Dissonância cognitiva. O conceito já existe há muitos anos na psicologia. Mas no debate político contemporâneo, ele diz respeito à impossibilidade de diálogo entre duas concepções de mundo porque seus referenciais de conhecimento são opostos e excludentes.
Por exemplo, quem acredita que a Terra é plana se recusa a ouvir os argumentos científicos e lógicos dos que negam essa afirmação. Quem crê que a sociedade e as instituições brasileiras vêm sendo vítimas de uma conspiração comunista desde o começo do século 20 considera aqueles que a negam como participantes do conluio e ponto final.
Muitos de nós já se viram na situação de tentar debater com esse tipo de postura apelando para dados estatísticos, fatos históricos, saberes científicos seculares. Inútil, na maioria das vezes.
Vamos tentar abordar esse fenômeno a partir do excelente livro “Guerra cultural e retórica do ódio: crônicas de um Brasil pós-político”, de João Cezar de Castro Rocha. Recém-lançada, a obra seria, segundo seu autor, uma etnografia dessas concepções delirantes.
O autor justifica essa metodologia dizendo que seria inimaginável “um antropólogo que, ao escutar o relato de um mito de origem, interrompesse o narrador para asseverar: ‘Não, não é bem assim! O universo começou com o Big Bang…’”.
Trata-se de entender a lógica que produz, preside e justifica fenômenos como o bolsonarismo e sua mais importante doutrina, o “olavismo”, sistema de crenças criado por Olavo de Carvalho. É compreender para combater.
Orvil
Ele é o livro de cabeceira da família Bolsonaro. A bíblia dos saudosos das torturas e mortes da ditadura de 64. O best-seller das bestas-feras da extrema direita nacional. Trata-se do “Orvil”.
O título é “livro” ao contrário. A publicação pretendia ser o espelho do livro “Brasil: Nunca Mais”, lançado em 1985.
“Brasil: Nunca Mais” (BNM) relatava as prisões, torturas e mortes causados pela ditadura de 64. Sua fonte de informações eram documentos da própria Justiça Militar. Portanto, acima de suspeitas.
Foram 707 processos examinados, a enorme maioria deles envolvendo tortura. A publicação não deixava dúvidas: as Forças Armadas adotaram a tortura como política de Estado.
Citemos as palavras de Castro Rocha: “Relatório-vingança, Orvil pretendia virar ‘Brasil: Nunca Mais’ de ponta-cabeça”.
“BNM reescreveu a história do passado recente, a fim de projetar um futuro político no qual a tortura seria eliminada, diz o autor. Orvil reescreveu a história do passado recente, a fim de projetar um futuro político no qual a esquerda seria eliminada”, afirma.
“Orvil” foi concluído em 1987, mas publicado só em 2012. Enquanto isso, circulou ampla e discretamente entre a extrema-direita nacional. Nesse intervalo, já havia feito muito estrago.
Enquanto o governo do país ainda era ocupado por um moderadíssimo partido de esquerda, os ovos das serpentes do fascismo começaram a eclodir. E os filhotes recém-nascidos foram alfabetizados com essa cartilha tétrica, cuja única lição, repetida à exaustão, era a aniquilação do “inimigo vermelho” a qualquer custo.
Segundo o Orvil, a história do Brasil no século 20 foi marcada por quatro tentativas de tomada do poder pelos comunistas.
A primeira começou com a fundação do Partido Comunista no país, em 1922. A segunda ocorreu no período entre 1955 e 1964. A terceira foi impedida pelo golpe militar, em 1964, mas somente seria derrotada definitivamente em 1973, com a derrota da Guerrilha do Araguaia. A quarta tentativa é a mais perigosa e ainda está em curso.
Derrotada em suas tentativas de tomada do poder pela via armada, a esquerda adotou a “guerra cultural”. Aparelhou instituições governamentais, entidades culturais, universidades, a mídia e até organizações religiosas, como a CNBB...
A partir desses lugares, os comunistas fazem seu trabalho de minar e sabotar a família, a religião, a pátria, a propriedade. Trocaram as armas pelos livros, impondo suas concepções por meio de lavagem cerebral.
Enfim, um inacreditável compêndio de delírios paranoicos.
Não fosse pelo Orvil, acreditam seus leitores, todo esse engenhoso e maléfico plano dos vermelhos estaria sendo implementado sem a menor resistência.
Concluído em 1987, o Orvil começou a ser escrito em 1969, tendo como doutrina a Lei de Segurança Nacional, decretada naquele ano. Nela, a palavra “morte” aparece 32 vezes, tendo sempre como alvo pretensos “comunistas”.
Pode-se dizer que o Orvil é o verdadeiro programa de governo de Bolsonaro. É o guia perfeito para sua política de morte, colocada em prática em grande escala graças às oportunidades oferecidas pela pandemia do Covid-19.
“Marxismo cultural” é o nome que Olavo de Carvalho dá a um pretenso plano dos comunistas para tomar o poder no Brasil e no mundo. Mas a estrutura básica dessa noção delirante já se encontrava no Orvil com o nome de “guerra cultural”.
Segundo essa mentalidade, os comunistas têm como missão prioritária tanto destruir instituições “aparelhadas” quanto corroer por dentro as estruturas do Estado democrático.
A estrutura mental de bolsonaristas e olavistas, ou melhor do “bolsolavismo”, gira em torno desse único objetivo. Aniquilar esse imaginário inimigo onipresente e incansável.
Mas a verdade é que foi essa fantasia maluca que se infiltrou nas instituições, não o comunismo. Por exemplo, no Judiciário. Só que nesse caso, trocou-se “ameaça vermelha” por “corrupção sistêmica”. Esta, por sua vez, tornou-se monopólio, adivinhem de quem? Da esquerda. Especificamente, do petismo, que seria o novo “comunismo”.
Daí, a punição à corrupção ter atingido apenas uma pequena parte do sistema. O restante continua funcionando normal e tranquilamente à base de caixa 2, propinas, laranjas, rachadinhas, lavagem de dinheiro, etc.
No topo de todo esse esquema, os atuais ocupantes do Palácio do Planalto. Mas eles podem. Afinal, são os maiores combatentes na “guerra santa” em defesa da nacionalidade brasileira, da família tradicional, da fé cristã contra o perigo vermelho.
Brasil Paralelo
Um dos subprodutos da lógica do Orvil, a bíblia do fascismo nacional, é a produtora de vídeos “Brasil Paralelo”, criada em 2016. Em seu estudo, Castro Rocha explica que a produtora:
...assumiu a tarefa de popularizar a versão do Orvil numa série de documentários históricos muito engraçados (não tinham fatos, não tinham nada), eivados de grosseiros erros factuais...
Um exemplo é o “O reino do terror vermelho”, “curso” oferecido por Lucas Ferrugem, um dos criadores da produtora. Em um trecho, ele afirma:
Na primeira pesquisa sobre Rússia, tu vai encontrar o nome dessas três pessoas Lênin, Stálin e Trotsky. Como que alguém como o Lênin, que vem duma classe média, consegue conquistar um território que, no War, é tão difícil de conquistar? Como é que o cara vira… Um aspecto de poder, mesmo… Como é que o cara vira, da classe média, o detentor dum poder unificado de toda a Rússia?
“War”...
Mais à frente, ele dá outra demonstração de completa ignorância de fatos históricos básicos:
O Hitler subiu [ao poder] em 1929 … Em 1939, desculpa!… E caiu em 1945. O Stálin subiu em 1924 e caiu na década de 1950, foi caindo gradualmente na década de 1950.
Não interessa que Hitler tenha chegado ao poder em 1933 e que Stálin tenha morrido em 1954 ainda muito poderoso. O que interessa é provar a hipótese delirante em que se baseia o Orvil: o “domínio dos vermelhos” sobre a “nação brasileira”.
Olavo, Orvil e família Bolsonaro
Em 5 de dezembro de 2012, durante o último episódio do programa de rádio “True Outspeak”, Olavo de Carvalho, segurando um exemplar da versão impressa do Orvil, mandou um recado significativo:
E, por fim, queria aqui agradecer à família Bolsonaro, Jair, Flávio e Carlos, pela remessa deste livro, “Orvil (...), que é o resultado de um relatório do serviço de inteligência já mais antigo sobre as tentativas dos comunistas de tomar o poder no Brasil; das várias tentativas de revolução comunista. (…) Então, aí, Bolsonaros, muito obrigado pela remessa deste material precioso! Sucesso aí
Realmente, o Orvil e Olavo têm tudo a ver. O que os une é a obsessão doentia pelo “perigo comunista”.
Para exemplificar como funciona a lógica do alto-intitulado filósofo Olavo de Carvalho, Castro Rocha utiliza o clássico silogismo aristotélico que diz: “Todo homem é mortal. Sócrates é homem. Logo, Sócrates é mortal”. Ou seja, no silogismo a conclusão vem após e é decorrente da premissa.
Já no caso do Orvil e de Olavo, o silogismo é invertido. Parte sempre da mesma conclusão: “o perigo vermelho”. Desse modo, independente do conteúdo das proposições, o desfecho nunca muda.
Não interessa a veracidade dos fatos, desde que sirvam para denunciar um imaginário complô comunista internacional.
Segundo o autor, o sistema olavista não passa de um vale-tudo “de ideias fora de ordem, mas imantadas no invariável ponto de fuga: a ameaça vermelha, que nunca cessa”.
No silogismo clássico toda conclusão deve decorrer de premissas.
Já no caso de Olavo de Carvalho, o raciocínio é invertido. Ele parte sempre da mesma conclusão, qual seja “o perigo comunista”, e, depois, adéqua as premissas a ela.
Vejamos um exemplo que seria cômico se não tivesse consequências muito sérias. Está num trecho da obra aqui comentada:
Em outubro de 2019, a deputada federal Bia Kicis divulgou um vídeo caseiro no qual “militantes” das “Fuerzas Armadas Revolucionarias de Colombia — Ejército del Pueblo” (FARC), falando espanhol com irresistível dicção carioca, ameaçavam iniciar a “luta armada” contra políticos do jaez de Jair Messias Bolsonaro, entre outras sandices.
A coisa era tão tosca que, em algumas horas, a deputada reconheceu a falsidade do material e retirou o vídeo de suas redes sociais.
Mas nada disso importa para Olavo de Carvalho. Dias depois, ele decidiu opinar sobre o caso no twitter:
Pouco importa que, em si, o vídeo das Farc seja fake. O sentido do que ele expressa é verdade pura. As Farc SÃO o inimigo principal do Bolsonaro, e têm inumeráveis colaboradores no Brasil.
E essa lógica delirante não para de ganhar adeptos.
O nome de Bia Kicis, por exemplo, está sendo cogitado para a presidência da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara Federal. Trata-se da mais importante comissão daquela casa legislativa.
Diante disso, difícil encontrar um silogismo que não tenha como conclusão a iminência de tragédias ainda maiores.
Olavo de Carvalho, Rasputin nacional
Pois em verdade vos digo: o sistema de crenças Olavo de Carvalho é uma espécie de “Organizações Tabajara” da insensatez brasileira contemporânea, pois todos os disparates costumam convergir para o buraco negro da pregação do mestre.
A afirmação acima está no livro de Castro Rocha, que acrescenta:
Reúna anticomunismo paranoico com uma ideia mofada de alta cultura, acrescente teorias conspiratórias de dominação mundial com atribuição raivosa de analfabetismo funcional para todo aquele que discorde do “seu mestre mandou”, associe a lógica da refutação ao emprego consciente do mecanismo do bode expiatório, relacione a retórica do ódio com palavras de baixo calão e, se ainda assim houver algum contratempo, o mágico tira da cartola uma arrojada tentativa de tomada do poder
Trata-se de um sistema de crenças porque o que Olavo afirma ninguém tem o direito de refutar. O colunista Joel Pinheiro da Fonseca, da Folha, por exemplo, participou de algumas de suas “aulas”. Segundo ele:
Chegou-se ao ridículo de inventar a “virtude” conhecida como “humildade metódica”, segundo a qual o aluno, mesmo quando lhe parecer que Olavo está errado em um ponto particular, tem a obrigação de guardar a impressão para si.
Infelizmente, esse grande pilantra já entrou para a história nacional. Por isso, já foi comparado a Rasputin, o charlatão que fazia a cabeça da família do czar na Rússia imperial. Morreu pouco antes da Revolução Bolchevique.
Olavo de Carvalho, líder do bloco dos ressentidos
“Olavo tem razão”, a frase que desde 2015 ganhou os espaços públicos do País também foi parar em camisetas, cartazes, marchinhas carnavalescas e “repetida em uníssono por entusiasmados não leitores”, diz Castro Rocha.
Mas de onde vem toda essa admiração por um desbocado defensor da mentira como caminho para a verdade?
Segundo o autor, “o ressentimento é uma poderosa força motriz da história”. Talvez, seja difícil comprovar essa tese tão genérica. Mas vejamos o que diz Olavo de Carvalho em seu twitter, em 04/12/2019, em letras garrafais:
MEUS ALUNOS SUPERAM, EM QUANTIDADE E QUALIDADE, A PRODUÇÃO CULTURAL DE QUALQUER UNIVERSIDADE BRASILEIRA. E NÃO CUSTAM AO POVO UM TOSTÃO EM IMPOSTOS.
Olavo nunca se graduou no ensino superior. Claro que não é isso que o desqualifica. O que o torna um charlatão ressentido, líder de muitos outros ressentidos, é considerar sua distância da Universidade como produto de um trabalho de sabotagem de picaretas comunistas que tomaram conta da academia.
Por outro lado, é preciso admitir que ele domina uma “técnica persuasiva do discurso”, afirma Castro Rocha. Por exemplo:
...com ineditismos sem paralelo (Não há nenhum precedente histórico para este fenômeno); com exageros que descaracterizam o objeto (esse império universal da impostura); com generalizações que tornam vazio o enunciado (Mas um cérebro marxista nunca é normal); com afirmações evidentemente falsas, mas cuja veracidade ao mesmo tempo não pode ser facilmente questionada (É verdade: o Brasil é o único país do mundo onde a filosofia é uma especialização...)
Olavo de Carvalho e a paciência do Jó revolucionário
Vejamos o que é a técnica discursiva de Olavo de Carvalho, segundo a explicação de Castro Rocha.
Por se tratar de uma técnica, afirma o autor, ela pode ser ensinada e transmitida. E é o que vemos acontecer por meio dos milhares de olavistas espalhados pela internete.
Castro Rocha destaca vários procedimentos que caracterizam essa técnica. Um deles é a ”desqualificação nulificadora”, que “autoriza a completa desumanização de todo aquele que não seja espelho” das convicções de quem fala.
Muito típico desse procedimento são alguns títulos de vídeos postados no Youtube: “Fulano destrói argumentos de petista” ou “Ciclano detona mimimi de feminista”...
Outro recurso é a redundância, cuja monotonia “pretende antecipar qualquer possível crítica pelo reforço deselegante”, diz o autor.
“A CNBB, enquanto entidade, é parte integrante do movimento comunista, e nada mais”, diz Olavo. Ora, lembra Castro Rocha:
A CNBB, salvo engano, não é outra coisa senão uma entidade! O aposto “enquanto entidade” é mais uma redundância definidora de uma escrita autoritária, pois, ao fim e ao cabo, a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil não poderia ser outra coisa.
Essa redundância frequentemente também assume uma forma hiperbólica: os comunistas aguardam o “momento certo de virar o jogo”. Para isso, podem esperar “dez, vinte, trinta anos, gerações inteiras”.
Ou seja, ironiza Castro Rocha, “ao que tudo indica, alguns desses bastardos da foice e do martelo – malditos sejam! – descobriram a fonte da eterna juventude”. Para os olavistas, diz ele, “como um verdadeiro Jó pós-moderno, o ódio revolucionário é paciente”.
Quisera fosse.
A redundância do olavismo
Falando sobre a redundância presente na escrita de Olavo de Carvalho, Castro Rocha diz:
O excesso desse recurso no texto impresso, diz o autor, em nada contribui para a inteligência da reflexão. Torna-se uma forma autoritária, que inibe a crítica e desmobiliza questionamentos. Afinal, já se disse tudo e mais um tanto de tanta coisa o tempo todo…
O autor cita algumas afirmações muito comuns nos livros de Olavo de Carvalho: ...história toda do Ocidente inteiro; gerações inteiras; movimento comunista em massa; um exército inteiro; a putada comunista inteira...
Outra mania do maníaco astrólogo metido a erudito é a “autoproclamação hiperbólica e confirmatória”. Por exemplo, “eu escrevo mil vezes melhor; o que eu escrevo é vivo, é engraçado”...
Acusar o oponente de ser analfabeto funcional é outra forma de desqualificação olavista muito utilizada. Mesmo que o que esteja em questão não seja nem a leitura nem a interpretação de qualquer texto.
Afinal, como alguém pode discordar das geniais hipóteses do autor, pergunta Castro Rocha. Segundo ele, “quem o faz, batata!, simplesmente não foi capaz de entender a complexidade do texto”.
Os discípulos de Olavo de Carvalho adoram utilizar esses e outros truques e recursos. Com o agravante de que a grande maioria deles não dispõe de formação sólida em área alguma do conhecimento.
O resultado, diz o autor, é o caos cognitivo que domina o cenário brasileiro contemporâneo, numa mescla explosiva de analfabetismo ideológico e idiotia erudita.
O anticomunismo paranoico vem de longa data
Em notícia recente, Marcelo Mesquita, conselheiro da Petrobrás, criticou a troca do presidente da estatal determinada por Jair Bolsonaro. Segundo ele, a decisão mostraria que Bolsonaro “é comunista, assim como o PT...”.
Em seu livro, Castro Rocha traz a seguinte postagem de Olavo de Carvalho, feita em setembro de 2020:
Bolsonaro cure-se dessa sua CEGUEIRA. Não vê que estão usando você como “camuflagem” conservadora de uma ditadura comunista?
Esse tipo de delírio é produto de uma grave paranoia anticomunista disseminada pelo livro Orvil nos meios militares e por Olavo de Carvalho, entre os civis. Mas há antecedentes mais antigos.
Em 1937, o capitão Olímpio Mourão Filho forjou um dossiê contendo denúncias de que os comunistas planejavam tomar o poder no Brasil. Era o Plano Cohen. A fraude chegou às mãos de Getúlio Vargas, que a utilizou como pretexto para instalar a ditadura do Estado Novo.
Vargas aproveitou-se de um forte sentimento anticomunista presente entre os militares desde 1935, data de uma tentativa de tomada do poder pelo Partido Comunista. O movimento pretendia tomar o controle de alguns quartéis estratégicos e fracassou completamente. Seus organizadores foram mortos ou barbaramente torturados. Mas a versão que prevaleceu foi a de que vários soldados foram mortos enquanto dormiam nas casernas.
Mas que ameaça comunista restaria após o fim da União Soviética? Ora, não se deixe enganar, diz Castro Rocha. “Qual a melhor forma de difundir o comunismo em todo o mundo sem que ninguém perceba o que está acontecendo? Ora, acabando com a URSS!”
E a alucinada embarcação segue seu curso...
O anticomunismo neopentecostal
Teologia do Domínio. É assim que Castro Rocha denomina o a versão neopentecostal do anticomunismo paranoico. O mesmo que foi disseminado pelo Orvil, entre os militares, e por Olavo de Carvalho, entre os civis.
Ele cita como exemplo desse fenômeno “Como vencer suas guerras pela fé”, livro de Edir Macedo lançado em 2010. Na publicação, a “batalha do dia a dia” é com o Diabo. Ou melhor, com a “esquerda tentacular, o ‘perigo vermelho’”.
Contra essa demoníaca ameaça, surge um profeta dos mais fanáticos: Silas Malafaia. Em setembro de 2018, o pastor recebeu Bolsonaro em uma das sedes da Assembleia de Deus Vitória em Cristo. Diante dele, profetizou:
Em I Coríntios, Capítulo 1, a partir do versículo 27: Deus escolheu as coisas loucas para confundir as sábias! Deus escolheu as coisas fracas para confundir as fortes! Agora a coisa vai ser mais profunda: Deus escolheu as coisas vis, de pouco valor, as desprezíveis, que podem ser descartadas! As que não são, que ninguém dá importância, para confundir as que são, para que nenhuma carne se glorie diante Dele! É por isso que Deus te escolheu! Então, estenda a mão sobre ele; quem está pelas redes sociais, meu irmão, faça sua oração.
A cena rendeu dezenas de memes nas redes. “Mas, diz o autor, deixamos escapar justamente o elemento decisivo: nessa ocasião, nesse ritual, o pastor ungiu o presidente – nada menos do que isso”.
Milhões de eleitores levaram a sério aquela cena. O que nos parecia mero delírio estava por se impor como trágica realidade.
Quatro fatores para explicar o ascenso do bolsolavismo
Para concluir, segue um sumário do que seria uma explicação do autor para a assustadora ascensão da extrema-direita no Brasil.
Segundo o autor, seriam “quatro fatores cuja inter-relação esclarece o caráter orgânico da ascensão da direita nas últimas décadas”:
1) a intervenção pública de Olavo de Carvalho a partir da década de 1990; 2) muitos jovens foram convencidos de que fazer a oposição aos governos petistas só era possível pela direita; 3) tal característica geracional foi agravada pela difusão da tecnologia digital e sua apropriação criativa e irreverente por uma crescente juventude de direita; e 4) em 2015, a direita começou a disputar as ruas com o campo da esquerda.
Acontece, diz o autor, que o último fator tornou-se:
...o mais visível e muitas vezes o único considerado na ascensão da direita. Por isso, ela é reduzida ao ânimo golpista (...). Proponho que os dois primeiros fatores são os realmente decisivos para desenhar o cenário no qual a eleição de Jair Messias Bolsonaro se tornou possível.
Ou seja, diz ele, o “bolsonarismo não possibilitou o triunfo eleitoral da direita, mas, pelo contrário, a ascensão paulatina da direita, articulada desde meados da década de 1980, preparou a vitória do Messias”.
Teria sido essa ascensão gradual mas crescente que teria escapado à grande maioria das forças da esquerda nacional. Incluindo a extrema superficialidade da democracia por elas defendida.
Mas concluiremos com uma avaliação parecida, apenas acentuando a presença de outro fator: a persistente militarização da aparente democracia pós-ditadura militar.
A ditadura militar acabou. O poder militar, não
Em 04/10/2020, Olavo de Carvalho escreveu no Facebook:
Somente a direita mais imatura e boboca do mundo pode ter tido a ideia magnífica de conquistar a Presidência da República antes de haver dominado nem mesmo um pedacinho das universidades, da mídia e dos sindicatos.
Segundo Olavo, findo o regime militar, o comunismo dominou instituições, entidades classistas, universidades, escolas, mídia e indústria cultural.
Em nível mundial, o fim da própria União Soviética foi pensado para que os comunistas pudessem continuar seu trabalho de subversão da ordem sem levantar suspeitas.
Delirantes, essas afirmações representam uma total inversão do que vem acontecendo na realidade há décadas.
Não foi uma crescente “comunistização” da sociedade que seu seguiu ao fim da ditadura militar. Foi a militarização do cotidiano que se manteve e se aprofundou.
As torturas continuam ocorrendo nas delegacias. As PMs permanecem fortes e independentes em relação aos governantes eleitos. Representam o único braço do Estado realmente presente nos bairros pobres. Há uma legislação de exceção voltada especificamente contra os movimentos sociais.
Por fim, destaquemos recentes notícias segundo as quais desde que tomou posse, Bolsonaro dobrou o número de militares em cargos estratégicos em seu governo e triplicou a presença deles na administração pública.
Não foram os comunistas que continuaram a subverter a ordem, apesar de terem perdido sua “pátria socialista”. São os militares que se mantiveram em lugares-chave das estruturas de poder, mesmo privados de poderes ditatoriais.
A Bolsonaro coube apenas coroar esse trabalho ocupando a cadeira presidencial. Não sem antes ter seu caminho aberto pela quase totalidade das instituições desde a preparação e execução do golpe de 2016.
Fevereiro de 2021
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