Doses maiores

O que fazer com “O que fazer?” de Lênin

Lênin considerava seu livro mais famoso limitado a um momento e lugar específicos. Mesmo assim, uma boa parte da esquerda insiste em considerar a obra como uma bíblia da organização partidária. O que fazer? Um artigo de Hal Draper ajuda a responder.

O livro “O que fazer?” foi escrito em 1902 para o 2º Congresso do Partido Social Democrata Russo, que só viria a acontecer em 1903. Portanto, era uma espécie de tese voltada para uma situação e momento específicos. Desde então, o livro foi adotado como fórmula sagrada da organização partidária dos socialistas revolucionários. Um artigo escrito por Hal Draper, em 1990, tenta explicar e desfazer essa imagem, com que o próprio Lênin não concordava.

Infelizmente, ainda não há versão em português do artigo de Draper. O título original é “The Myth of Lenin’s “Concept of The Party” or What They Did to What Is To Be Done?” (“O mito da ‘Concepção Leninista de Partido’ ou ‘O que fizeram com ‘O que fazer?’”). Nele Draper procura desfazer alguns grandes mitos ligados ao livro.

O mito de que a teoria socialista vem de fora da classe trabalhadora

Primeiro, Draper fala do mito que diz que os trabalhadores não podem chegar às idéias socialistas por si sós. Dependem dos intelectuais burgueses para lhes apresentar as idéias socialistas. É verdade que essa afirmação aparece em “O que fazer?”. Mas Draper, avisa que, em primeiro lugar, ela jamais aparece novamente em toda a enorme obra de Lênin. Em segundo lugar, a afirmação tinha um contexto muito específico. Ao escrever a passagem, Lênin estava citando Karl Kautsky, a quem ele considerava seu mestre. Kautsky achava que o setor social capaz de produzir ciência era a intelectualidade burguesa. Lênin repete essa idéia dizendo que a consciência socialista é algo introduzido na luta do proletariado a partir de fora e não algo que surja dela mesma. Há uma pequena diferença aí. Lênin estava combatendo os economicistas, ou seja militantes socialistas que defendiam que apenas a luta econômica bastaria para elevar o nível de consciência da classe. Desse ponto de vista, a afirmação pode ter validade em várias situações e momentos. Sabemos que lutar por asfalto, salários melhores, moradia etc não leva necessariamente à luta pelo socialismo.

Por outro lado, Kautsky também tinha suas razões. Tratava-se do combate que vinha dando aos partidários de Eduard Bernstein, que na Alemanha defendiam que “o movimento é tudo e o objetivo é nada”. Segundo eles, bastava manter a classe em ação, em movimento, para que o socialismo fosse alcançado gradualmente. Sem maiores rompimentos. Uma das conseqüências dessa concepção é a idéia de que a teoria é inútil. Se basta que fiquemos em movimento, não é preciso parar para pensar no objetivo. A prática é tudo e a teoria é nada. Para se contrapor a isso, Kautsky inverteu as bolas. Deu a devida importância à teoria, mas a localizou fora da classe trabalhadora. Draper defende que Lênin utilizou essa formulação de seu mestre para seu combate particular na Rússia de 1902.

No entanto, mesmo naquele momento Lênin relativizou a visão do mestre através de uma nota de rodapé. Nela, ele deixa claro que a teoria inspirada em Kautsky não quer dizer “que os trabalhadores não desempenhem nenhum papel na criação da ideologia socialista”. O que acontece é que eles o fazem não “apenas enquanto trabalhadores, mas como teóricos socialistas. Como Proudhons e Weitlings”, referindo-se a dois socialistas que foram trabalhadores manuais. Ou seja, apenas quando são capazes de fazê-lo, superando sua condição de pessoa alienada e isolada em seu trabalho  sem sentido. A nota também fala sobre o espontaneísmo. “É comum, diz Lênin, a crença de que a classe trabalhadora tende ao socialismo. E isso pode ser verdade no sentido em que a teoria socialista revela as causas da miséria dos trabalhadores. No entanto, a força com que a ideologia burguesa se impõe sobre a classe é ainda maior”. Daí, a dificuldade em afirmar que a teoria socialista surge apenas das experiências dos trabalhadores. Não. Ela também surge do contato que os trabalhadores tomam com as conquistas teóricas de pessoas do passado ou de fora das fileiras do proletariado.

O mito do profissionalismo revolucionário

Um segundo mito que Draper procura negar em seu artigo é o do profissionalismo revolucionário. Segundo ele, Lênin recusou várias vezes que defendesse um partido formado apenas de revolucionários profissionais. Em primeiro lugar, Draper lembra que a discussão presente em “O que fazer?” dizia respeito a uma situação muito específica. A do autoritarismo czarista de 1902, em que o partido revolucionário estava condenado à ilegalidade. Portanto, com atividades públicas extremamente restritas. Daí que Lênin estava discutindo a necessidade de um núcleo de revolucionários profissionais para garantir que o partido funcionasse minimamente. Para que a história do partido não se resumisse aos constantes envios de revolucionários para as prisões da Sibéria. Além disso, os interpretes de Lênin consideram que sua definição para “revolucionário profissional” fosse um militante em tempo integral, um funcionário partidário. Segundo Draper, isso é um absurdo do ponto de vista de Lênin. Draper afirma que todas as discussões de Lênin sobre o assunto nos anos posteriores a seu famoso livro, apontavam para a idéia de um ativista partidário que devotaria o máximo de seu tempo livre ao trabalho revolucionário. Ele precisaria trabalhar para sobreviver, claro, mas o centro de sua vida deveria ser a atividade revolucionária.

Draper chama a atenção para a conclusão necessária da idéia de que o partido deve ser formado por funcionários a ele dedicado em tempo integral. Qual seja, a de que o coletivo partidário dificilmente poderia ser formado por trabalhadores. A imensa maioria seria formada por pessoas intelectuais das classes menos ocupadas com a produção e atividades manuais.

O mito do desprezo pelas lutas espontâneas

Outro mito desmontado por Draper é a famosa oposição entre “teoria espontaneísta” e “organização consciente”. Diz o marxista norte-americano que Lênin nunca negou o importante papel desempenhado pelas lutas espontâneas. Mas o que está ressaltado em “O que fazer?” e em outros escritos de Lênin é o combate à glorificação da espontaneidade. Para o revolucionário russo, a tarefa das lideranças revolucionárias bem preparadas é aproveitar o potencial das lutas espontâneas para transformá-las em lutas conscientemente voltadas para o combate ao poder político da burguesia.

Outro aspecto de “O que fazer?” que se transformou em mandamento sagrado sem qualquer base para tanto é o do centralismo. Quando Lênin se referiu a “centralização” ou “centralismo” em seu livro, tinha em mente uma organização partidária totalmente dispersa pelo território russo. Eram os chamados círculos. Não havia qualquer “centro” que coordenasse as várias atividades e a intervenção destes coletivos. O partido russo não existia, desse ponto de vista. Daí, a insistência de Lênin para que o 2º Congresso estabelecesse, pelo menos, um centro e não um centralismo autoritário.

Hal Draper ainda aborda a questão da unidade a qualquer custo ou do “racha” a qualquer momento. Ambos transformados em fetiches a depender de quem interpreta o livro de Lênin. Mas passemos ao destino de “O que fazer?” nos anos posteriores a sua publicação. Em primeiro lugar, Draper afirma que Lênin cansou de advertir para o caráter localizado no tempo e no espaço de sua obra de 1902. Já no 2º Congresso, em 1903, antes de haver o racha que dividiria bolcheviques e mencheviques, Lênin insistia que não se deveriam citar passagens de “O que fazer?” fora de seu contexto.

Nova situação, novas formas de organização

O próprio Trotski levou um puxão de orelha por fazer algo parecido. Lênin disse ao jovem revolucionário que ele havia interpretado mal seu livro ao entendê-lo como uma defesa de uma organização de caráter conspiratório. Ao contrário, disse Lênin, “propus vários tipos de organização, do mais secreto e mais rígido ao mais amplo e flexível”. Tudo dependia do que exigia a situação social e política concreta.

Em 1905, lembra Draper, Lênin escreveu uma resolução para o 3º Congresso do Partido afirmando que "em condições políticas de liberdade, nosso partido pode e deve refazer inteiramente a regras de funcionamento...". Em novembro do mesmo ano, escreveu um artigo, dizendo que “os trabalhadores socialistas sabem que não há caminho para o socialismo, se não aquele através da democracia, da liberdade política”. Ainda em 1905, em um ensaio chamado “A reorganização do Partido”, ele propôs a realização de novo congresso para que a organização partidária fosse reformulada. Referia-se às novas condições de liberdade política conquistadas pela Revolução de 1905.

Com o partido reformulado sob condições de legalidade, Lênin chegou a se gabar da democracia no interior de seu partido. Disse que o Partido Social Democrata Russo construiu uma organização legal, um sistema eleitoral, e congressos representativos que não seriam encontrados em nenhum partido da época. Nem entre os Socialistas Revolucionários, nem entre os chamados Cadetes, que formavam uma organização da burguesia liberal.

Draper atribui tanta confusão na interpretação de “O que fazer?” à teoria da “vara torta” de Lênin. Ele costumava dizer que para endireitar uma vara que está torta para um lado, é preciso vergá-la para o outro lado até que fique reta. Então, quando era necessário combater o excessivo espontaneísmo da atividade do partido, Lênin exagerava na conscientização vinda de fora das lutas imediatas. Quando foi preciso dar uma organização mais efetiva ao partido, ele exagerou a importância do comportamento profissional do militante. O problema, diz Draper, é que uma vara que vive a ser entortada de um lado para o outro pode ficar disforme. E foi isso que acabou acontecendo com o pequeno e famoso livro de Lênin.

Draper não chega a dizer, mas eu ousaria afirmar que muitas leituras do livro de Lênin também servem perfeitamente a organizações partidárias burocratizadas. E com certeza foi utilizada pelo próprio poder instalado nas sociedades sob comando stalinista. Afinal, a consciência vinda de fora da classe trabalhadora, o desprezo pelas lutas espontâneas, o partido como coletivo de funcionários, a centralização autoritária. Tudo isso se adapta muito bem às necessidades políticas dos burocratas de plantão.

Estes e alguns outros aspectos são abordados em detalhe no belo artigo de Hal Draper. Tomara que contemos com uma tradução do texto, o mais rápido possível. Merece ser amplamente divulgado e discutido, como quase tudo que Draper escreveu. O texto, em inglês, pode ser encontrado em www.marxists.org.

Hal Draper e o socialismo a partir de baixo

Hal Draper é um marxista norte-americano que nasceu em 1914. Autor de uma obra muito importante, sua maior preocupação era provar que o socialismo somente pode acontecer a partir de baixo. Como obra da própria classe trabalhadora. Aliás, exatamente como pensava Marx, que deixou isso bem claro em sua famosa frase “A libertação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores”.

Com essa preocupação, Draper denunciou as experiências autoritárias de socialismo e usava a tradição marxista para denunciá-las. Considerava o próprio Marx, assim como Engels, Lênin, Trotski, Rosa Luxemburgo e Gramsci como defensores do socialismo a partir de baixo. Por outro lado, considerava Stalin, Mao, Castro e outros como promotores do que ele chamava “coletivismo burocrático”. Uma forma de sociedade tão autoritária, como o capitalismo.

O artigo aqui descrito foi escrito pouco antes de Draper morrer, em 1990. Draper também deixou uma obra valiosa. Entre seus textos, o mais famoso talvez seja “O que é o socialismo a partir de baixo”. Há uma tradução em espanhol que pode ser encontrada na página do Centro de Mídia Independente (http://brasil.indymedia.org/pt/red/2003/11/267879.shtml). Entre os mais importantes de seus escritos, estão os quatro volumes de “A Teoria Revolucionária de Karl Marx”, outra obra que mereceria tradução para o português e poderia servir de currículo para um bom curso de graduação em marxismo. De marxismo libertário, é claro, pois independente das possíveis e necessárias divergências que se possa ter com o autor, seu combate pelo socialismo como sinônimo de liberdade foi incansável.

Sérgio Domingues – Março de 2003

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