Doses maiores

O que, afinal, vem se desmanchando no ar?

“Tudo o que é sólido desmancha no ar”. Esta frase deve ser uma das mais famosas do Manifesto Comunista, de Marx e Engels.
                                                                           
Mas o que ela quer dizer, exatamente?

Vejamos como ela aparece no texto. Primeiro, os autores afirmam que a “burguesia só pode existir com a condição de revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, por conseguinte, as relações de produção e, assim, todas as relações sociais”. Essa condição profundamente inquieta leva a uma “agitação permanente e falta de segurança” que “distinguem a época burguesa de todas as precedentes”. E com isso:

Dissolvem-se todas as relações sociais antigas e cristalizadas, com seu cortejo de concepções e de ideias secularmente veneradas, as relações que as substituem tornam-se antiquadas antes mesmo de ossificar-se. Tudo que é sólido desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado e os homens são obrigados finalmente a encarar com serenidade suas condições de existência e suas relações recíprocas.

Agora, pulemos diretamente aos trechos finais do Manifesto. Em outra frase famosa Marx e Engels afirmam que os “proletários nada têm a perder a não ser suas correntes”.

Ora, a “solidez” que se desmancha na frase inicial deste texto não é apenas a das correntes. É, principalmente, a dos limites impostos aos trabalhadores por suas próprias crenças, concepções de mundo, modos de vida, tradições, costumes.

Mas, afinal, por que os convictos materialistas Marx e Engels atribuem solidez a concepções, crenças, costumes, enfim, a ideias?

Para tentar entender esse “enigma” é preciso compreender de que materialismo estamos falando em se tratando de Marx e Engels.

O materialismo de Marx e Engels

Claro que os dois acreditavam que é a realidade que cria as ideias e não o contrário. Mas também reconheciam na subjetividade construída historicamente pela espécie humana uma importância fundamental. E do que é formada a subjetividade humana se não de razão, afetos, sensibilidades, de ideias, enfim?

É por isso que aquilo que consideravam de mais sólido na vida humana envolve fenômenos que se manifestam nas relações sociais. E não necessariamente na estrutura econômica da sociedade, como certas leituras do marxismo costumam concluir.

Por outro lado, ao colocar constantemente em questão as relações sociais, a burguesia levaria os “homens” a encarar “suas condições de existência e suas relações recíprocas” de forma transparente. Mais que isso, com “serenidade”.

Essa serenidade seria produto da superação das relações antigas e cristalizadas. Surgiria daí uma espécie de lucidez social capaz de mover os explorados e oprimidos em direção a sua emancipação.

O problema é que não é isso o que parece estar acontecendo. Não faltam pesquisas e estudos mostrando que esse processo em no qual as mais antigas convicções se estão esfumando por toda parte deixam seu lugar becos cegos existenciais, angústias, niilismo, frustrações, rancores, revoltas estéreis, fanatismos e, principalmente, depressão. Uma situação que está muito longe de ter a serenidade pretendida pelos autores do Manifesto.

Para começar a dar conta desse debate, seria bom lembrar de uma das questões filosóficas mais clássicas: a que opõe idealistas e materialistas. Os primeiros atribuem tudo o que existe à força das ideias. Sejam elas emanadas de um ser superior, seja de forças transcendentes, entidades que habitariam um plano sobrenatural.

Os materialistas pensam o oposto. Ideias, pensamentos, crenças, certezas são resultado de certas condições materiais que as tornaram possível e não o contrário.

Ao longo do tempo, o debate ideológico foi identificando os idealistas com conservadorismo social e político. Eles colocariam as forças transcendentes acima de tudo: valores religiosos, tradições sagradas, certos tipos de honra. Mesmo que isso implicasse manter situações de injustiça social, exploração, opressão, guerras, dominação de maiorias por minorias...

Já os materialistas, seriam os revolucionários, os rebeldes ou apenas inconformados. Identificariam a religião, a moral conservadora, as tradições com a defesa camuflada dos interesses dos poderosos.

Acontece que grande parte das pessoas desconhece esse debate. Para elas, materialista costuma ser alguém que só pensa em bens, riqueza, prazeres mundanos. Que despreza, inclusive, relações amorosas, amizades, solidariedade, honra e religião em favor de seu bem-estar material. Neste caso, mesmo o padre ou pastor mais devotos podem se revelar materialistas extremados.

Já os idealistas, para o senso comum, seriam pessoas que não trocam suas convicções éticas por mais poder ou riquezas. Acreditam na força de ideias corretas e justas. Alguém que fosse revolucionário, ateu, anticlerical, poderia ser, então, um idealista.

Mas também seriam pessoas com poucas chances de verem suas ideais postas em prática por serem bonitas, mas inviáveis. E, provavelmente, inviáveis porque se defrontam com um mundo demasiado... materialista.

A questão é porque houve essa inversão? Ela não é simplesmente falsa. Ao contrário, tem origem e efeitos muito concretos.

O ser social

Em “Ontologia do Ser Social”, o marxista húngaro George Lukács afirma ser “mérito de Engels ter colocado o trabalho no centro da humanização do homem”. Não o trabalho tal como o conhecemos hoje. Em sua forma alienada, cansativa, degradante, muito raramente realizadora e gratificante.

Na definição de Lukács, “devemos considerar o trabalho exclusivamente no sentido estrito do termo, na sua forma originária, como órgão do metabolismo entre homem e natureza”.

Mas os outros animais não trabalham? Sim, o famoso exemplo das abelhas logo salta à mente. Elas trabalham, sim. Mas lembremos que, segundo Marx, as mais habilidosas das abelhas são inferiores ao pior arquiteto porque não projetaram a colmeia antes de construí-la. E não atribuíram a sua obra os valores simbólicos encontrados em qualquer realização humana.

A abelha não poliniza ou fabrica cera porque projeta essas tarefas. Elas estão inscritas em seu código genético. Diferente dela e de outros animais, ninguém se põe a trabalhar, seja numa fábrica ou num poema sem ter estabelecido uma certa finalidade. Esta até pode ter sido imposta pelo patrão, mas o trabalhador não pode ignorá-la sob pena de ser demitido. Um poema pode ser um objetivo bem menos palpável, mas fazer poesia é uma finalidade tão concreta quanto.

Mas o que tem a ver tudo isso com materialismo e idealismo? Muita coisa. Como tudo o que fazemos passa antes pelas projeções de nossa mente, fica parecendo que é dela que o mundo surge. Por outro lado, atribuímos ao restante da natureza a mesma capacidade teleonômica consciente.

“Telos”, em grego, quer dizer finalidade. E o fato é que todas as formas de vida só existem porque atendem a determinadas finalidades. Buscar alimento, fugir dos predadores, proteger as crias, mas, principalmente, garantir sua própria reprodução. Nesse sentido, a vida é teleonômica. É governada por finalidades.

E, em última instância, quase todos os seres animados seriam escravos de seus genes, sempre em busca da reprodução de sua espécie. Quase todos. Nós seriamos uma exceção, pois a lógica das finalidades manifesta-se como atividade consciente e simbólica, uma característica exclusiva da espécie humana.

Mais que isso, temos necessidade dessa relação. Segundo Lukács, em sua leitura de Marx:

Como formador de valores de uso, como trabalho útil, o trabalho é, desse modo, uma condição de existência do homem independentemente de todas as formas sociais, uma eterna necessidade natural de mediar o metabolismo entre homem e natureza, portanto, a vida humana. (György Lukács – “Para uma ontologia do ser social 1”, p.359 - São Paulo: Boitempo, 2012, de agora em diante OSS1)

Aí, costumam surgir os questionamentos atribuindo ao marxismo uma espécie de determinismo econômico na concepção do que é ser humano. Segundo essas críticas, Marx, Engels e seus seguidores amarrariam a vida social às imposições da vida econômica. Uma formulação reducionista, que ignoraria a importância de fenômenos sociais tão importantes e decisivos, como religião, arte, mitologia, ciências...

Lukács procura responder a essas críticas citando um trecho do prefácio a “Sobre a crítica da economia política”, no qual Marx afirma: “Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência". Desse modo, diz Lukács, “o mundo das formas de consciência e seus conteúdos não é visto como produto imediato da estrutura econômica, mas da totalidade do ser social” (OSS1, p. 308).

Ser social. Este seria um dos conceitos centrais no pensamento marxista, não as determinações econômicas. Em relação a esse conceito, Lukács chama a atenção para o que ele define como “afastamento das barreiras naturais”.

O filósofo húngaro cita Gordon Childe para explicar. “O homem”, escreve Childe, quando fazia:

...uma ferramenta de pedra ou de osso, era limitado pela forma e pela proporção do material originário: só podia tirar fragmentos. Nenhuma destas limitações freava a atividade do oleiro, que podia modelar a argila a seu gosto e trabalhar na sua obra sem nenhum medo quanto à solidez das junções. (György Lukács – “Para uma ontologia do ser social 2”, p. 59 - São Paulo: Boitempo, 2012, de agora em diante OSS2)

Em suas próprias palavras, Lukács localiza o processo de humanização no momento em que: 

... o homem não reage mais de modo animalesco ao mundo que o cerca, isto é, quando deixa de simplesmente se adaptar ao respectivo mundo exterior dado e, por seu turno, passa a participar de modo ativo e prático de sua remodelação em um meio ambiente humano cada vez mais social, criado por ele mesmo... (OSS2, p.596)

Mas o que interessa na passagem acima são suas últimas frases:

...um meio ambiente humano cada vez mais social, criado por ele mesmo, assim também enquanto pessoa, ele só pode se tornar homem se a sua relação com o seu semelhante humano assumir formas cada vez mais humanas... (Idem)

O que significa tornar as relações com os semelhantes cada vez mais humanas? Ora, se é de afastar as barreiras naturais que se trata, significa tornar as relações humanas cada vez menos governadas pelas determinações naturais. Pela ditadura de nossos genes, por exemplo. É o caráter subjetivo, consciente, simbólico que atribui à natureza sentidos que não são intrínsecos a ela. A madeira não existe para se transformar em móveis ou outros utensílios. Nós é que atribuímos esse sentido a ela.

Ao mesmo tempo, é preciso ressaltar que conferir um caráter consciente à atividade humana não é o mesmo que considerá-la racional, no sentido de sempre estabelecer um ajuste harmonioso entre projeção e realização, fins e meios. Ao contrário, como diz a famosa frase de Marx, “os homens fazem a história, mas não sabem que a fazem”. Inclusive, porque pesa sobre toda sociedade humana a herança de tudo o que as gerações anteriores realizaram. Para o bem e, mais frequentemente, para o mal.

Quando nos referimos à atividade consciente, trata-se da busca de uma continuidade entre o que se planeja e o que se executa, mas sempre sujeita aos mais diversos acidentes e contradições. Desde um jarro de barro cujo processo de cozimento o deixou quebradiço demais até uma obra de arte produzida com intenções sacras por seu autor, mas que, depois de pronta, foi considerada profana pela sociedade que a recebeu. Neste último exemplo, fica também mais claro o peso da dimensão simbólica da atividade humana consciente, sempre sujeita a ser “contaminada” por elementos pouco ou nada conscientes ou racionais.

As teleologias primária e secundária

E aqui chegamos aos interessantes conceitos lukacsianos de teleologia primária e teleologia secundária. Em que consistem estes conceitos?

Para Lukács, teleologia primária diria respeito apenas à relação entre os seres humanos e a natureza. Seria a produção, por exemplo, de ferramentas, utensílios, vestuário. Atividades que têm como finalidade (“telos”) produzir objetos que não são encontrados prontos na natureza.

Já na teleologia secundária destaca-se “a ação dos homens sobre outros homens”. Neste caso, os “pores teleológicos” assumem “um caráter secundário do ponto de vista do trabalho imediato”.

Ou seja, o que chamamos de teleologia primária envolveria a relação entre nossa espécie e a natureza. A “teleologia secundária” diria respeito às relações da espécie consigo mesmo. No primeiro caso, um caçador em busca de suas presas. No segundo, caçadores combinam entre si como capturá-las.

O problema é que um caçador individual em atividade, muito provavelmente, já está envolvido em uma relação “teleológica secundária”. Difícil separar os dois momentos rigidamente.

De qualquer maneira, Lukács considera que essa relação “secundária” já não é mais algo “puramente natural, mas a consciência de um grupo humano”.

Na verdade, o grande passo aqui é o reconhecimento de que ao metabolismo encontrado na natureza não humana, nossa espécie acrescentou outra forma de metabolismo: o trabalho.

Os problemas começam quando ficam quase impossível distinguir um metabolismo do outro. E é aqui que se encontra a chave do materialismo marxista.

Para Marx, o que distingue a atividade humana não é essencialmente seu caráter teleológico, mas sua capacidade de atribuir um sentido a esse caráter. Já a visão idealista, atribui a capacidade humana de tomar decisões conscientes também ao restante da natureza. A reger os destinos de toda a natureza estariam forças “sobrenaturais”.

Elas podem estar espalhadas pelas coisas e seres do mundo, fenômeno conhecido como animismo. Ou podem se concentrar em entidades superiores, como deuses e divindades em geral, como nas religiões teístas. Mas também aparecem no senso comum que atribui à evolução natural uma espécie de intencionalidade rumo à perfeita adaptabilidade.

Mas voltemos à ideia de metabolismo. Nós e os outros bichos fazemos parte do metabolismo da natureza. No entanto, os outros animais estão “perfeitamente” integrados a esse metabolismo. O fato de uma espécie se extinguir não significa necessariamente que não tenha conseguido se integrar ao metabolismo natural. Ao contrário, seu desaparecimento é ele mesmo uma forma de metabolização natural.

Já a raça humana acaba acrescentando a esse metabolismo um outro. Aquele em que consiste toda a atividade de transformação da natureza desempenhada por nós. Uma atividade que entra em contradição com as leis naturais e a desafia constantemente.

E o exemplo mais patente desse caráter desafiador do bicho humano em relação às determinações biológicas é a própria reprodução. Somos um dos poucos animais a não limitar o acasalamento a um determinado período. E somos os únicos a dotá-la com as mais diversas cargas simbólicas, bem além de sua função meramente reprodutiva.

Mas voltando ao nível da produção mais material, Lukács afirma lembra não há nada de intrínseco na madeira que a destine a se tornar uma mesa. Bilhões de árvores nasceram e morreram durante milhões de anos e jamais foram transformadas em móveis. Ou navios. Ou brinquedos. Elas simplesmente continuaram a ser árvores e a cumprir certas funções na natureza.

Quando o bicho humano resolve transformar madeira em utensílio, atribui à madeira uma finalidade que não fazia parte da legalidade natural que rege a existência das árvores. Aí, está a contradição. A atividade humana sempre entra em contradição com a natureza. O que mudaria seria o tamanho dessas contradições.

Dezenas de milhões de agricultores trabalhando duro num continente do tamanho da África, por exemplo, alteram pouco a paisagem local. Disparam contradições menores em relação ao seu meio. Já os mesmos milhões lavrando uma pequena fração do continente africano, tenderão a provocar muito mais estragos. Voltaremos a isso depois.

Prioridade ontológica

Segundo Lukács, a visão marxiana de mundo dá prioridade ontológica à natureza. Em outras palavras, o mundo material vem antes de nós e existe independentemente de nós.

As estrelas, os planetas, as rochas, todos os seres vivos, já existiam muito antes de nossa espécie aparecer. Nossas atividades atuais podem até dizimar florestas inteiras, sumir com montanhas, extinguir milhares de espécies vegetais e animais, incluindo a nossa. Mas, provavelmente, a vida continuará a existir, mesmo que em níveis microscópicos.

Para Lukács, trata-se de “pura constatação” o fato de que “a reprodução biológica da vida constitui o fundamento ontológico de todas as manifestações vitais; aquela é ontologicamente possível sem estas, mas não o contrário”. Ou seja, para os materialistas, a vida sem espírito é perfeitamente possível, mas o espírito sem a vida, não.

Por outro lado, seria preciso entender por que, apesar disso, a quase totalidade das pessoas continua a acreditar que o mundo real é produto ou de suas ideias ou de entidades e seres transcendentes. Fenômenos que pertenceriam a um mundo à parte do nosso.

Lukács explica esse fenômeno dizendo que:

Esse mundo revela-se ao homem como uma espécie de segunda natureza, como um ser que existe de forma totalmente independente do seu pensar e querer. (...) Contudo, (...) toda essa segunda natureza representa uma transformação da primeira, que foi efetuada pelo próprio gênero humano... (OSS2, p. 255)

No entanto, o gênero humano não reconhece nessa segunda natureza uma obra sua. Ela torna-se o produto de outro. Em latim, “outro” se diz “alienus”. Daí o fenômeno da alienação, destacado por Hegel e apropriado por Marx. Esta incapacidade de ver na sua própria obra um produto seu seria um traço inerente ao ser humano? Ou seria pertinente a apenas alguns determinados momentos históricos? Não é o caso de tentar responder a essa complexa questão aqui.

O importante, em primeiro lugar, é dizer que a divisão da sociedade em classes sociais agravou essa alienação, uma vez que separou a minoria que se apropria do excedente econômico, de um lado, e a grande maioria despossuída, de outro. Opôs os que pensam e mandam aos que obedecem e executam. Surge o Estado, separado da sociedade. A classe dominante e a classe dominada. É uma cisão que provoca um distanciamento do potencial emancipador da transformação consciente da natureza pela espécie humana.

Mas essa cisão tornou-se ainda maior com o surgimento da organização capitalista da vida social.

O trabalho e o capitalismo

Para Lukács, em sua leitura da obra marxiana, é através do trabalho que:

...realiza-se, no âmbito do ser material uma posição teleológica que dá origem a uma nova objetividade. Assim, o trabalho se torna o modelo de toda práxis social, na qual, com efeito — mesmo que através de mediações às vezes muito complexas — sempre são transformadas em realidade posições teleológicas, em termos que, em última análise, são materiais. (0SS2, p. 47)

A nova objetividade a que se refere o autor húngaro rompe com aquela imposta pelas leis naturais. Nasce da atividade orientada para um fim determinado, previamente projetado pela consciência humana, ainda que seu resultado final muitas vezes deixe de corresponder integralmente à ideação original.

Ora, a esfera da chamada teleologia secundária seria o terreno da coerção, mas também o do convencimento, da persuasão. Portanto, da ideologia, da política, da educação e até da arte. E atua, principalmente, no âmbito da hegemonia. Da disputa em torno de valores e ideias que justificam ou desafiam uma determinada ordem social.

Por outro lado, no modo de produção capitalista, a teleologia primária que caracteriza o trabalho como objetivação afirmadora da humanidade de nossa espécie assumiu formas cada vez mais reificadas. Especialmente, em sua fase industrial em que o trabalho vivo passou a ser gradual e celeremente substituído pelo trabalho morto, sobretudo na forma de equipamentos e maquinários.

O predomínio do trabalho morto sobre o trabalho vivo afasta o caráter teleológico e consciente das atividades humanas, que caracterizaria a especificidade de nossa espécie frente às outras.

Ao acompanhar as transformações no processo de trabalho sob o capitalismo, da cooperação simples à manufatura e maquinaria, tal como descrito em “O Capital”, podemos verificar que se trata de um processo produtivo cuja execução torna-se mais dependente das posições teleológicas secundárias. O que antes era feito com a mão ou com ferramentas que são extensões simples de nossos membros passou a ser executado com instrumentos muito mais complexos.

À medida que ferramentas, máquinas, programas de computador, robôs tornam-se atividade e conhecimento materialmente cristalizados, o aspecto primário e originário da teleologia do trabalho pode reduzir-se ao acionamento de um botão, por exemplo. Já aquelas posições teleológicas secundárias, passam a ser ocupadas por dirigentes e “capatazes”, para os quais o objetivo final é a valorização do capital.

O trabalhador coletivo

De modo que as finalidades nos dois níveis se interpenetram, levando ao que Marx chamou de trabalhador coletivo. Ou seja, trata-se de uma espécie de síntese de posições teleológicas primárias e secundárias. Sobre o conceito de trabalhador coletivo, importante destacar uma passagem de “O Capital”, do qual citaremos o seguinte trecho:

Com o caráter cooperativo do próprio processo de trabalho amplia-se, portanto, necessariamente o conceito de trabalho produtivo e de seu portador, do trabalhador produtivo. Para trabalhar produtivamente, já não é necessário, agora, pôr pessoalmente a mão na obra; basta ser órgão do trabalhador coletivo, executando qualquer uma de suas subfunções. A determinação original, acima, de trabalho produtivo, derivada da própria natureza da produção material, permanece sempre verdadeira para o trabalhador coletivo, considerado como coletividade. Mas ela já não é válida para cada um de seus membros tomados isoladamente. (Karl Marx, “O Capital”, livro primeiro, tomo 2, cap. XVI, p. 577. Civilização Brasileira – 1999 – RJ)

Por outro lado, ao mesmo tempo em que as teleologias primárias ficam fora do alcance dos trabalhadores isolados, elas continuam a ser acionadas pelo coletivo formado pelos produtores. Assim, a ação destes continua se constituindo como momento predominante. Aquele sem o qual todos os outros estágios, anteriores ou posteriores na série causal, permanecem apenas em estado de “potência”.

É o caso de uma linha de montagem robotizada que continua a depender de intervenções cruciais, ainda que esporádicas e pontuais, de apenas alguns trabalhadores supervisores para manter sua produção. Ou do trabalho intelectual dos engenheiros que projetaram e gerenciam essa mesma sequência de operações automatizadas.

Mas, ainda que concordemos com essa persistência do caráter decisivo do trabalho diretamente produtivo, é preciso levar em conta outros aspectos.

De um lado, a redução das posições teleológicas primárias a formas extremamente elementares e desprovidas de sentido para produtores isolados pode ter efeitos negativos decisivos em uma sociedade crescentemente marcada pelo individualismo e pela atomização social.

De outro lado, o mesmo processo que reificou o trabalho nos circuitos de produção, extrapolou a lógica da acumulação/valorização do capital para fora deles, como mostra não só o fenômeno largamente disseminado do consumismo, mas a crescente invasão dos ditames da valorização do capital em várias esferas da vida social.

Um dos aspectos mais evidentes e contraditórios desse processo é o fenômeno econômico conhecido por financeirização, verificado há várias décadas, mas aprofundado nos últimos 30 anos. Trata-se de uma derivação radical daquilo que Marx chamou de “capital fictício” em “O Capital”, assumindo proporções gigantescas na atual economia mundial.

Não se pode menosprezar o fato de que muitos dos integrantes, sujeitos às influências provenientes daquelas posições secundárias, também fazem parte do “trabalhador coletivo” a que Marx se referiu. Estão integrados a diversos tipos de pertencimentos, com variados graus de adesão voluntária e/ou de estranhamento.

Nesta situação, os indivíduos podem apreender com menos dificuldades o fato de que sua submissão a posições e oposições cada vez menos se manifesta de forma binária. Já não é possível apresentar os conflitos na forma de paridades isoladas como: trabalhador/explorado, mulher/sexismo, negro/racismo, homossexual/homofobia, migrante/xenofobia, etc.

Uma mulher pode ser trabalhadora, negra, estrangeira e homossexual e tornar-se vítima tanto da exploração, como do preconceito de cor, da xenofobia e do moralismo. Esta condição torna os mecanismos hegemônicos dominantes pouco eficientes para sustentar a ideia de que vivemos em uma sociedade justa, igualitária, fraterna e que respeita a individualidade e a diversidade.

Desse modo, é possível afirmar que aquele duplo caráter, primário e secundário, da teleologia consciente que define a condição humana, sob o capitalismo transformou-se definitivamente em cisão.

O atual modo de produção exilou para esferas cada vez mais afastadas das atividades diretamente produtivas a geração de sentido de que estas eram capazes em outras condições sociais. Apertar alguns botões e obter um utensílio é muito menos significativo que participar dos vários estágios de fabricação de um produto, por exemplo. 

Seria possível dizer que aquele caráter “sobrenatural” que a concepção idealista enxerga na origem de todas as coisas, se metamorfoseou no materialismo capitalista. Neste, as leis econômicas da exploração do trabalho humano e da natureza é que ganharam um falso caráter natural. Elas são produto humano, mas aparecem como determinismo econômico. É a “mão invisível” do mercado estrangulando a possibilidade de surgirem novas formas de sociabilidade humana.

Felizmente, mesmo esta situação é incapaz de eliminar as contradições sociais que ela mesma implica. A separação entre os chamados movimentos sociais, contra a opressão ou culturais, de um lado, e aqueles ligados ao mundo da produção, de outro, pode encontrar na própria dinâmica capitalista as possibilidades para sua superação. Afinal, ela afeta amplas camadas sociais igualmente pressionadas por suas condições de subalternidade, ainda que esta se manifeste de maneiras e graus bastante diversos.

Nada disso implica dizer que as lutas ditas econômicas, como as sindicais, estão fadadas a reafirmar somente as dinâmicas da teleologia primária. Sua importância continua a ser enorme exatamente porque a dinâmica capitalista continua a depender de sua operação plena. Desse modo, paralisações de qualquer produção que gere valor, seja de bens materiais ou não, e disputas em torno da repartição entre lucros e remuneração da força de trabalho mantêm um enorme potencial de abalo da ordem econômica.

Mas é no âmbito da dominação de classe que as lutas contra a opressão podem fazer a diferença se souberem conferir uma radicalidade subversiva que as meras lutas econômicas não têm. Aliás, nunca tiveram, como já advertia Lênin em sua famosa fórmula sobre a necessidade de romper o economicismo das lutas socialistas.

O dilema histórico que persiste

Em resumo, e tentando voltar ao ponto de partida deste texto, à diluição da “solidez” da vida social imposta pelo capitalismo não adianta responder apenas com lutas limitadas à produção material da vida em seu sentido mais restrito. É no campo dos valores e princípios culturais, ideológicos, morais, enfim, na disputa de hegemonia, que se trava a luta em seu nível mais decisivo. Em defesa de valores anticapitalistas expressos em princípios como solidariedade, a mais ampla justiça social, democratização radical do controle social e igualitarismo associado ao respeito à diversidade de nossa espécie.

Não é necessariamente o desnudamento radical da exploração da humanidade por si mesma que levará mulheres e homens a lutar contra o capitalismo. Na ausência de afirmações sobre como podemos e devemos construir um mundo radicalmente diferente do atual, serão os valores conservadores que prevalecerão. E estes se baseiam no que há de pior, sendo resultado de uma síntese entre o materialismo vulgar e o idealismo supersticioso.

Um trecho do livro “A Grande Transformação” (1944), de Karl Polanyi, talvez nos ajude a entender essa situação:

A Revolução Industrial foi simplesmente o começo de uma revolução tão extrema e radical como as que tinham inflamado outrora ao máximo o espírito das seitas, mas o novo credo era decididamente materialista e afirmava que todos os problemas humanos poderiam ser resolvidos através de um volume ilimitado de bens materiais. (Karl Polanyi - “A Grande Transformação”, p.177 – Lisboa, 2013: Edições 70)

Desse modo, a atual configuração social, que cada vez mais domina o planeta e submete o gênero humano ao capital, conseguiu unir o pior de cada uma das grandes e milenares tradições filosóficas.

De um lado, a sujeição dos seres humanos a um mundo que é sua criação, mas não o reconhecem como tal. Surgem, assim, as oportunidades para que prevaleçam formas de domínio da maioria por alguns poucos. O poder das religiões institucionais sendo o exemplo mais evidente desse fenômeno. De outro lado, a riqueza da existência humana submetida a padrões grosseiros e positivistas de comportamento e a restrição de suas potencialidades a leis econômicas rígidas e determinísticas. A ditadura do mercado sendo sua expressão mais acabada.

É para justificar esta última que surge a ideologia liberal, cada vez mais predominante e que reduz a vida social humana ao nível racional-econômico, num determinismo muito mais estreito do que seus defensores atribuem ao marxismo. É o fascismo ou conservadorismos assemelhados que aprofundam e absolutizam esse mesmo determinismo, seja naturalizando as relações humanas, escravizando-as a papéis sociais determinados pela biologia, seja retomando o fanatismo religioso para justificar a dominação mais obscurantista, ainda que perfeitamente harmônica aos interesses do mercado.

A referência à obra de Polanyi mais acima faz todo sentido porque esse brilhante conterrâneo de Lukács enxergava no fascismo uma resposta à crise provocada pela lógica avassaladora da mercadoria imposta à sociedade. A pior das respostas.

Polanyi a publicou em 1944, quando já começava a ser afastada a ameaça nazifascista. No entanto, exemplos mais recentes de ressurgimento dessa ameaça não faltam. Em especial, com a ascensão ao poder de figuras como Vladimir Putin, Donald Trump, Jair Bolsonaro, Viktor Orbán, Rodrigo Duterte, Narendra Modi, Matteo Salvini, entre outros.

São personalidades que incorporam plena e radicalmente concepções cegas à única natureza humana concreta. Aquela que resulta das inevitáveis contradições de nossa espécie com o restante do mundo devido a nossa tendência a transformá-lo constantemente, sempre em busca de atribuir-lhe sentidos novos ou renovados.

Se tudo o que é sólido desmancha no ar, essa diluição das certezas e valores jamais deixará um lugar vazio. Este será preenchido de um modo ou de outro. Ou por uma forma de sociabilidade que leve a criatividade histórica humana a suas consequências mais extremas e recompensadoras. Ou pelo abandono a uma vida social dominada pela força bruta e uma civilização destinada a chafurdar no caos em que transformou sua própria existência e grande parte da vida à sua volta.

Trata-se, enfim, do ainda insuperável dilema popularizado por Rosa Luxemburgo: socialismo ou barbárie. Se não dedicarmos todas as nossas energias à compreensão do estágio decisivo a que a humanidade chegou para transformá-lo radicalmente, as possibilidades de realizar o enorme potencial emancipatório para o conjunto de nossa espécie continuarão a se dissolver no ar. Com o agravante de que o ar que nos circunda vai se tornando cada vez mais tóxico.

Sérgio Domingues - Julho de 2019

Um comentário:

  1. Muito bom, Sergio. Análises e proposições muito interessantes, trazendo muitos elementos a se pensar. Não tinha lido ainda todo este texto, percebo que é resultado de um grande esforço de análise e compreensão dos nossos tempos mais atuais. Abraço.

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