Doses maiores

O comunismo chinês e sua lógica útil ao capital

O Partido Comunista Chinês está completando 100 anos. Seria bom lembrar alguns fatos históricos sobre a organização e a grande revolução que liderou, sob comando de Mao Tsé-Tung. Para isso, usaremos informações e análises de Nigel Harris, em seu livro “O Mandato do Céu”.

Em 1949, os comunistas tomaram o poder na China e iniciaram mudanças radicais na estrutura produtiva. Segundo Harris:

A participação privada na produção industrial caiu de 39% em 1952 para 16% em 1955. No final do mesmo ano, 82% da produção privada foram comprados pelo Estado. Em 1956, toda a indústria privada havia sido absorvida por empresas mistas.

Mas, continua Harris:

O regime manteve-se favorável aos empresários privados. Pagou indenizações com juros sobre o capital privado expropriado e empregou os ex-empresários privados com salários relativamente altos como gerentes das novas empresas mistas ou estatais.

Além disso, foi assim que Mao se dirigiu aos principais empresários chineses no final de 1956:

Não podemos dizer que a burguesia é inútil para nós. É útil, muito útil. Os trabalhadores não entendem isso porque, no passado, se envolveram em conflitos com os capitalistas nas fábricas. Devemos, portanto, explicar a situação aos trabalhadores. Se eles tomarem conhecimento do forte desejo de aprender que vocês demonstram em seus círculos industriais e comerciais, certamente mudarão de atitude...

O livro de Harris foi lançado em 1978. Na época, ninguém imaginava que a China se tornaria um pilar de sustentação da ordem capitalista mundial. Mas se houve mudanças importantes, ela não foram radicais. O pragmatismo conciliador frente à lógica capitalista continua o mesmo dos tempos maoístas.

China: a revolução comunista que não foi comunista

Em 10/08/1973 o banqueiro David Rockefeller escreveu um artigo no The New York Times em que dizia:

Qualquer que tenha sido o preço da revolução chinesa, ela obviamente teve êxito, não só produzindo uma administração mais dedicada e eficiente, mas também uma moral elevada e propósitos comunitários. (...) A experiência social na China, sob a liderança de Mao, é uma das mais importantes e bem sucedidas na história humana.

Três anos depois, Mao Tsé-Tung estava morto. Seu sucessor, Deng Xiaoping, anunciou sua nova política, afirmando: “Não importa a cor do gato, desde que ele cace o rato”. A caça era o desenvolvimento acelerado das forças produtivas, a ser perseguido mesmo que fosse necessário negociar com o imperialismo.

Mas o entusiasmo de Rockefeller já mostrava que essa nova política não era tão nova assim. Mais de 50 anos depois, banqueiros e magnatas em geral têm ainda mais razões para admirar os feitos econômicos dos chineses. A diferença é que agora eles se queixam de uma suposta concorrência desleal. Do mesmo jeito que o rato se queixaria do gato.

O mistério é como uma revolução feita por comunistas fez surgir uma potência econômica que, por exemplo, viria a salvar o capitalismo após uma de suas maiores crises, aquela ocorrida em 2008.

O livro de Harris ajuda a entender esse enigma. Mostra como os comunistas fizeram uma revolução contra os nacionalistas, mas com objetivos nacionalistas. Enquanto isso, a União Soviética, sob Stálin, apoiava não os comunistas contra os nacionalistas, mas estes contra aqueles.


O PC chinês rumo ao poder, cada vez menos comunista

O processo revolucionário chinês teve início no final dos anos 30. Nesse período, o stalinismo já dominava o comunismo internacional.

Para Stalin, a revolução chinesa deveria ser liderada pela burguesia. Desse modo, a aliança estratégica não seria entre operários e camponeses contra a burguesia e o imperialismo. No lugar disso, o Partido Comunista Chinês (PCC) deveria se aliar ao Kuomitang, partido nacionalista, representante dos interesses do grande capital e dos latifundiários.

Moscou orientara o PCC a limitar suas reivindicações ao que fosse aceitável para os nacionalistas. Também forneceu armamento e enviou especialistas russos para transformar o Kuomitang em um novo partido bolchevique, mas sem o programa dos bolcheviques. Ou seja, sem ameaças aos interesses do grande capital e do latifúndio.

O problema é que os comunistas nunca abandonaram as lutas contra os patrões. E o Kuomitang não podia tolerar isso. Passou a perseguir o PCC visando aniquilá-lo. Os comunistas resolveram se defender iniciando uma guerra civil, que só diminuiu de intensidade diante da invasão japonesa de 1937.

Na luta contra os japoneses, os comunistas se mostraram muito mais combativos. Mas, principalmente, ganharam enorme apoio dos camponeses porque distribuíam terras nos territórios que reconquistavam ao inimigo. Algo que o Kuomitang, composto por latifundiários e grandes empresários, jamais poderia imitar.

Era o PCC abrindo caminho rumo ao poder. A questão é que enquanto fazia isso, ia se tornando cada vez menos comunista e cada vez mais nacionalista.

O projeto do PC chinês nunca foi essencialmente socialista

Quando foi fundado, o Partido Comunista Chinês (PCC) tinha em seu interior algumas importantes divergências estratégicas. A maior delas, opunha setores que defendiam a revolução a partir das cidades aos que entendiam que ela deveria começar pelo campo.

Entre estes últimos, estava Mao Tsé-Tung, que justificava suas posições com base na enorme superioridade numérica do campesinato frente ao operariado. O problema é que havia uma situação demográfica semelhante na Rússia e, nem por isso, os camponeses foram a vanguarda da Revolução de Outubro.

Mas outros fatores entraram em jogo, ajudando a consolidar a posição de Mao. Entre eles, o caráter fortemente militar e territorial que o processo revolucionário passou a ter com a invasão japonesa de 1937.

O PCC formou seu próprio exército para se defender da burguesia chinesa. Passou a usar esse exército para combater os japoneses e distribuir terra aos camponeses. A luta nas cidades tornara-se secundária.

Como diz Harris, foi assim que a revolução liderada por Mao se tornou uma luta por libertação nacional. Com isso, a autoemancipação dos explorados sumiu do horizonte do PCC.

Não que isso diminua a grande façanha realizada pelos comunistas chineses. Apenas mostra que seu projeto nunca foi essencialmente socialista.

Ser nacionalista pressupõe colocar o desenvolvimento econômico acima da socialização dos meios de produção. Transformar cooperativas em monopólios. Defender o fortalecimento do estado, não sua gradual dissolução. Promover o nacionalismo econômico, não o internacionalismo proletário.

A China é o que é hoje por causa dessa trajetória. E o que ela é hoje nada tem a ver com socialismo.

Mao Tsé-Tung, o pacificador da luta de classes

Nigel Harris destaca a seguinte observação feita por Mao Tsé-Tung, em 1963: “Há dez anos não temos luta de classes. Tivemos em 1952 e em 1957, mas ocorreram apenas nos órgãos administrativos e nas escolas”.

Ou seja, diz Harris, a luta de classes seria uma atividade, tal como a política, a ciência, as artes... Sendo assim, pode e deve ser controlada e pacificada. Agindo como um legislador, Mao determinava o que deveria ser feito quanto às contradições de classe. Por exemplo:

A contradição entre explorador e explorado, que existe entre a burguesia nacional e a classe trabalhadora, é antagônica. Mas, nas condições concretas que existem hoje na China, tal contradição antagônica, se bem tratada, pode ser transformada em não antagônica e resolvida de forma pacífica.

“Onde as classes existem sem luta de classes e a luta de classes sem classes, tudo, mesmo as contradições, são negociáveis. Tornam-se uma questão de relações públicas bem administradas”, ironiza Harris.

A simplicidade das ideias de Mao a respeito da concepção de comunismo “é encantadora”, diz o autor. Certa vez, o líder chinês teria afirmado:

A classe feudal teve uma doutrina feudal, a burguesia uma doutrina capitalista, o budismo é budista, o cristianismo é cristão (...) por que então o proletariado não pode ter o seu comunismo?

Não à toa, a grande potência em que se transformou a China adotou a “harmonia” como seu principal valor. Mesmo que continue a sustentar o capitalismo mundial, um sistema que produz desequilíbrios descomunais em série.

O socialismo utópico de Mao Tsé-Tung


“O pensamento de Mao Tsé-Tung é um retorno às doutrinas pré-marxistas de socialismo”, diz Harris. Ideias que Marx caracterizou como "socialismo utópico" manifestaram-se amplamente na China sob o domínio do partido comunista, afirma ele.

A hostilidade às cidades, o retorno da classe trabalhadora urbana ao campo, a formação de comunidades agrário-industriais autossuficientes cuja função era impedir o fortalecimento de hierarquias, da burocracia, do trabalho especializado e garantir o desenvolvimento educacional do trabalho manual. Tais ideias eram fantasias reacionárias para Marx, já no século 19.

Somente o capital centralizado e a especialização do trabalho permitiriam a abundância que criaria condições para instaurar o socialismo. A igualdade não poderia ser baseada por muito tempo em socialização da pobreza, em ideais de abnegação ascética. Apenas o pleno desenvolvimento das forças produtivas garantiria acesso generalizado à abundância produtiva proporcionada pelo capitalismo.

A Revolução Chinesa nunca foi "traída". Os comunistas chineses da década de 1930 jamais propuseram a autoemancipação da classe trabalhadora. Mao não tinha os mesmos objetivos de Lênin. Sua meta era a libertação nacional

Na época de Mao, a distinção entre libertação nacional e luta internacionalista desapareceu. Na verdade, a primeira engoliu inteiramente a segunda. A libertação nacional foi um grande passo à frente para a China, mas seu caráter era muito diferente daquele que marcou a Revolução de 1917.

Segundo Harris, Mao se contentou com a versão do século 20 da revolução burguesa. O objetivo era liberar as forças produtivas às custas da emancipação dos trabalhadores. E é isso o que a China vem realizando, desde então.

Mao Tsé-Tung coloca Marx de cabeça pra baixo

Na China, a base do poder do partido comunista eram suas forças militares e territórios dominados. Desse modo, Mao Tsé-Tung não precisou fazer o esforço teórico que Lênin fizera. A atuação dos comunistas não dependia da compreensão sobre o que eram a China e o mundo, apenas do entendimento do potencial militar do Exército Vermelho.

Seriam os fatores acima, destacados por Harris, que explicariam o idealismo filosófico do pensamento maoísta. Os elementos principais das concepções de Mao são de ordem moral. Para ele, o entusiasmo e a consciência, tão vitais nos pequenos partidos, são os fatores históricos decisivos, não a contradição entre forças produtivas e relações de produção. Não à toa, Mao afirmava:

Os homens não são os escravos da realidade objetiva. Quando a consciência dos homens entra em conformidade com a lei objetiva do desenvolvimento das coisas, a atividade subjetiva das massas populares pode se manifestar plenamente para superar todas as dificuldades, criar as condições necessárias e levar avante a revolução. Nesse sentido, o subjetivo cria o objetivo.

Mao seguiu essa lógica até sua as últimas consequências, diz Harris. Os fatores-chave da revolução e do desenvolvimento econômico são propaganda, educação, métodos de mudança de consciência, não as forças materiais de produção. Desse modo, dizia Mao:

Em primeiro lugar, crie a opinião pública e tome o poder. Em seguida, resolva a questão da propriedade. Posteriormente, desenvolva as forças produtivas em grande escala. Esta, em geral, é a regra.

Se Marx virou Hegel de cabeça para baixo, Mao inverteu Marx, conclui o autor.

A Revolução Chinesa e os desvios da revolução permanente

Em 1949, quando as forças do Partido Comunista Chinês se aproximaram das grandes cidades da China, uma proclamação assinada por Mao Tsé-Tung determinava:

Os operários e demais trabalhadores devem continuar trabalhando e os negócios funcionando normalmente. Os funcionários públicos e a polícia devem permanecer em seus postos e obedecer as ordens do Exército de Libertação do Povo e do Governo Popular.

Que estranha revolução essa, que aconteceu com todas as atividades urbanas funcionando normalmente?

No entanto, uma transformação radical tinha acontecido. A China foi unificada. As potências imperialistas, expulsas. A propriedade latifundiária, extinta. Todas as tarefas essenciais de uma revolução burguesa foram realizadas, exceto a conquista de liberdade política para os trabalhadores. Mas quem fez essa revolução com características tão burguesas não foi a burguesia.

Até aí, tudo bem. Se a burguesia não faz, ela mesma, sua revolução, é a classe trabalhadora que deve fazê-la e avançar para as transformações socialistas, logo a seguir. É isso o que prevê a teoria da revolução permanente elaborada por Trotsky e que guiou os bolcheviques na fase derradeira da Revolução de 1917.

Mas no caso chinês, foi o campesinato sob a direção de quadros intelectuais de classe média, como Mao e outros militantes partidários, que fizeram a revolução. Não o proletariado industrial. Como explicar esse fenômeno sem desautorizar a teoria ortodoxa da revolução marxista?

Uma das teorias para explicar essa situação sem romper com a tradição marxista é a da revolução permanente desviada, do marxista inglês, nascido na Palestina, Tony Cliff.

China: revolução socialista sem operários?

No prefácio de seu livro “A Revolução de 1905”, Trotsky diz que sua teoria da revolução permanente:

...pretende indicar que a revolução russa, embora diretamente relacionada com propósitos burgueses, não podia deter-se em tais objetivos: a revolução não resolveria suas tarefas burguesas imediatas sem o acesso do proletariado ao poder, e o proletariado, uma vez que tivesse o poder em suas mãos, não poderia permanecer confinado dentro do modelo burguês da revolução.

O proletariado teria que dar conta das tarefas democráticas enquanto avançava rumo aos objetivos socialistas, se não quisesse ser derrotado em ambas as frentes.

Mas se do ponto de vista marxista, uma revolução burguesa pode ocorrer sem uma vanguarda da burguesia, uma revolução socialista jamais aconteceria sem uma vanguarda operária. No entanto, quando assumiu o poder, o Partido Comunista Chinês (PCC) não tinha praticamente nenhum operário industrial entre seus filiados, sendo os camponeses maioria esmagadora.

A Revolução Chinesa teria sido, então, obra de uma vanguarda formada por camponeses? Poderia ser, desde que não fosse caracterizada como uma revolução socialista. Os interesses de classe dos camponeses podem levá-los a lutar pela democratização da propriedade dos meios de produção, jamais por sua socialização.

Basicamente, o PCC era um exército de camponeses dirigido por intelectuais das camadas sociais intermediárias. É por isso que jamais evoluiu da estatização dos meios de produção para sua socialização.

Para tentar dar conta dessa situação, o marxista inglês Tony Cliff propôs a teoria da revolução permanente desviada. Uma variação da formulação de Trotsky, para explicar também revoluções como a cubana e a vietnamita.

Revolução Chinesa e revolução permanente desviada

Após a Revolução Russa, a outra grande revolução vitoriosa ocorreria na China, em 1949. Mas, o marxista inglês Tony Cliff entendia que tanto a revolução chinesa como a cubana, mais tarde, seriam bem diferentes daquela ocorrida em 1917. E para explicar seu caráter, ele elaborou a teoria da revolução permanente desviada.

Em um artigo sobre essa formulação, o correligionário de Cliff, Duncan Hallas, explica:

...as proclamações de defesa do marxismo pelos seus dirigentes eram contraditórias com as idéias de Marx, para quem “a emancipação da classe trabalhadora será obra da própria classe trabalhadora”. Nem na China nem em Cuba os trabalhadores controlavam os meios de produção, e tampouco haviam cumprido um papel ativo, e muito menos dirigente, nos acontecimentos que haviam levado aos novos regimes.

Pelo contrário, argumentou Cliff, China e Cuba eram governados por um estrato de intelectuais com base, quando muito, no apoio passivo dos camponeses e trabalhadores. Foi esse estrato de intelectuais que assumiu o controle, e não a classe trabalhadora, como seria de se esperar segundo a teoria de Trotsky. Esse estrato foi capaz de usar a máquina estatal para nacionalizar a maior parte da economia, e lançar seus países em uma via nacional de desenvolvimento capitalista-estatal.

Acima de tudo, a teoria da revolução permanente “desviada” proporcionou - sem abandonar o espírito da contribuição pioneira de Trotsky ao marxismo - um modo de compreender o sucesso das revoluções chinesa e cubana, e também de outros regimes capitalistas de Estado menos “puros”, em realizar algumas das tarefas da revolução burguesa.

O artigo de Cliff sobre sua teoria está disponível aqui, em tradução automática.

Julho de 2021

Leia também: De volta ao enigma chinês: capitalismo burocrático

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