformou em uma rede global ramificada, com propriedade e controle dispersos. Surgiram novas formas de descompromisso, com horários flexíveis ou terceirização de mão de obra, fornecendo poucas redes de segurança social e quebrando laços de lealdade entre trabalhadores e locais de trabalho. Legislações e práticas trabalhistas diminuíram drasticamente o compromisso das empresas com seus empregados.

Na modernidade em rede, conclui Eva, assumem importância as maneiras pelas quais os laços se dissolvem e essa dissolução é considerada uma forma social em si mesma. 

Ou como já disseram dois revolucionários quase dois séculos atrás: “Tudo o que é sólido desmancha no ar”. Inclusive, e tristemente, as relações afetivas.

Eva afirma que durante o século 20 a sexualidade passou por grandes mudanças culturais que se alimentaram mutuamente: primeiro, foi privatizada e tornada prerrogativa do indivíduo. Depois, "cientificizada" por meio de visões biológicas do corpo e, portanto, arrancada da esfera da moralidade religiosa. Finalmente, o corpo sexual foi convertido em uma unidade hedonista explorada, principalmente, pela cultura do consumo.

A sexualidade tornou-se central na cultura comercial e visual popular, no estudo científico, na arte e literatura. Redefiniu o sentido da “boa vida” e tornou-se um atributo essencial do “eu saudável”, a ser libertado do jugo opressor das normas sociais.

Desse modo, tornou-se cada vez mais claro que agora cabia ao indivíduo moldar sua sexualidade para atingir o glamour, a atratividade, o bem-estar e a intimidade.

A sexualidade não era mais uma parte secreta da interioridade pessoal ou uma identidade vergonhosa a ser liberada na privacidade do consultório do psicanalista. Tornou-se uma performance visual, localizada em objetos de consumo visíveis ao invés de pensamentos e desejos.

Os encontros sexuais passam a acontecer cada vez mais em locais de lazer e se tornaram mercadoria obtida através de uma série de práticas de consumo (bares, danceterias, restaurantes, cafés, resorts, praias).

Isso tudo beneficiou quatro grandes indústrias. A indústria de serviços terapêutico-farmacológicos. A de brinquedos sexuais. O complexo industrial de publicidade e cinema. Finalmente, a indústria da pornografia, em que a sexualidade transformou-se em mercadoria a ser consumida para alcançar o bem-estar e o prazer.

Porém, como toda mercadoria no capitalismo, jamais tornou-se fonte de verdadeiro prazer, mas de reiteradas frustrações.

A autora cita a ativista feminista americana Susie Bright, que considera os anos 1990 como a época em que a sensualidade tornou-se universal no lugar da beleza, porque a sensualidade seria uma questão de estilo de roupa e marcas no corpo enquanto a beleza seria inata.

Para Susie, a sensualidade seria a plataforma cultural para consumo de bens concretos e padronizados (sutiãs, roupas íntimas, Viagra ou Botox), experienciais (cafés, bares para "solteiros" ou acampamentos de nudismo), ou mais intangíveis como aconselhamento terapêutico para melhorar a experiência e competência sexuais, produtos visuais (revistas femininas ou pornografia) e o que Eva chama de bens ambientais, os quais supostamente induzem uma atmosfera sexy.

Nesse sentido, afirma Eva, a mídia empresarial desempenhou um papel crucial ao reciclar uma versão parcial e distorcida do feminismo, em que a igualdade e a liberdade sexuais eram equivalentes ao poder de compra e à sexualidade em exibição. Os corpos das mulheres não eram mais o local da disciplina e controle masculinos diretos, mas da experiência e do exercício de sua agência por meio da liberdade do consumidor. A famosa série de TV “Sex and the City” exemplificou essa equação pós-feminista do poder exercido por mulheres através de uma sexualidade livremente mediada pelo mercado.

A autora fala em “capitalismo escópico”, definido pela extração de mais-valia via espetáculo e exibição visual dos corpos. Esse tipo de capitalismo seria a chave para entender como as mudanças sexuais andaram de mãos dadas com novos instrumentos de poder cultural implantados por empresas capitalistas.

“A imagem do corpo sexual foi intrínseca ao surgimento do que chamo de capitalismo escópico”, diz Eva. Tal capitalismo criaria um formidável valor econômico por meio da espetacularização dos corpos e da sexualidade, transformando-os em imagens que circulam em diferentes mercados. A dimensão visual faz do corpo um local de consumo, moldado por objetos de trocas comerciais. É convertido em um ativo na esfera produtiva do trabalho como uma imagem a ser vendida em diversas indústrias visuais.

A teoria feminista iluminou de maneira crucial o trabalho não remunerado das mulheres na formação e manutenção da máquina capitalista dentro da família. O capitalismo de consumo usa as mulheres de maneira diferente, por meio do trabalho performativo de produzir um corpo sexualmente atraente.

Na sociedade industrial, os homens exigiam que os corpos das mulheres estivessem à venda "apenas" por meio do casamento ou da prostituição. No capitalismo de consumo, a estrutura social e econômica que organiza a sexualidade é aquela na qual o corpo feminino já não é regulamentado pela família e passa por um processo generalizado de mercantilização que o faz circular em mercados ao mesmo tempo econômicos e sexuais, sexuais e matrimoniais.

Essa apropriação do corpo sexualizado feminino constitui uma expropriação de valor no sentido marxista: uma classe (homens) extrai valor do corpo de outra classe (mulheres). Isso, por sua vez, explica uma característica paradoxal da existência social da mulher contemporânea: enquanto o feminismo ganhou força e legitimidade, as mulheres foram redirecionadas para relações de dominação econômica por meio do corpo sexual.

Eva Illouz afirma que:

A escolha negativa é tão poderosa e presente na vida das pessoas na modernidade hiperconectada quanto foi, na formação da modernidade, a escolha positiva no sentido de formar laços e relações com outras pessoas.

Afinal, continua ela:

Se a expansão do capitalismo foi baseada no crescimento populacional e na família como a estrutura mediadora entre a economia e a sociedade, essa conexão está sendo cada vez mais desfeita pelas próprias novas formas de capitalismo. O capitalismo é uma máquina formidável de produzir bens, mas não é mais capaz de garantir as necessidades sociais de reprodução, levando ao que a filósofa Nancy Fraser chamou de “crise do cuidado”.

Sob a influência massiva de novas plataformas tecnológicas, essa "liberdade" teria criado agora um número tão grande de possibilidades que as condições emocionais e cognitivas para a escolha romântica foram radicalmente transformadas.

Um exemplo é o sucesso que fazem plataformas como o Facebook, que apresenta como uma de suas características mais importantes tanto a multiplicação das “amizades” quanto seu rápido rompimento. Outros exemplos são o Tinder ou o Match.com, sendo estes diretamente voltados para os encontros sexuais.

A era contemporânea demanda talvez outro tipo de sociologia, que foi provisoriamente chamada por Eva de “estudo da crise e da incerteza”.

Pensando nisso, ela conduziu entrevistas com 92 pessoas na França, Inglaterra, Alemanha, Israel e Estados Unidos, entre 19 a 70 anos de idade. Uma pesquisa atenta aos “praticantes dessa nova cultura do desamor”. Grande parte das conclusões da autora baseiam-se nesses dados.

Em lojas de um dólar, muitas vezes os clientes compram mesmo que não precisem de nada. Afinal, o custo de uma decisão errada é mínimo.

Essa atitude é comparada por Eva Illouz a muitos dos “contratos emocionais e sexuais” atuais, que são praticamente isentos de penalidades por sua rescisão.

Um dos exemplos é a prática do “gosthing”, diz ela. O conceito teria origem no famoso filme de 1990, estrelado por Demi Moore e Patrick Swayze. Passou a ser usado para se referir ao rompimento de um relacionamento romântico em que um dos parceiros corta todo o contato repentinamente e ignora tentativas de reconciliação. O ex-parceiro torna-se um fantasma.

“Ele me enviou um SMS dizendo que estava tudo acabado, depois de oito meses de relacionamento!”, queixa-se uma pessoa, em depoimento feito à autora.

No capitalismo atual, as empresas fecham fábricas e despedem trabalhadores sem maiores constrangimentos. Romper tornou-se parte de uma cultura em que as pessoas ficam rapidamente desatualizadas e substituíveis. Mas não apenas na esfera da produção.

Segundo Eva, as noções corporativas de eficiência, custos e utilidade passaram a contaminar as tradicionais convenções e compromissos que envolvem relações amorosas, criando uma crescente situação de incerteza.

Ultimamente, o capitalismo vem lidando com as incertezas de sua instabilidade econômica através de derivativos. Instrumentos financeiros que garantem altos lucros para poucos, mas que, em momentos de crise, acabam socializando os prejuízos com o resto da sociedade.

No caso das relações amorosas, não há derivativos. Muitas vezes, há apenas a garantia de sofrimento em meio a uma solidão abarrotada de mercadorias.

As afinidades entre relacionamentos negativos e capitalismo escópico são o principal fio condutor de seu estudo, diz Eva Illouz.

Mas a título de resumo, podemos afirmar que o que ela entende por “relacionamentos negativos” diz respeito “às maneiras pelas quais as relações íntimas, a sexualidade e a família refletem as características apropriadas do mercado, das práticas de consumo e dos locais de trabalho capitalistas”.

Para Eva, no casamento tradicional homens e mulheres eram (mais ou menos) emparelhados horizontalmente (dentro de seu grupo social) e visavam maximizar a propriedade e a riqueza. Já nos mercados sexuais contemporâneos, homens e mulheres combinam de acordo com o capital sexual, para uma variedade de propósitos (econômicos, hedônicos , emocionais). Muitas vezes vêm de diferentes grupos sociais e origens (culturais, religiosas, étnicas ou sociais) e frequentemente trocam atributos assimétricos (por exemplo, beleza vs. status social).

Também é importante destacar que, segundo ela, o capitalismo escópico gera diferentes formas de valor econômico e social para homens e mulheres. Por meio do mercado de consumo, as mulheres preparam seus corpos para produzir valor, ao mesmo tempo econômico e sexual, enquanto os homens consomem a produção feminina de seu valor sexual como marcadores de status em arenas de competição masculina.

Por ter sido atrelada aos objetivos e interesses do capitalismo escópico, afirma a autora, a liberdade sexual aprofunda as desigualdades, algumas das quais o precederam (desigualdades de gênero), enquanto outras foram criadas por ele. Tanto umas como outras têm efeitos negativos suficientes para fazer da busca da liberdade um objetivo que traz consequências inquietantes, conclui Eva.

Em suas conclusões finais, a autora afirma que aquilo que ela chamou de “capitalismo escópico” muda a ecologia das relações íntimas, recicla a sujeição das mulheres e cria uma vasta quantidade de experiências de rejeição, mágoa, decepção, "desamor"...

A referência maior da obra é a crítica presente em “O mal-estar da civilização”. Neste famoso livro, lembra a autora, Freud argumenta que a modernidade se caracterizaria por uma falta de adequação entre a estrutura psíquica individual e as demandas sociais colocadas sobre ela. A crítica de Freud, portanto, não parte de uma visão normativa clara, mas indaga sobre o ajuste entre as estruturas sociais e psíquicas.

Se a introspecção e o "eu" não são fontes confiáveis de compromisso e clareza, liberdade por si só não pode gerar sociabilidade e cobra um preço psíquico muito alto dos atores sociais, diz ela. A fim de gerar solidariedade social a liberdade precisa de rituais. No entanto, esses rituais praticamente desapareceram e foram substituídos pela incerteza.

Eva afirma que não pede um retorno aos valores familiares e à comunidade, nem defende a redução da liberdade. No entanto, leva a sério as críticas feministas e religiosas à “liberdade sexual” e diz que o poder tentacular do capitalismo escópico a utiliza para dominar nosso campo de ação e imaginação, contando com a “indústria psicológica” para gerenciar as muitas brechas emocionais e psíquicas criadas por ela.

E se muita coisa pode ser polêmica neste livro, a frase que o encerra justifica sua leitura: “Se liberdade deve significar alguma coisa, certamente deve incluir o conhecimento das forças invisíveis que nos prendem e nos cegam”.

Por fim, seria importante destacar que as contradições causadas pela “liberdade sexual” apontadas pela obra não são as mesmas em toda a sociedade.

É o caso daquela parcela que continua a acreditar em relações amorosas estáveis, família nuclear e em valores religiosos e tradicionais. Os valores ideológicos predominantes nesses grupos mostram a "liberdade sexual" como comportamento pecaminoso, desordem familiar ou desorientação moral.

Por outro lado, há um número muito grande de famílias monoparentais nas periferias pobres das grandes cidades do País. Nelas, as mulheres são as únicas responsáveis pela sustentação econômica e educação das crianças. Nesses casos, fica difícil falar em "opções negativas", já que as escolhas emocionais a que se refere o estudo de Eva muitas vezes simplesmente não estão disponíveis para essas pessoas.

Nesse quadro, a relativa liberdade sexual desfrutada por alguns extratos sociais deveria servir de referência para os setores ainda fortemente oprimidos erótica e emocionalmente, tanto pela opressão conservadora e patriarcal quanto por constrangimentos econômicos.

Mas quando mesmo os setores que obtiveram conquistas aparentemente libertárias também mostram-se tomados por ansiedade, angústia e insegurança, o conservadorismo apresenta-se para justificar a opressão sexual como parte de uma ordem natural e sacramentada pelas tradições.

É desse modo que se poderia explicar em parte a vitoriosa ofensiva ultraconservadora de forças como o bolsonarismo. Não se enfrenta esse tipo de ofensiva, abstendo-se de dar combate ao conservadorismo em todos os extratos sociais. Muito menos, contentando-se com algumas pretensas conquistas presentes em nichos sociais cujas aparentes liberdades comportamentais já foram sequestradas e precificadas pelo mercado.

Agosto de 2021

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