Doses maiores

22 de março de 2024

No peito dos cristãos, pode bater um coração revolucionário

Christina Vital da Cunha, professora da UFF e autora do livro “Oração de traficante: uma etnografia” publicou um artigo no portal da Unisinos sobre a teologia do domínio, essa perigosa ameaça da extrema direita teocrática contra a democracia. Mas no final do texto, ela faz uma ressalva:

...vem crescendo no Brasil aqueles evangélicos críticos desta extrema direita, da politização das igrejas. Esses evangélicos críticos não defendem todas as bandeiras progressistas, mas são mais afinados com a defesa da justiça social, missão deixada por Jesus Cristo, do que com os interesses dos chamados “coronéis da fé”. Há ainda uma esquerda evangélica diversificada internamente e que se reúne em algumas denominações e comunidades, afastados da vida eclesiástica, mas com vigor na fé. Dado o crescimento evangélico na sociedade como um todo, em especial em suas bases, observaremos cada vez mais essa face evangélica na esquerda popular, engajada ou não em partidos, mas sempre em defesa da democracia e diversidade. As forças democráticas liberais ou de esquerda, acadêmicos em suas pesquisas, partidos em suas convenções, vão precisar considerar cada vez mais esses atores sociais em suas investigações e/ou ações políticas.

Lênin assinaria embaixo, uma vez que ele não cansava de alertar para a necessidade de prestar atenção às contradições presentes nos meios populares. Na época dele, o setor social mais conservador era o camponês. Mas isso não impediu que a Revolução de 1917 ocorresse graças à unidade operário-camponesa.

Lênin costumava dizer que no peito de um rude camponês pode bater um coração revolucionário. No íntimo de muitos cristãos também.

As doses diárias das pílulas ficarão suspensas até maio.

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Aprendendo com Lênin a aprender com os camponeses

21 de março de 2024

Ada Lovelace, criadora do algoritmo cibernético

Ela é considerada a criadora do primeiro algoritmo cibernético da história. Filha do poeta Lorde Byron e da frequentemente esquecida matemática Anne Isabella Milbanke, Ada Lovelace foi assistente do pioneiro da computação Charles Babbage. Ambos trabalhavam na engenharia de produção da indústria de tecelagem da Londres do século 19.

Ada elaborou um conjunto de instruções a serem executadas por teares mecânicos que teve papel fundamental para a ciência da computação. Ela, porém, dava a essas instruções o nome de “diagrama” no lugar de “algoritmo”.

As operações que Ada criou incluíam a manipulação abstrata de qualquer entidade, não apenas de números. Desse modo, atribuiu um significado mais amplo para a definição de automação. Esta concepção de uma máquina que manipula símbolos de acordo com regras levou a uma transição fundamental das operações de cálculo para a computação de uso geral.

Infelizmente, tanto as contribuições de Babbage como as de Ada pertencem a uma época em que as hierarquias sociais e as apropriação dos saberes dos trabalhadores foram mistificadas e ocultadas pelo culto à genialidade de cientistas a serviço da burguesia. Como disse o historiador da computação Simon Schaffer, “Lovelace nunca viu maiores problemas na substituição da inteligência dos tecelões por uma série de cartões de programa, nem no desemprego a que foram condenados muitos trabalhadores qualificados de Londres.”

As informações são do livro “The Eye of the Master: A Social History of Artificial Intelligence” ou “O Olho do Mestre: Uma História Social da Inteligência Artificial”. Ainda sem tradução para o português, a obra é do filósofo italiano Matteo Pasquinelli e será tema de novas pílulas em breve.

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20 de março de 2024

Lênin sem tempo pra conversa fiada

Em seu livro "Lenin: Responding to Catastrophe, Forging Revolution“, Paul Le Banc define o leninismo como “um marxismo com pressa”. O autor também cita as palavras de Ana, irmã do líder russo, segundo as quais:

Vladimir não tinha paciência para a passividade, menos ainda para conversa fiada e exibicionismo. Ele queria levar seu conhecimento e suas habilidades para a classe que ele considerava destinada a realizar a revolução – a classe trabalhadora. Procurava pessoas que, como ele, estivessem convencidas de que a revolução na Rússia seria feita pela classe trabalhadora ou não seria feita.

Em 1900, ele expressou isso no ensaio “As Tarefas Urgentes do Nosso Movimento”:

Se tivermos um partido fortemente organizado, uma única greve pode transformar-se numa manifestação política, numa vitória política sobre o governo. Uma revolta numa única localidade pode transformar-se em revolução vitoriosa. Devemos entender que as lutas por reivindicações parciais e pela obtenção de certas concessões são apenas escaramuças leves com o inimigo, encontros entre postos avançados, enquanto a batalha decisiva ainda está por vir. Diante de nós, ergue-se a fortaleza inimiga, que faz chover tiros e granadas sobre nós, ceifando nossos melhores combatentes. Devemos capturar esta fortaleza, e iremos capturá-la, se unirmos todas as forças do proletariado que desperta com todas as forças dos revolucionários russos num partido que atrairá tudo o que é vital e honesto na Rússia.

O líder bolchevique tinha pressa porque sabia que capitalismo e barbárie são causa e efeito. Mais de 120 anos depois, as crises do sistema são cada vez mais frequentes e destrutivas. Estamos com cada vez menos tempo para conversa fiada.

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19 de março de 2024

Alexandra Kollontai contra as feministas burguesas

Alexandra Kollontai foi a primeira mulher a integrar o alto escalão de um governo. Nada menos que o governo bolchevique. Sua trajetória mostra a importância do papel feminino no processo revolucionário russo.

Em “As Bases Sociais da Questão Feminina”, documento publicado em 1909, ela diferencia claramente as feministas das operárias:

O mundo das mulheres está dividido, tal como o mundo dos homens, em dois campos: os interesses e aspirações de um grupo de mulheres aproximam-no da classe burguesa, enquanto o outro grupo tem ligações estreitas com o proletariado e as suas reivindicações de libertação abrangem uma solução completa para a questão da mulher. Por mais aparentemente radical que sejam as demandas das feministas, não se deve perder de vista o fato de que elas não podem, tendo em conta a sua posição de classe, lutar pela transformação fundamental da estrutura econômica e social contemporânea da sociedade, sem a qual a libertação das mulheres não pode ser completada.

Claro que muita coisa mudou nesse debate, desde então. Mas a revolução que Alexandra ajudou a construir trouxe medidas radicais e inéditas de emancipação feminina. Aboliu, por exemplo, a inferioridade legal das mulheres e extinguiu a obrigatoriedade do casamento religioso. Simplificou o divórcio e ampliou a garantia do pagamento de pensões alimentícias. Remuneração igual para trabalho igual entre mulheres e homens também ganhou força de lei.

Mais tarde a reação conservadora stalinista viria a enterrar muitas dessas conquistas. Mas elas nunca deixaram de servir como referência fundamental para a luta das mulheres em todo o mundo. Alexandra é mais uma personagem do livro “Parteiras da Revolução”, de Jane McDermid.

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18 de março de 2024

Neoliberalismo e extremismo de direita

Fundamentalismo religioso, guerra híbrida, dissonância cognitiva, militarismo, anarcocapitalismo, caos informativo, neofascismo. Estas são apenas algumas das chaves explicativas presentes no debate sobre a onda ultraconservadora que vem varrendo o mundo. Mas que elemento ideológico poderia dar coerência a esse caos conceitual? Um bom palpite é: o neoliberalismo.

Segundo Gramsci, a ideologia dominante reúne os elementos díspares e contraditórios que estão espalhados pelo senso comum para combiná-los de forma a justificar a ordem social. O resultado é uma massaroca que mistura religião, filosofia, valores tradicionais e modernos, crenças e preconceitos etc.

Ora, o neoliberalismo vem cumprindo perfeitamente essa função. Longe de ser apenas um modelo econômico, é uma racionalidade que penetrou toda a sociedade. Manifesta-se, por exemplo, na teologia que concebe a fé como instrumento de sucesso pessoal, no empreendedorismo como forma de ascensão social nas periferias e na organização racional da criminalidade promovida pelo PCC. Está na empresa e no sindicato. Nos governos, partidos, igrejas, mídias, universidades, ONGs. Ela impõe a mercantilização e financeirização da vida e um individualismo mergulhado na concorrência selvagem. Contaminou todas as esferas sociais, incluindo amplos setores da esquerda.

São muitas décadas de hegemonia neoliberal na Europa e Estados Unidos. Nos países dependentes, esse processo começou atrasado, mas foi sincronizado pela crise de 2008. Uma crise que o neoliberalismo criou e para a qual apresentou como solução a generalização do extremismo de direita a que estamos assistindo nos últimos anos.

Combater o neoliberalismo de forma abstrata não é suficiente para nos tirar dessa enorme encrenca. Mas se continuarmos a ignorá-lo vamos afundar ainda mais na barbárie.

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