O povo todo delira / E nem acredita que está em São Paulo / Uma hora de trampo / E o resto do dia é só intervalo / E pro trabalho pesado / Cavalo, cavalo / E ainda assim / Com todo o cuidado / Para poupá-lo
Deu Pane em São Paulo - (Luiz Tatit)
- Onde estou...?
- Calma. Vamos explicar tudo ao senhor.
- Mas...
- O senhor esteve em animação suspensa por uns 150 anos. Devia estar com uma doença grave e seus parentes pagaram um tratamento caríssimo para a época. Colocaram-no em animação suspensa até que a cura da doença fosse descoberta. Deve ter sido no início do século 21. Na época, sua idade devia estar por volta dos 70 anos. Estamos tentando identificá-lo, uma vez que parece que o senhor foi esquecido e perdemos muitos dos registros de sua época. Por outro lado, o senhor ainda tem sequelas do longo período desacordado. Levará muito tempo para recuperar sua memória ou talvez isso nem aconteça.
- E a doença grave? Ainda estou com ela?
- Não. Era um tumor maligno. Mas, já temos condições de reverter esses quadros clínicos em 90% dos casos.
- E quem é você? Onde estamos? Em que ano?
- Estamos em 2.154, num lugar chamado São Paulo. Fiquei encarregado de acompanhar sua recuperação psicológica porque sou um estudioso de sua época. Posso ser útil na restauração de suas lembranças.
- São Paulo? Lembro-me de que vivia São Paulo.
- Sim. Mas as coisas mudaram muito.
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- Você me disse que estamos em São Paulo. Mas, tenho lembranças bem diferentes da cidade. Há muitas casas e alguns prédios, mas estão separadas por grandes áreas verdes. As paredes estão tomadas por umidade, plantas e fungos.
- Bem, na verdade o senhor viveu numa cidade. E São Paulo já não é uma. Aliás, praticamente já não existem cidades, a não ser nos planetas mais distantes. Há algum tempo a divisão entre cidade e campo acabou. Agora, há uma espécie de continuidade entre a área rural e urbana. Por isso, o senhor vê muita vida vegetal nas construções. Conseguimos fabricar materiais com alto nível de interação entre o orgânico e o mineral. Realmente, são fungos o que o senhor vê nas paredes, mas isso não diminui a vida útil das construções. Ao contrário, conseguimos desenvolver uma espécie de metabolismo de mútua sustentação entre os materiais. A cadeira está confortável?
- Sim, sim. Essas cadeiras sem rodas são ótimas. Como funcionam?
- Não saberia explicar em detalhes. E o senhor não entenderia por ainda estar preso a conceitos tecnológicos de seu tempo. Só digo que ela continuará deslizando cerca de 10 cm acima do chão por onde quer que passemos.
- Hum! Mas, você ia dizendo que...Ei, vi alguma coisa familiar.
- Oh! Desculpe. Passamos sobre um ponto de visualização histórica. É uma espécie de holografia que mostra as construções mais representativas de épocas passadas. O senhor está vendo esta marca amarela no chão? Basta a pessoa se posicionar sobre ele para acionar a imagem de um ponto histórico importante. Este o senhor deve ter conhecido.
- Sim, me parece familiar. Não há como saber o que era?
- Aqui está. É só acionar esse botão para ler a legenda. Está escrito “Teatro Municipal”.
- Ah sim, acho que me lembro. Mas quando é que desapareceu?
- Aqui diz que foi em 2092. Durante as grandes revoltas.
- Em toda a cidade há dispositivos assim?
- Onde conseguimos recuperar as imagens, sim. Achamos fundamental preservar o passado. Como não podemos manter as construções antigas devido a problemas ecológicos, as preservamos na forma de imagens. O senhor está bem?
- Sim. Apenas um pouco tonto ainda. Essa vegetação toda não pertence ao que chamávamos de Mata Atlântica?
- Ainda a chamamos assim. Em sua época, estava quase completamente extinta. Na verdade no início do atual século já havia praticamente desaparecido.
- E como conseguiram restaurar? Estou vendo uma enorme variedade de espécimes. Inclusive, animais e insetos.
- Nossos conhecimentos em biologia evoluíram muito. Principalmente, utilizando a tecnologia transgênica e manipulando o DNA.
- Transgênicos? DNA? Se não me engano, havia muita polêmica em torno disso.
- Tudo isso acabou quando extinguimos a propriedade privada dos meios de produção.
- Meios de produção?
- Fábricas, bancos, fazendas. Nada disso agora tem proprietários. Tudo é administrado coletivamente. Com isso, ficou mais fácil desenvolver as ciências e a tecnologia. Como seus resultados já não podem ser utilizados por uma minoria em busca de lucros, os riscos são muito menores. Ainda há problemas éticos, mas já não servem como máscaras para a briga por mercados.
- Acho melhor mudarmos de assunto. Não sei porque não me sinto bem com essa conversa.
- É natural. Como já disse, o senhor devia ser um homem rico em seu tempo. A inexistência de riqueza privada nos dias de hoje não deve ser facilmente assimilável para o senhor.
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- Estou ficando cheio dessa história! Exijo sair desse isolamento. Quero ser livre para andar por aí.
- Infelizmente, não é possível, senhor. Suas condições ainda não permitem relações sociais mais abrangentes.
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- E os automóveis? Não os vejo. O que vejo são muitas bicicletas.
- Automóveis, praticamente, não existem mais. Algumas pessoas excêntricas, vamos dizer assim, ainda possuem automóveis. Mas são raras e contam com instalações especiais para utilizá-los. Algo como seus autódromos, só que muito mais seguros. As pessoas já não se deslocam por longas distâncias. Trabalham perto de suas moradias e trabalham no máximo 3 horas por dia. Os centros de suprimentos, de cultura e lazer, também são próximos às casas. Por isso, a utilização de bicicletas se espalhou. E andar a pé é um velho e saúdavel hábito recuperado da infância da humanidade.
- Você disse 3 horas de trabalho por dia? Como?
- Ora, se não há mais aqueles que lucram com a exploração do trabalho alheio, não é preciso grandes jornadas de trabalho. O trabalhador produz o suficiente para suas necessidades. Depois disso, não é preciso continuar no local de trabalho para dar lucro para um patrão. Assim, basta dividir as necessidades de trabalho conforme as aptidões de cada um. Além disso, a maioria dos trabalhos pesados e perigosos é feita por máquinas. Restaram as tarefas mais delicadas e que exigem uma combinação de habilidade e criatividade.
- Algo como o artesanato ou a arte?
- Na verdade, já não é possível separar artesanato de arte. As duas, hoje, se misturaram. Aliás, nem há como falar em trabalho no sentido em que se falava antigamente. Agora, as pessoas trabalham para a coletividade. São tarefas em que elas vêem sentido. Então, é menos desgastante.
- Acho que vou vomitar...
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- Começo a lembrar de coisas como poluição, enchentes, crimes...Como é que estas questões são resolvidas hoje?
- Bom, os crimes ainda acontecem, mas são muito raros.
- Já sei. Vocês andaram matando uns e outros e o povo tomou jeito.
- Nada disso, meu caro. Os crimes ficaram raros devido ao fim da desigualdade econômica. Ainda existem casos patológicos, mas estes são tratados para adotar providências que tornem futuros casos ainda mais improváveis. Hoje, temos nossas brigas, desentendimentos, debates acalorados e até agressões. Mas, nada que assuma a forma de uma patologia social. Ficamos mais livres para ser o que somos porque para isso não precisamos prová-lo através de posses e dinheiro. Desgraças como o machismo, o racismo, a perseguição contra homossexuais, demoraram muito mais para desaparecerem. Mas, o fim do capitalismo foi um grande passo nessa direção.
- Não entendi patavina dessa história.
- Quanto às enchentes, já não acontecem. A não ser em algumas regiões onde são necessárias para fertilizar o solo. Se o senhor notar bem, verá que o chão tem uma permeabilidade enorme e não retém mais água do que o necessário. É assim em todo o lugar, não somente aqui. A poluição desapareceu após a extinção do uso de combustíveis fósseis, como petróleo, carvão etc. Agora, usamos muita energia solar e eólica.
- Por falar nisso, outro dia me pareceu ver um objeto voando. Não fazia ruído de avião ou de helicóptero. O que era?
- Deve ser um de nossos planadores. Já não temos os helicópteros que enchiam os céus da São Paulo antiga para que seus poderosos donos fugissem aos congestionamentos e à violência. São aparelhos movidos pelos ventos. Uma espécie de veleiro aéreo. Uma tecnologia complexa que utiliza os elementos naturais.
- Mas se parece tão fácil, porque não fizemos, nós mesmos, em nossa época?
- Porque estavam cegos. Achavam que a busca de lucro e o acúmulo de patrimônio são os objetivos da vida social. É o que vocês chamavam capitalismo. Se uma tecnologia não desse lucro, por mais útil que fosse, não conseguia ser desenvolvida. Curamos seu câncer porque a medicina deixou de condicionar suas pesquisas à ampliação da margem de lucros dos laboratórios.
- Olha, faz tempo que essa conversa está me cheirando a comunismo.
- É, parece que o senhor está recuperando rapidamente sua memória. Sim, era esse o nome que os teóricos da época davam. Hoje, não damos nome nenhum. É apenas a história humana.
- Hum...Como é que isso foi acontecer?
- É uma longa história. Houve muito sangue no começo. Aqueles que tinham poder e dinheiro não queriam ser privados deles. Mesmo após sua derrota, o processo teve várias idas e vindas. Erros e acertos. Mas houve um momento em que o essencial já tinha sido feito. As riquezas estavam se socializando rapidamente. As resistências, os velhos hábitos e costumes foram sendo superados em ritmo cada vez mais intenso.
- E São Paulo?
- São Paulo sofreu muito com isso. Era aqui que as maiores riquezas se concentravam nessa parte do planeta. Ao mesmo tempo, era aqui o lugar das maiores injustiças. No final do século 21, São Paulo virou um grande campo de batalha. O mesmo aconteceu em outras grandes cidades, como Paris, Nova Iorque, Tóquio, México. Mas foi quando as batalhas nessas cidades foram vencidas, que o fim da sociedade de seu tempo começou a se concretizar.
- São aqueles grandes levantes a que você se referiu outro dia?
- Sim.
- Aposto que meus descendentes foram todos mortos.
- Não, necessariamente. O capitalismo do século 21 fazia e desfazia fortunas cada vez mais rapidamente. Famílias e grandes empresas centenárias caíam em desgraça em questão de semanas. Novas potências empresariais duravam apenas alguns anos. Eram substituídas por outras, com vida ainda mais curta.
- Então podemos localizar meus descendentes?
- É o que estamos tentando fazer para ajudar em sua identificação. O problema é que laços de parentesco são bem menos importantes, hoje em dia. Ainda há os sentimentos de maternidade e paternidade, mas as pessoas acabam dando mais importância a afinidades sociais do que as ligações sanguíneas. Até porque não existem mais direitos de herança. Sobrenomes deixaram de ser importantes.
- É. Decididamente, este não é meu tempo.
****
- Senhor, temos novidades. Não sei se muito agradáveis.
- O que foi?
- O senhor já conseguiu lembrar de sua vida no século 21?
- Só um monte de coisas vagas.
- Bem, vasculhamos arquivos de imagens, textos, amostras de DNA de seus possíveis descendentes. Há uma chance de mais de 90% de termos chegado a sua identificação. Mas não sabemos se...
- Diga logo. Já são 2 meses nessa angústia.
- Bem, andamos avaliando se o senhor tem condições mentais para se adaptar a um mundo totalmente diferente daquele em que viveu. Tentamos calcular sua capacidade de interação social em nossa época. E já tínhamos sérias dúvidas quanto a essa possibilidade. O senhor apresentou sintomas extremamente graves até mesmo para os padrões do século 21. Por um lado, mostrou-se uma excelente amostra dos costumes autoritários e desonestos de uma época que já passou. Seria uma forma de mostrar para nossos contemporâneos a que ponto chegaram as deformações causadas pela sociedade capitalista. Por outro lado, tínhamos receio por sua sanidade mental. Por isso, o mantivemos um tanto isolado do convívio social. Não seria justo sacrificar sua lucidez em nome de nossos interesses científicos e culturais. Agora, a descoberta de sua identidade nos convenceu de que seria melhor o senhor permanecer mais algum tempo em animação suspensa até que façamos estudos mais conclusivos. É para o seu bem.
- Não, não! Vocês não podem fazer isso...
-
Lamentamos muito, senhor Maluf *, mas já decidimos.
* Obviamente, o nome mais adequado para o personagem principal deste texto, se ele fosse escrito nos dias de hoje, seria o de Bolsonaro.
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