Tão inegável como a crise por que
passa o capitalismo, são os graves problemas que atingem setores importantes da
esquerda mundial.
É o caso do Podemos espanhol, do
Syriza grego e do PT brasileiro. Ainda que em ritmos, momentos e com problemas
bem diferentes, todas essas forças políticas passam por crises agudas.
Uma importante exceção seria o
trabalhismo inglês, que parece viver um ressurgimento de sua militância mais
radical, liderada por James Corbyn.
Mas mesmo o que ocorre no partido
trabalhista serve para mostrar a resistência do reformismo como horizonte para
as lutas dos setores explorados e oprimidos da sociedade.
Para tentar entender melhor essa
situação, talvez fosse pertinente retomar a leitura de “Capitalismo e Social
Democracia”, publicado por Adam Przeworski em 1985. A começar pela seguinte
passagem:
... participar [ou não] das instituições políticas
burguesas, mais especificamente, das instituições eleitorais. Esta questão
continua a dividir os movimentos da classe trabalhadora, desde a cisão na
Primeira Internacional, em 1870, passando pela Segunda Internacional até os
atuais debates sobre a participação em governos burgueses. No entanto,
precisamente porque os trabalhadores são explorados na condição de produtores e
precisamente porque as eleições estão dentro dos limites instrumentais
necessários à satisfação de seus interesses relevantes no curto prazo, todo
partido se vê na situação de ou entrar nas disputas eleitorais os perder sua
base de apoio.
Ou seja, o dilema reforma x
revolução tem uma longa história naquela que é a esquerda mais antiga do mundo.
Portanto, seria muito importante aprender com essa experiência. É o que este
texto pretende com ajuda da obra de Przeworski.
Quando estão no governo, os
“partidos socialistas comportam-se como todos os outros: com algum viés
distributivo voltado para seu próprio eleitorado, mas cheio de respeito aos
princípios sagrados do orçamento, políticas anti-inflacionárias, padrão-ouro
equilibrado, etc.”.
O comentário acima poderia
referir-se à recente experiência petista no governo federal. Mas é de 1985 e
relaciona-se a décadas de experiências socialdemocratas na Europa. Está no
livro “Capitalismo e Social Democracia”, de Adam Przeworski.
Segundo o autor, ao longo do
século 20, sempre que:
...os socialdemocratas chegaram ao poder na
Áustria, Bélgica, Dinamarca, Finlândia, França, Alemanha, Grã-Bretanha, Noruega
e Suécia, os ricos foram deixados em paz e a propriedade privada dos meios de
produção não foi perturbada.
Para usar um exemplo clássico,
nas eleições de 1912, o Partido Socialdemocrata Alemão alcançou 34,8 % dos
votos, obtendo o dobro da votação do segundo colocado. No entanto, o partido
restringiu-se a defender reformas nos limites das instituições burguesas,
culminando com a desastrosa posição favorável à participação alemã na Primeira
Guerra.
Os trechos citados mostram como é
antiga a contradição entre ganhar governos ou maiorias parlamentares e
continuar a representar os interesses da maioria explorada. Recente, mesmo, só
sua história entre nós.
O reformismo poderia ser
considerado viável desde que suas conquistas fossem cumulativas e
irreversíveis, diz Przeworski. Mas “não é o que se constata ao olharmos para os
poucos lugares do mundo onde elas foram realmente colocadas em prática pela
esquerda”, conclui.
Mesmo assim, o reformismo
continuou a ser considerado alternativa viável nas décadas que se seguiram. Nós
também continuaremos a procurar na obra de Przeworski algumas pistas para
entender essa persistência.
Importante trazer a contribuição
de Rosa Luxemburgo. Afinal, a grande revolucionária alemã foi duplamente
pioneira ao tratar da dualidade reforma ou revolução que dá nome a seu mais
famoso livro.
Por um lado, foi a primeira a
denunciar os riscos do reformismo no interior do movimento socialista.
Por outro, Rosa apressou-se a
advertir que opor reformas e revolução é uma das formas mais eficazes de
abandonar a segunda para ficar apenas com as primeiras.
Tratava-se, dizia ela, de
estabelecer uma relação dialética entre esses dois elementos, sem a qual a
destruição do capitalismo permaneceria um objetivo distante e utópico.
São as reformas que colocam
grandes parcelas do explorados e oprimidos em movimento, afirmava a autora. Mas
é preciso mostrar que o reformismo não é apenas um caminho mais longo em
direção a uma sociedade justa. Ele implica o próprio abandono desse caminho,
concluiu.
Przeworski confirma essa
avaliação quando diz que:
...o reformismo sempre foi justificado pela crença
de que reformas são cumulativas, que constituem passos que levam em alguma
direção. A atual política de socialdemocratas pela sua própria lógica não
permite a acumulação de reformas.
Em plena reversão das tímidas
conquistas do período petista no Brasil, fica difícil discordar. Mas isso já
aconteceu em outros momentos e em outros países. Por que, então, o caminho
reformista segue resistente?
Parte da resposta a essa questão
está relacionada ao “keynesianismo”. Segundo Przeworski, esta teoria econômica
foi fundamental para a consolidação do reformismo na Europa.
Przeworski considera que a teoria
keynesiana justificou a criação do chamado “Estado de bem-estar social”.
As concepções econômicas de John
M. Keynes teriam permitido aos socialdemocratas europeus descobrirem que “a
economia poderia ser controlada, e o bem-estar dos cidadãos continuamente
reforçado pelo papel ativo do Estado”.
Até então, os partidos
socialistas representavam apenas a classe operária, diz o autor. Agora, os
interesses particulares de curto prazo dos trabalhadores poderiam ser
contemplados de forma a coincidir com os interesses de longo prazo de toda a
sociedade.
Tudo isso funcionava, na prática,
do seguinte modo:
(1) o estado opera aquelas atividades que não são
rentáveis para as empresas privadas, mas necessárias para a economia como um
todo; (2) o estado regula, nomeadamente através de políticas anticíclicas, o
funcionamento do setor privado; e (3) o estado atenua, através de medidas de
bem-estar, os efeitos distributivos do funcionamento do mercado.
O grande problema é que:
...tendo se envolvido com setores deficitários, os
socialdemocratas minaram a sua própria capacidade de estender gradualmente o
domínio público. Além disso, os efeitos ideológicos não podem ser
negligenciados: a situação criada tornou o setor estatal notoriamente
ineficiente pelos critérios capitalistas e o resultado foi uma reação contra o
crescimento do Estado. (...) O alívio dos problemas não se torna transformação.
De fato, sem a transformação, a necessidade de aliviar a situação se torna
eterna.
O fato é que o capitalismo jamais
teve vocação para a estabilidade. Muito menos, para aliviar os efeitos
negativos de seu funcionamento.
Segundo a elaboração de John M.
Keynes, o Estado deveria levar o empresariado a se comportar de acordo com os
interesses gerais. Mas para isso, o setor público deveria possibilitar à
iniciativa privada margens maiores de lucratividade.
O problema é que a lucratividade
não sobe ou desce apenas pela vontade dos atores econômicos envolvidos. Muitas
vezes, os lucros caem por força das crises econômicas periódicas e inevitáveis.
No “Manifesto Comunista”, Marx já
afirmara que a burguesia não pode existir sem revolucionar o conjunto das
relações sociais. Ou seja, é quase impossível assegurar longos períodos de
estabilidade sob o capitalismo.
Muito provavelmente, os 30 anos
de tranquilidade econômica do período posterior à Segunda Guerra resultaram da
grande queima de capitais e vidas promovida por aquele conflito. Esgotados seus
efeitos, a sustentação material do “Estado de Bem-Estar Social” ruiu. Desde
então, as crises teriam retomado seu ritmo e se aprofundado.
No nível eleitoral, diz o autor,
as consequências logo apareceram. Quando os salários caem ou o desemprego sobe,
as pessoas simplesmente votam contra o governo de plantão, seja ele reformista
ou não.
Nessa situação, afirma
Przeworski, fica claro que “estar ‘no poder’ dá pouco poder: os socialdemocratas
estão sujeitos à mesma dependência estrutural que qualquer outro partido”.
Por isso, há várias décadas,
nenhum governo de esquerda consegue adotar o modelo do “Estado de Bem-Estar
Social”. No máximo, há tentativas tímidas e de fôlego curto. Assim, chegamos ao
pior dos reformismos. Aquele sem reformas.
Przeworski considera que “a crise
do keynesianismo é a crise do capitalismo democrático”. Na verdade, poderíamos
dizer que se trata do fracasso da crença em reformas socialistas obtidas pelo
voto.
E se a questão é a relação entre
eleições e socialismo, o autor recomenda consultar a obra de Marx.
Segundo Przeworski, Marx
considerava a convivência entre propriedade privada dos meios de produção e
sufrágio universal uma combinação explosiva. Levaria ou à "emancipação
social" das classes oprimidas devido a sua condição de maioria, ou à
"restauração política" da classe dominante por meio do poder
econômico de que ela dispõe.
Por isso, para Marx a democracia
capitalista somente se manifestaria como um "estado excepcional e
espasmódico de coisas”, sendo impossível se estabelecer como funcionamento
normal da sociedade.
Aparentemente, esta avaliação foi
desmentida pela história política posterior. Mas considerando o direito ao voto
universal como critério para definir a democracia moderna, teríamos apenas uns
60 anos de sua vigência nos dois séculos de existência do capitalismo. Assim
mesmo, para, no máximo, uns 30% da população mundial.
Mas até mesmo essa democratização
tímida começou a ser revertida pelo neoliberalismo a partir dos anos 1980.
Governos eleitos passaram administrar miudezas. Bancos centrais e gabinetes
econômicos ficaram encarregados do que realmente importa: a manutenção da
acumulação capitalista, gerando enormes lucros para muitos poucos.
Ou seja, Marx não estava tão
errado ao denunciar o caráter espasmódico da democracia burguesa. Afinal,
limitar a participação popular à realização de eleições é tão equivocado para a
maioria quanto conveniente para a minoria.
Mas voltaremos à obra. Há outros
elementos importantes que ainda merecem atenção. Por enquanto, fiquemos com
algumas de suas afirmações sobre o socialismo:
Se o socialismo consiste em pleno emprego,
igualdade e eficiência, então os socialdemocratas suecos estão razoavelmente
perto de alcançá-lo.
O socialismo não é um movimento pelo pleno emprego,
mas pela abolição da escravidão salarial. Não é um movimento pela eficiência,
mas pela racionalidade coletiva. Não é um movimento pela igualdade, mas pela
liberdade.
A abolição do capitalismo é uma necessidade não
porque assim determinam as leis da História, ou porque, de alguma forma, o
socialismo é superior a ele (...), mas apenas porque nos impede de nos tornar
tudo o que poderíamos ser se fôssemos livres.
A democracia socialista não é algo que possa ser
encontrada nos parlamentos, fábricas ou famílias: não é simplesmente uma
democratização das instituições capitalistas. Liberdade significa
desinstitucionalização...
O socialismo será possível apenas quando tornar-se
mais uma vez um movimento social e não apenas algo de natureza econômica (...).
A luta para melhorar o capitalismo é mais essencial que nunca. Mas não devemos
confundir esta luta com a busca pelo socialismo.
As afirmações acima são de 1985.
Desde então, ruíram as experiências ditas “socialistas” e a ofensiva neoliberal
que se seguiu trouxe destruição ambiental, guerras frequentes e cruéis,
democracias blindadas e fascismos revigorados.
Portanto, a luta por reformas
continua a ser necessária. Limitar-se ao reformismo, no entanto, significa não
apenas afastar-se do socialismo, mas fortalecer o caminho que leva à
barbárie.
Por outro lado, a crise do reformismo que procura suavizar o
neoliberalismo ou popularizar o capitalismo não deve levar ao abandono da luta
por reformas. Rosa Luxemburgo inicia “Reforma ou Revolução?” discutindo
exatamente o despropósito do título de seu livro.
Segundo ela, colocar as reformas
e a revolução em lados opostos é uma das formas mais eficazes para abandonar a
segunda e ficar apenas com as primeiras. Mas Rosa foi obrigada a fazer isso
para mostrar aos revolucionários que sem uma relação dialética com as reformas,
a revolução permanece um objetivo distante e irreal.
A mobilização por melhorias
graduais é a principal porta de entrada para a luta revolucionária. Somente por
ela, podem entrar grandes parcelas dos explorados e oprimidos. Pelas janelas
estreitas da convicção ideológica ou do conhecimento teórico entram apenas
alguns poucos e, raramente, oriundos da maioria explorada.
As lutas por reformas
possibilitam a necessária transição entre o reino da ação pragmática e imediata
e a formação de pessoas capazes de se descobrir na disputa de classes do lado
dos que pretendem romper com a dominação capitalista e qualquer outra forma de
sujeição social. Fora desse terreno, no contato direto com uma população
massificada e alienada pela ordem dominante, a ação revolucionária não passa de
pregação no deserto.
Há muitos caminhos que levam ao
beco sem saída do reformismo, incluindo o sindicalismo burocratizado e o
movimentismo despolitizado. Mas o principal atalho é a integração às arapucas
estatais que a burguesia prepara para a cooptar lideranças e limitar o
horizonte das lutas populares. Nas crises mais graves, essas armadilhas incluem
o acesso a governos e a maiorias parlamentares.
Outubro de 2016
Outubro de 2016
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