O texto abaixo é de abril de 2003. Meses depois da posse do primeiro governo Lula. Apresenta algumas questões interessantes sobre a forma como a religiosidade judaico-cristã se manifesta na vida social contemporânea. Mas está muito longe de entender sua importância no que viria a se manifestar como onda ultraconservadora, cerca de uma década depois.
O personagem escolhido para dar o tom engraçado ao filme é Taoca. Aquele a quem Deus procura para ajudar em sua pretensão a um descanso. Encarnado magistralmente por Wagner Moura, Taoca também poderia ser Macunaíma ou João Grilo. Talvez, Pedro Malazarte e até Didi Mocó. Cada um deles representativo do malandro das pequenas desonestidades e traições. Pequenas porque falta competência e coragem para a grande maldade e o coração tem pena da traição além da conta. Taoca, assim como os outros, representa o pobre eternamente submetido tentando fazer a vida certa por vias tortas até acabar torto como começou. Foi a essa mistura entre astúcia e retidão que o Deus de Cacá Diegues escolheu para dirigir a palavra. Como a simbolizar a esperança no povo apesar de seus expedientes pouco sérios, seus preconceitos e sabedorias, suas bondades arrebatadas e mesquinharias inesperadas. Não à toa, alguns críticos já marcaram o filme como um símbolo da era Lula. Cheia de esperanças por concretizar, sem abrir mão de alguma astúcia para desviar-se dos percalços que estão por vir.
Enfim, o criador de tudo e de todos vem em busca de um substituto para cuidar do mundo, enquanto tira férias pelas estrelas e galáxias. Quer um santo para ficar em seu lugar e já tem o nome. É Quincas das Mulas E quer a ajuda de Taoca para levá-lo até Penedo onde vive o homem escolhido. Mas, o Deus que aparece a Taoca não convence. Se é Deus porque não faz o milagre de voar pelos ares até Penedo onde quer chegar? pergunta o malandro. “Fazer milagre desregula o funcionamento do universo”, responde Deus. Antigamente, seus milagres eram mais frequentes porque precisava se impor, diz ele. E mesmo isso era feito através da combinação entre as intenções divinas e as leis da natureza.
O que logo se nota é o mau humor de Deus. Antônio Fagundes de cara amarrada representa o criador severo muito presente no Velho Testamento. Antes de enviar seu filho, esse deus é criador e marido também. São frequentes as passagens em que o povo eleito é comparado à mulher adúltera. Esta, como o povo escolhido, sempre aproveita as distrações do marido para fazer das suas. Aí, a cólera de Deus se revela através de castigos: o dilúvio, o sacrifício do filho de Abraão, o cativeiro no Egito, os 40 anos de andanças pelo deserto. No filme, essa cólera é mais rala. Revela-se como impaciência.
Esta mesma impaciência é a que o faz perguntar “com quem é que vocês aprenderam a errar tanto?” A resposta de Taoca é outra pergunta, acompanhada de um olhar acusador: “Com quem?”. Uma questão teológica das mais difíceis: Se Deus é perfeito, por que fez criaturas imperfeitas. Por que deu-lhes o livre arbítrio? Para que pequem e por isso sejam castigados? Ou Deus errou e, portanto, não é infalível, ou sua perfeição tem como um dos componentes o que nós, os mortais, costumamos chamar de sadismo. “Com você, ora!”, por pouco não é esta a resposta de Taoca.
Em outra passagem, o trio formado por Deus, Taoca e Madá, interpretada por Paloma Duarte, encontram o menino Messias, outro malandro ainda, em fase de aprendizado. O garoto os leva para a casa do pai, que, a propósito de uma conversa sobre pais e filhos, vai logo opinando. Não acha correto essa história do filho se sacrificar pelo pai. O pai é que deve se sacrificar pelo filho. Uma alusão àquele que deveria ser o melhor dos pais, mas deixou seu filho ser crucificado pela crueldade dos homens. Também uma alusão à vida dura do sertão e dos pobres em geral, em que os pais devem sacrificar saúde e sossego para que os filhos tenham uma vida melhor. O criador sacrificou o próprio filho para salvar sua criatura cheia de pecados. Mas o sertanejo questiona a validade de tal sacrifício, uma vez que a humanidade segue sofrendo. E pecando.
Necessitado de dinheiro, Deus resiste à insistência de Taoca para que lance mão de milagres para tanto. Mas encontra uma saída. Traveste-se de mágico num momento e noutro aparece na pele de uma famosa apresentadora de TV solicitando doações. Arrecada o suficiente com ambos os expedientes, mas entrega a gorda féria a um pastor como recompensa por um sermão bem feito em sua homenagem. A vaidade divina se deixa enganar pela retórica neoprotestante. Uma crítica à exagerada dimensão pecuniária dos tele-evangélicos? É o que parece.
Por fim, Deus consegue chegar até Quincas das Mulas. Este, mesmo depois de ser curado de sua terrível gagueira por obra e graça do Senhor, recusa-se a assumir o papel de santo substituto. A razão é simples. É ateu convicto. Deus abre uma exceção e comete milagres pra ninguém botar defeito. Não adianta. O incrédulo acusa-o de utilizar efeitos especiais. Irado, Deus resolve abandoná-lo e como castigo devolve-lhe a gagueira. O discurso de Quincas volta a ser falho. Cheio de vazios e titubeios. Algo que só os ateus podem entender, pois lhes sobram lacunas que somente os que creem conseguem preencher.
Mas é no momento do confronto entre Deus e o ateu que as razões pelas quais este último quer tirar férias ficam mais claras. Em um dado momento, o escolhido, sempre desacreditando das palavras divinas, pergunta a Deus como havia criado o mundo. A divindade responde que foi fácil. Bastou criar os 92 elementos químicos. Depois combiná-los das mais variadas formas.
Deus quer férias e se recusa a fazer milagres. Estas duas disposições denunciam a circunstância de que já não vivemos num mundo em que a presença de Deus seja assim tão importante. Pelo menos, não enquanto a encarnação do velho barbudo, vigilante e atuante. Ao contrário, o mundo é como uma máquina posta a girar. Tem suas próprias leis e formas de funcionamento. Seu criador está mais próximo do Deus relojoeiro de que falava Einstein, cuja invenção trabalha sozinha, sem necessidade da supervisão constante de seu inventor. Deus ficou mais abstrato, mais impessoal. É apenas um princípio ativo que combinou 92 elementos químicos de uma certa maneira e os colocou em movimento. A importância da ciência e da tecnologia na vida atual poderia ser responsável por esta visão da divindade judaico-cristã.
Mas tal concepção da divindade criadora somente poderia se manifestar de maneira tão explícita nos tempos em que o capitalismo impera completamente. No feudalismo, por exemplo, a autossuficiência era possível a partir de um pedaço de terra para plantar. Hoje, não há como imaginar a sobrevivência se não através do dinheiro. E o dinheiro é a expressão máxima da mercadoria. Quem leu o capítulo sobre o fetichismo da mercadoria n'O Capital de Marx entende melhor porque as mercadorias é que têm vida social sob o capitalismo. E porque, por outro lado, as pessoas se relacionam entre si como se fossem mercadorias. Daí, talvez, a dificuldade do Deus de Cacá Diegues em fabricar dinheiro. Prefere seguir as leis do mundo que criou. Conseguir dinheiro iludindo os passantes, enganar os fãs da celebridade da TV. Deus não controla suas criaturas. Por isso, vive a castigar seus erros. Seus filhos não controlam o dinheiro que expressa o que produzem socialmente. Por isso, toda a imensa riqueza que produzem não é suficiente para fazer justiça para o conjunto da humanidade.
Nada mais exemplar dessa situação do que o movimento dos capitais especulativos entrando e saindo de países e regiões do planeta, mesmo que isso provoque o aumento das mortes por fome e doenças. O que pensariam os fiéis de um Deus pessoal e capaz de intervir na vida humana com milagres, mas que nada faz para impedir as enormes injustiças de que tomamos conhecimento todos os dias pelo modernos meios de informação? Tomariam-no por um ser, no mínimo, omisso. Alguém que contempla imóvel os desastres de sua criação. Isso já não acontece com o Deus abstrato e impessoal que foi se impondo à religião contemporânea. O Deus que pôs o grande carrossel em movimento, mas deixou a suas criaturas a responsabilidade por seus atos. Abandonou-os como fez com o filho único. Não à toa, a forma moderna da crença religiosa ocidental concentrou-se no filho e não no pai. Naquele que teve que se virar com os problemas terrenos, com as tentações, as poucas alegrias e as muitas tristezas.
O criador sente a inutilidade de sua presença e prefere se ausentar. No final do filme, o personagem de Fagundes desiste de deixar um substituto e parte para as estrelas. A cena que encerra a produção mostra o barco em que estão deitados Taoca e Madá. A embarcação gira emoldurada por um cardume e reflete o céu noturno. O cardume faz uma coreografia que desenha o símbolo matemático do infinito. E em seu movimento os peixes parecem nadar em um ciclo que nunca se rompe. Como o mundo que Deus criou e transformou-se num ciclo em que pecado e castigo se alternam de tal modo que não há alternativa se não abandoná-lo à própria sorte.
Esse tom pessimista, no entanto, é quebrado pelo clima extremamente bem humorado da produção. Um caminho adequado para a abordagem de problemas tão complicados. Basta lembrar de Je vou salue Marie, de Godard, A última tentação de Cristo, de Scorcese e A vida de Brian, de Monthy Piton. Dos três, considero o último o mais blasfemo. No entanto, diferente dos outros dois, A vida de Brian passou relativamente desapercebido pelos defensores da fé cristã. Talvez, a explicação esteja em seu formato de comédia. A tragédia parece menos trágica através da sátira.
Por outro lado, tanto a recusa do ateu em assumir a função divina, como a irreverência de Taoca para com o divino criador, possam ser um brinde a um mundo cada vez mais desencantado. Cada vez menos dependente de forças mágicas, não porque queira, mas porque a isso é obrigado. E convoca os seres humanos a assumirem o fardo de seu próprio destino. Um peso que sempre lhe coube, mas que agora pode ser assumido conscientemente. Algo como agarrar-se à esperança e abandonar o medo. Algo, talvez, bem brasileiro, principalmente depois da vitória de Lula. O homem comum governa. Os mortais assumem.
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