Doses maiores

14 de novembro de 2024

Capitalismo, uma serpente autofágica

“Capitalismo canibal: como nosso sistema está devorando a nossa democracia, o cuidado e o planeta e o que podemos fazer a respeito disso”. Este é o título do mais recente livro da filósofa estadunidense Nancy Fraser.

“O verbo ‘canibalizar’, explica ela, significa privar um estabelecimento ou empreendimento de um elemento essencial para seu funcionamento a fim de criar ou sustentar outro”. E isso se assemelha, continua o texto, “à relação entre a economia capitalista e os territórios não econômicos do sistema: famílias e comunidades, habitats e ecossistemas, capacidades estatais e poderes públicos que têm sua substância consumida pela economia para inflar o próprio sistema”.

Para a autora, capitalismo se refere não a um tipo de economia, mas a um tipo de sociedade: “uma sociedade que autoriza uma economia oficialmente designada a acumular valor monetarizado para investidores e proprietários ao mesmo tempo em que devora a riqueza não economicizada de todos os demais”.

Para Nancy, a sociedade capitalista é como Ouroboros, mitológica serpente que se canibaliza engolindo a própria cauda. Criatura condenada a devorar sua própria substância. O resultado é a “crise generalizada de toda a ordem social em que todas as calamidades convergem, exacerbando-se entre si e ameaçando nos engolir por inteiro”.

São crises econômicas, mas também crises de cuidado, ecologia e política. Todas “absolutamente afloradas hoje, cortesia do longo período de comilança empresarial conhecido como neoliberalismo”.

O debate proposto por Nancy pretende “conectar a perspectiva marxiana a outras correntes emancipatórias da teorização crítica: feminista, ecológica, política, anti-imperialista e antirracista”. Sempre do ponto de vista anticapitalista. Uma contribuição importante e mais necessária do que nunca.

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13 de novembro de 2024

O fascismo e a violência corriqueira do capital

Rui Tavares, historiador português, político e colunista da Folha, lançou recentemente no Brasil o livro "Agora, Agora e Mais Agora". Reinaldo José Lopes, jornalista do mesmo jornal, o entrevistou em 09/11/2024. Abaixo, alguns trechos:

Se a democracia foi desenhada e pensada como um jogo no qual podemos nos opor uns aos outros, mas no qual sabemos que estamos limitados por determinadas regras, o que acontece com os nacional-populistas, com os neofascistas, podemos chamá-los por vários nomes, é que fundamentalmente eles têm uma atitude de insinceridade em relação ao jogo. Participam, mas não acreditam nele e querem acabar com ele.

Há cem anos, decidiram ser tolerantes com Hitler depois que ele passou alguns meses preso por uma tentativa de golpe de Estado. Ele acabou sendo libertado. Acreditou-se que o regime democrático, na Alemanha de então, era um recipiente vazio em que todas as posições deviam estar em pé de igualdade.

É impossível não pensar o que teria acontecido se a República alemã tivesse sido um pouco mais convicta e menos ingênua na defesa de seus valores. A democracia não se defende passivamente, e não podemos ficar de braços cruzados.

Para bom entendedor, meia palavra: Bolso...

Mas os recentes ataques ocorridos em Brasília parecem desmentir Tavares quando ele compara a democracia a um jogo. Seria melhor lembrar Clausewitz, que considerava a guerra como continuação da política por outros meios. Para os fascistas, porém, não há diferença substancial entre guerra e política. Esta última, para eles, apenas deve utilizar a mesma violência contra os de baixo que já faz parte do funcionamento corriqueiro da dominação capitalista.

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12 de novembro de 2024

VAT, 6x1 e capital canibal

A campanha pelo fim da escala de seis dias de trabalho por um de descanso (6x1) está bombando. Criada pelo vereador Rick Azevedo (PSOL-RJ) foi encampada pela deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP), que está tentando transformá-la em Proposta de Emenda à Constituição.

A proposta faz parte do movimento liderado por Azevedo, chamado Vida Além do Trabalho (VAT). Os operários do século passado tinham seu próprio VAT. Lutavam pelas 8 horas diárias de trabalho. Dessa maneira, sobrariam 8 horas para descanso e 8 horas para educação, conscientização e organização.

Mas a ocupação estafante e criadora de valor para o capital nunca se resumiu às horas exploradas pelos patrões, através de vínculos formais ou não.

Vida além do trabalho também são as ocupações domésticas, cujo principal objetivo é garantir a reprodução e manutenção da força de trabalho a ser explorada pelos patrões.

Vida além do trabalho é a destruição da natureza, provocando imensos prejuízos ambientais para a grande maioria, gerando enormes lucros para uma ínfima minoria.

Vida além do trabalho era a escravização humana nas antigas colônias e a atual precarização nas periferias do mundo, assegurando ganhos astronômicos para o grande capital.

Essas e outras esferas vitais são canibalizadas pelo grande capital para além de qualquer limite, sem qualquer contrapartida, reposição, compensação, tributação. Depois do trabalho, o que sobra não chega a ser vida.

Não há vida que escape à infinita e voraz gula do capital. É o que ensina, por exemplo, Nancy Fraser, ao mostrar em seu recente livro “Capitalismo canibal”, como é urgente matar o capitalismo de inanição. Voltaremos a comentá-lo, em breve.

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11 de novembro de 2024

Como se desperta um demônio

Em 1936, George Orwell publicou “A caminho de Wigan Pier”, sobre as terríveis condições de trabalho dos mineiros ingleses. Mas o livro também denunciava os preconceitos de setores da esquerda contra a chamada classe média. Eis um trecho:

Economicamente, estou no mesmo barco com o mineiro de carvão, o operário braçal e o trabalhador rural; basta que alguém me lembre disso e irei lutar ao lado deles. Mas culturalmente sou diferente do mineiro, do operário braçal e do trabalhador rural; e, se você enfatizar esse aspecto, pode acabar me armando contra eles. Se eu fosse uma anomalia solitária, isso não teria importância, mas o que vale para mim vale para incontáveis outras pessoas. Cada bancário pensando no dia da demissão, cada lojista tentando se equilibrar à beira da falência estão essencialmente na mesma posição. Eles são a classe média que vai afundando, e a maioria deles se aferra à sua superioridade, sob a impressão de que ela os mantém com a cabeça fora d’água. Não é boa política já começar lhes dizendo que joguem fora o colete salva-vidas. Há um perigo óbvio de que nos próximos anos grandes faixas da classe média deem uma repentina e violenta guinada para a direita. Ao fazer isso, podem tornar-se uma força tremenda. Até agora a fraqueza da classe média sempre se baseou no fato de que esses cidadãos nunca aprenderam a se unir, mas, se os assustar de tal modo que eles acabem se unindo contra você, pode descobrir que despertou um demônio.

Mas, na época, o “demônio” já estava bem acordado e tinha nome: nazifascismo.

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7 de novembro de 2024

A esperança escondida em uma bomba aérea

Em uma cidade do País Basco, durante a guerra civil iniciada pelo ditador Francisco Franco, uma bomba atingiu a praça central, mas nunca explodiu. Os moradores não ousaram movê-la, muito menos desarmá-la. Lá permaneceu por anos durante a ditadura Franco como um símbolo de morte, do poder do regime e do castigo para quem se rebelou.

Um dia, um dos habitantes decidiu remover o dispositivo sozinho. Mas logo muitos se juntaram a ele. A ideia era desarmar a bomba e levá-la para longe. Mas no lugar do detonador, encontraram um papel contendo algumas palavras escritas em alemão. Felizmente, havia uma pessoa que conseguiu traduzi-las: “Saudações de um operário alemão que não mata inocentes”, dizia o bilhete.

A partir daquele momento, decidiram manter a bomba na praça como símbolo da resistência, do fim do medo e do poder de um povo com consciência de classe. Tudo isso porque um trabalhador alemão arriscou a pele, em meio à ditadura nazista, e deixou claro que nem o medo nem o regime seriam capazes de torná-lo mais um monstro.

Se você vive sob regime fascista ou sob qualquer regime de morte e tem o estranho “privilégio” de ser empregado, recebendo um salário, dentro dele, você o sabota. Não precisa estudar ciências políticas para saber disso. Você precisa somente de sensibilidade e empatia, e de saber as consequências humanas das políticas que estão sendo aplicadas diante do seu nariz.

O relato acima é o resumo de um capítulo do livro “Pelo buraco da fechadura”, recém-publicado por Mário Prata. Mostra como é possível arrancar esperança dos momentos mais trágicos.

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