Também no mundo dos videogames, o comando é “Siga Marx!”
Jamie Woodcock é um jovem ativista e pesquisador britânico. Marxista, sua área de militância e estudos são as novas tecnologias, principalmente videogames. “Marx no Fliperama” é seu mais recente livro.
Abaixo, alguns comentários sobre essa interessante obra. Em primeiro lugar, ficamos sabendo que Marx estreou recentemente no mundo dos videogames, em uma missão incluída no jogo “Assassin's Creed”, de 2015.
O ano é 1868 e o cenário mostra Londres repleta de fábricas, moradias superlotadas, chaminés e trilhos de trem. A primeira aparição de Marx no game ocorre em uma lotada estação ferroviária londrina.
No meio da multidão, um robusto senhor barbudo pode ser visto discutindo com um policial. Assim que o jogador se aproxima dele, um pop-up informa que se trata de Marx e que sua missão é ajuda-lo a “evitar a polícia de Londres”.
Os principais personagens do jogo são Jacob e Evie, um casal de gêmeos. Eles se aproximam de Marx, que reconhece a dupla como responsável por vários atos de coragem em favor dos cidadãos de Londres. Mas os desafia a ajudar aqueles que realmente precisam: os trabalhadores.
Antes que Jacob possa dizer qualquer coisa, Evie responde: “Um desafio interessante. Nós aceitamos." Marx explica que está organizando uma reunião discreta com alguns companheiros para discutir a organização de sindicatos. O jogador é direcionado a "seguir Marx". Um bom começo, não acham?
O próximo encontro começa com Marx do lado de fora de uma fábrica. A missão: “Encontrar provas de que o patrão está cometendo ilegalidades contra sua força de trabalho”. Mas para saber como a ação se desenrola, só jogando o jogo.
Videogames e mais-valia
A indústria de videogames movimenta somas imensas. Só para ter uma ideia, vejamos os números abaixo.
Um dos videogames de maior sucesso no mundo é o “Grand Theft Auto”. O desenvolvimento de sua quinta versão foi estimado em US$ 137 milhões e envolveu 250 pessoas, trabalhando por cinco anos. Mas seu orçamento total chegou a US$ 265 milhões, contando-se os investimentos em marketing.
Em 2015, indústria de videogames do Reino Unido empregava diretamente 12.100 funcionários em tempo integral. Mas o trabalho desses funcionários contribuiu com US$ 1,2 bilhão para a economia britânica e criou mais 23.900 empregos indiretos. Nos Estados Unidos, os números são semelhantes.
É uma soma comparável à dos orçamentos de grandes filmes de sucesso. São dados desse tipo que deixam claro porque a indústria de videogames exige atenção.
Referindo-se a 2013, Woodcock diz que o setor movimentou US$ 836 milhões, o que equivale a cerca de US$ 89 mil por trabalhador. Embora esta seja uma média aproximada, dá uma ideia do volume de mais-valia extraído dos trabalhadores do setor.
A força motriz de toda essa criação de valor, diz o autor, “permanece a mesma que Karl Marx expôs em “O Capital”: a exploração do trabalho para produzir mais-valia”.
É por isso, argumenta o autor, que os marxistas deveriam se interessar pelos videogames. Ao mesmo tempo, a luta dos trabalhadores dessa indústria só teria a ganhar com a adoção de uma abordagem marxista.
O potencial anticapitalista dos jogos
Segundo Woodcock, um videogame seria um meio dinâmico que envolve um conflito estruturado em busca de um objetivo através de um “aparato audiovisual”. Tais características o diferenciam dos outros jogos, assim como de outras formas de arte ou cultura, tendo se tornado um fenômeno de massa.
O autor também lembra o que disse o sociólogo francês Roger Caillois, segundo o qual, jogos "não criam riqueza ou bens, diferindo assim do trabalho ou da arte." Neste processo, Caillois argumenta, “nada foi colhido ou fabricado, nenhuma obra-prima foi criada, nenhum capital foi acumulado. Brincar é uma ocasião de puro desperdício: perda de tempo, energia, engenhosidade, habilidade e, muitas vezes, dinheiro para a compra de equipamentos necessários e, eventualmente, para pagar o estabelecimento.”
Adaptando essa ideia de Caillois para o pensamento de Marx, Woodcock entende que o jogo pode ser um meio para que seus participantes deixem de ser trabalhadores por um tempo limitado, tornando-se, de forma lúdica, algo mais do que escravos dos limites do capitalismo”.
Por um momento, diz ele, é possível não ser mais um trabalhador, mas alguém livre para explorar novos mundos fora do trabalho penoso imposto pelo capitalismo. Um espaço de experimentação, descobertas e também de recuperação das energias exauridas pela exploração capitalista.
Mas será que a esfera dos jogos também poderia possibilitar uma atividade lúdica anticapitalista? Woodcock não só afirma que sim, como dá alguns exemplos muito interessantes. Entre eles, quem diria, o famoso “Banco Imobiliário”, que foi criado para denunciar os monopólios.
A origem anticapitalista do “Banco Imobiliário”
“Monopoly”, conhecido como “Banco Imobiliário” no Brasil e sucesso de vendas há muitas décadas em todo o mundo.
Inventado em 1903 por Elizabeth Magie, nos Estados Unidos, era originalmente chamado “Jogo do Proprietário”. Em 1925, foi rebatizado como “Monopoly” e apresentava o seguinte texto de apresentação:
Monopólio
foi projetado para mostrar os males causados pela propriedade privada.
No início do jogo, cada jogador tem a mesma chance de sucesso. Mas no
final, apenas uma pessoa fica com todo o dinheiro. O que explica o
fracasso dos outros participantes? Que fatores justificariam a
distribuição obviamente desigual que essa situação representa? Aqueles
que vencerem, responderão "habilidade". Os que perderam, dirão “sorte”.
Mas talvez haja alguns que, ainda que admitam o peso desses fatores,
responderão “é a propriedade privada”.
No entanto, a
versão moderna mudou esse texto introdutório para: “A ideia do jogo é
comprar e alugar ou vender propriedades de forma tão lucrativa que torne
o jogador mais rico e finalmente monopolize toda a riqueza”.
No
final dos anos 1970, no Estados Unidos, Bertell Ollman lançou o jogo de
tabuleiro “Luta de Classes”. A embalagem trazia a imagem de Karl Marx
disputando uma queda de braço com Nelson Rockefeller. As duas
possibilidades de vitória apresentadas no tabuleiro eram: “Socialismo
(Os trabalhadores vencem!)” e “Barbárie (Os capitalistas vencem!)”.
Vendeu 230 mil unidades quando foi lançado, mas logo desapareceu.
As versões anticapitalistas para o meio eletrônico não tardaram a surgir.
Videogames anticapitalistas. Eles existem
Em
2012, Paolo Pedercini criou “Phone Story”. Suas fases baseiam-se nas
etapas de produção de um iphone, começando nas minas do Congo, passando
por fábricas chinesas, lixões eletrônicos paquistaneses e terminando nas
lojas das grandes cidades. O objetivo do jogo era arrecadar recursos
para organizações de trabalhadores em luta contra abusos empresariais.
Mas três horas após seu lançamento, foi banido da loja virtual da Apple.
“Construindo uma Ratoeira Melhor“ é um videogame no qual o
jogador dirige uma fábrica-ratoeira, selecionando “ratos-trabalhadores” e
decidindo quanto pagar a eles.
Em “Todos os dias o mesmo
sonho”, o jogador controla um funcionário de escritório em um mundo
sombrio, focado na banalidade das tarefas.
Em “Papéis, por
favor”, o jogador assume o papel de um oficial da imigração no
imaginário país stalinista de “Arstotzka”. A principal função do jogador
é aprovar ou negar a entrada de estrangeiros no país. O processo de
decisão é complicado pelo fato de que o jogador é pago por cada pessoa
barrada e enfrenta a pressão de ter que sustentar uma família.
Os
videogames acima são voltados para um público já politicamente
definido. Mas uma exceção importante é o jogo “Uber”, lançado no site do
Financial Times, cujas tendências esquerdistas são nulas. Nele, o
jogador descobre como é trabalhar para a Uber e, geralmente, termina com
ganhos totais inferiores a meio salário mínimo.
Há algum tempo,
tornaram-se comuns os jogos anti-Donald Trump, nos Estados Unidos.
Agora, talvez surjam também os dedicados a Joe Biden.
Trabalhadores de videogames do mundo, uni-vos!
Em
agosto de 2012 foi criado o Sindicato de Trabalhadores Independentes da
Grã-Bretanha. A entidade começou organizando faxineiros, carregadores,
seguranças e outros trabalhadores de universidades. Em seguida, vieram
os trabalhadores de acolhimento, motoristas de Uber, ciclistas
mensageiros e motociclistas de entrega.
Embora possa parecer
estranho, os trabalhadores de videogame se juntaram à organização,
porque ela une profissionais que foram deixados de fora dos esforços de
organização dos sindicatos tradicionais.
Já a “Coalizão de
Trabalhadores de Tecnologia”, organiza trabalhadores dentro e em torno
da indústria de tecnologia, mas também líderes comunitários. Tem sede
nos Estados Unidos e é particularmente ativa em Seattle. São
trabalhadores em todos os níveis da indústria de tecnologia, desde os
serviços alimentícios ao nível de programação e engenharia.
Em
2016, dubladores da indústria de videogames dos Estados Unidos entraram
em greve. A paralisação durou mais de um ano, terminando com conquistas
parciais importantes. No mesmo ano, 21 trabalhadores entraram em greve
na Eugen Systems, um estúdio de videogame francês.
Foram dois
movimentos pioneiros, que causaram um grande impacto em toda a
indústria. O fato é que no desenvolvimento de jogos, todos estão
constantemente interagindo com todos. Funciona como uma linha de
montagem integrada a uma grande rede. Envolve programadores, artistas e
outras funções auxiliares. Se alguns deles entram em greve, todo o
estúdio para.
Com essas informações Woodcock pretende mostrar que
onde quer que haja trabalhadores sendo explorados, eles sempre serão
capazes de se organizar e resistir. Seja qual for o nível de
dificuldade, não há jogo que não possa ser vencido.
Marx queria ouvir os trabalhadores
Jamie
Woodcock ressalta que no 10º capítulo de “O Capital”, Marx traz
informações importantes sobre o cotidiano dos operários industriais.
Para isso, ele utilizou informações fornecidas por relatórios feitos por
inspetores de fábricas.
Apesar disso, Marx considerava
importante obter informações dos próprios trabalhadores. Então, em 1880,
publicou em um jornal francês uma convocação solicitando a colaboração
dos trabalhadores para responder um questionário:
Esperamos
contar com o apoio de trabalhadores da cidade e do campo conscientes de
que só eles podem descrever com pleno conhecimento os infortúnios que
sofrem, e de que serão eles, e não salvadores enviados pela Providência,
que poderão fazer uso com a energia necessária dos remédios que tragam a
cura para os males sociais de que são vítimas. Também contamos com
socialistas de todas as tendências que, defensores da necessidade de uma
reforma social, também sabem da necessidade de chegar a um conhecimento
exato e objetivo das condições em que a classe trabalhadora – a classe a
que pertence o futuro – trabalha e se mobiliza.
Ou seja, diz
Woodcock, mais do que apenas obter dados, Marx queria fazer contato com
os trabalhadores. Por isso, enfatizou em sua convocação que nome e
endereço deveriam ser fornecidos “para que, se necessário, possamos
enviar comunicados”.
Woodcock procura fazer o mesmo em relação
aos trabalhadores da indústria de tecnologia, sendo um dos criadores de
uma pesquisa com os mesmos objetivos que os de Marx.
Esta postura tem como pressuposto o que o marxista estadunidense Hal Draper chamou de socialismo de baixo para cima.
Videogames e socialismo de baixo para cima
Woodcok
aborda o conceito de “socialismo a partir de baixo” ao comentar o game
“Civilização”, um sucesso desde que foi lançado, em 1991.
Trata-se
de um jogo em que o desafio é criar uma civilização a partir dos
primeiros seres humanos, com suas ferramentas primitivas e poucos
recursos tecnológicos. Segundo o autor, trata-se de um game
particularmente bom para explorar o método materialista de Marx, com
suas ligações causais entre produção, repressão, dominação ideológica,
etc.
Mas o jogador progride ganhando pontos que são utilizados
para dominar seus oponentes. Isso naturaliza o capitalismo, com sua
dinâmica de acumulação, imperialismo e conflito, diz ele.
Sistemas
alternativos de governo estão disponíveis, mas em vez de uma futura
sociedade sem classes, formada por pessoas emancipadas, prevalece um
modelo de forte produção, militarização social e planos quinquenais.
Tudo muito parecido com o que existia na Rússia stalinista.
Nesse
momento, nosso autor lembra o conceito de “socialismo de baixo para
cima”, criado por Hal Draper, segundo o qual, ao contrário da ideia do
"socialismo construído a partir de cima" o "socialismo a partir de
baixo" é o único que realmente interessa aos explorados e oprimidos,
pois é por eles construído, "em uma luta para assumir o comando de seu
próprio destino, como verdadeiros atores no palco da história”.
No
entanto, admite Woodcock, introduzir este tipo de sistema em
“Civilização” seria muito difícil, pois significaria que o jogador
renunciaria ao controle de suas “massas virtuais”. Algo que, admitamos,
até muitos dos próprios socialistas relutam em fazer.
Videogames, economia, ideologia, dominação
Em seu livro, Woodcok aborda fenômenos culturais e estéticos, citando os estudiosos Nick Dyer-Witheford e Greig de Peuter:
Assim
como o romance do século XVIII foi um aparato textual que gerou a
personalidade burguesa exigida pelo colonialismo mercantil (mas também
capaz de criticá-lo), e assim como o cinema e a televisão do século XX
foram essenciais para o consumismo industrial (mas exibiu algumas de
suas representações mais sombrias), os jogos virtuais são constitutivos
do hipercapitalismo global do século XXI e, talvez, também de possíveis
linhas de fuga dele.
Outro autor citado é Ernest Mandel, para
quem “o materialismo histórico pode e deve ser aplicado a todos os
fenômenos sociais. Nenhum é por natureza menos digno de estudo do que
outros”.
Com base no que disseram esses autores, Woodcock
entende que as relações econômicas específicas da produção capitalista
moldam os tipos de hardware, software e videogames lançados no mercado.
No entanto, isso não quer dizer que a economia determina inteiramente a
superestrutura.
Uma crítica marxista da literatura, e mesmo dos
videogames, diz ele, faz parte de um projeto de compreensão de
ideologias. E a ideologia não é um comando direto, uma ordem a ser
obedecida. É um fenômeno muito mais complexo, sutil, obscuro e até
contraditório.
A situação econômica é a base, mas os vários
elementos da superestrutura também exercem sua influência no curso das
lutas históricas e, em muitos casos, preponderam na determinação de sua
forma.
É a partir desse entendimento que Woodcok discutirá o lugar dos videogames na atual luta de classes.
Videogames e luta de classes
Para
concluir esses comentários sobre o livro “Marx no Fliperama”, de Jamie
Woodstock, segue abaixo um resumo de seu capítulo final.
Os
videogames não são simplesmente uma diversão ou o ópio do povo, mas uma
mercadoria cultural complexa. Os marxistas deveriam se interessar por
eles porque sua produção, circulação e consumo podem fornecer
informações importantes sobre o funcionamento interno do capitalismo
contemporâneo.
“Gamificação” é um termo que alguns estudiosos
vêm usando para se referir à aplicação de aspectos dos jogos em outros
contextos.
Em um call-center, por exemplo, a performance de cada
funcionário é acompanhada em tempo real. Um mau desempenho pode
resultar em demissão. Uma eliminação de um jogo nada virtual e que pode
comprometer a sobrevivência concreta do “jogador”. Por outro lado, a
recompensa mais ambicionada nessa competição é sair mais cedo do
trabalho. Nada poderia motivar tanto as pessoas quanto deixar para trás
um local de trabalho “gamificado”.
A última onda de organização
de trabalhadores do setor é uma notícia muito positiva. Isso não quer
dizer que a indústria dos videogames seja o ramo mais importante
atualmente, mas sua dinâmica pode fornecer pistas para a compreensão do
capitalismo contemporâneo.
E se muitos jogos tendem a ser
reacionários, começam a surgir aqueles que denunciam a exploração e a
opressão. Um exemplo é o game “Last of Us”, campeão de vendas. Sua
última versão começa com um beijo lésbico.
Os games também podem
ser uma fuga do trabalho e oferecer uma forma de experimentar e
explorar potenciais alternativas à sociedade atual.
Portanto, permanece válido aquele comando inicial do jogo “Assassin's Creed”: “Siga Marx!”.
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