Doses maiores

Uma nova história da desigualdade

“O Amanhecer de Tudo: Uma Nova História da Humanidade” é a tradução livre do título de um livro publicado em 2021. Ainda sem tradução do inglês, a obra do antropólogo David Graeber e do arqueólogo David Wengrow chegou causando muita polêmica. E talvez seja possível entender as razões disso a partir do seguinte trecho:

Está claro agora que as sociedades humanas antes do advento da agricultura não estavam confinadas a pequenos bandos igualitários. Pelo contrário, o mundo dos caçadores-coletores, tal como existia antes do advento da agricultura, era um mundo de experimentos sociais ousados, assemelhando-se a um desfile carnavalesco de formas políticas, muito mais do que as abstrações monótonas da teoria evolucionária. A agricultura, por sua vez, não significou o surgimento da propriedade privada, nem marcou um passo irreversível para a desigualdade. De fato, muitas das primeiras comunidades agrícolas eram relativamente livres de divisões e hierarquias. E negando o caráter inevitável das diferenças de classe na vida urbana, muitas das primeiras cidades do mundo foram organizadas de modo fortemente igualitário, sem necessidade de governantes autoritários, ambiciosos políticos-guerreiros ou mesmo administradores mandões.

Resumidamente, o que os dois autores procuram fazer é refutar um grande consenso entre os cientistas sociais que atribui ao surgimento da agricultura e das cidades a origem daquele que é considerado um dos maiores problemas da humanidade: a desigualdade social.

Para eles, não há provas de que houve um momento na história humana marcado por uma espécie de “comunismo primitivo”. Mas nem por isso, defendem que a desigualdade é um traço natural e inevitável das sociedades humanas. Encrenca das grandes.

Para começar, ao autores afirmam que a preocupação com a desigualdade social tem um marco importante na história contemporânea ocidental. Seria a publicação de “A Origem da Desigualdade entre os Homens”, de Jean-Jacques Rousseau, em 1755.

Ocorre, dizem eles, que esse famoso ensaio foi escrito para um concurso realizado na cidade de Dijon. Mas, afinal, por que uma questão como essa preocuparia a elite francesa em pleno século 18, sob domínio absolutista? Uma sociedade em que relações sociais igualitárias ainda estavam longe de se apresentar como um problema.

Graeber e Wengrow respondem lembrando que a Europa daquela época estava sob forte impacto da chegada dos colonizadores às Américas. O contato com os povos daquelas regiões inspirou, por exemplo, obras de iluministas importantes como Montaigne, Leibniz, Montesquieu. Nelas, era descrita a surpresa manifestada pelos nativos ameríndios frente à desigualdade social que encontraram na Europa.

O problema é que os depoimentos publicados nessas obras passaram a ser entendidos como invenções de seus autores para defender suas próprias concepções. Ou seja, seria preferível acreditar que filósofos europeus tiraram da própria cabeça algumas ideias originais e inquietantes do que admitir que elas foram transmitidas por intelectuais e pensadores provenientes das selvas e planícies americanas.

Em estado de natureza, “o homem é o lobo do próprio homem”, disse o filósofo Thomas Hobbes, em sua famosa obra “Leviatã”, de 1651. Segundo Graeber e Wengrow, essa ideia prevaleceu por séculos em relação aos chamados povos primitivos. Para os intelectuais vitorianos, por exemplo, a noção de pessoas buscando conscientemente construir uma ordem social mais justa simplesmente não era aplicável antes da era moderna.

Eles afirmavam que os povos “primitivos” eram não apenas incapazes de autoconsciência política, como privados de pensamento totalmente consciente em nível individual. Seriam prisioneiros de uma “mentalidade pré-lógica”.

Em 1608, o padre francês Pierre Biard tentava evangelizar os Mi'kmaq, indígenas da Nova Escócia, atual Canadá. Mas para sua revolta descobriu que os nativos se consideravam melhores que os franceses, pois diziam:

...vocês estão sempre brigando e brigando entre si. Vivemos pacificamente. Vocês são invejosos e estão sempre caluniando uns aos outros. Vocês são ladrões e enganadores. São cobiçosos e não generosos nem gentis. Quanto a nós, se temos um pedaço de pão, o repartimos com o próximo.

Os Mi'kmaq afirmavam constantemente que eram "mais ricos" do que os franceses. Os franceses tinham mais posses materiais, admitiam, mas seu povo tinha bens mais valiosos: tranquilidade, conforto e tempo. E se escandalizaram quando souberam que havia muitos mendigos na França. Diziam que essa falta de caridade entre os brancos deveria envergonhá-los profundamente.

Como afirmam Graeber e Wengrow, é difícil evitar a impressão de que esses ameríndios viam os franceses como uma espécie em permanente estado hobbesiano de “guerra de todos contra todos”.

Em 1948, Lévi-Strauss publicou “Família e Vida Social entre os Nambikwara”, sobre os indígenas que habitam o noroeste de Mato Grosso. Os autores de “O Amanhecer de Tudo”, descrevem como o grande antropólogo e filósofo se surpreendeu com a maturidade política daquele povo. Com a habilidade de seus chefes em dirigir a comunidade e tomar decisões rápidas em situações de crise, desempenhando com competência e sofisticação o papel de mediadores e diplomatas.

Os autores admitem que vários estudos demonstram que os humanos herdaram de seus ancestrais símios uma tendência instintiva para a dominação e submissão. Mas o que torna nossas sociedades diferentes, dizem eles, é exatamente a capacidade de tomar a decisão consciente de não agir assim.

Aristóteles estava certo quando descreveu os seres humanos como “animais políticos”. E a essência da política, afirmam Graeber e Wengrow, é a capacidade de refletir conscientemente sobre as diferentes direções que uma sociedade pode tomar e de apresentar argumentos sobre por que ela deve seguir um caminho em vez de outro.

Cerca de 6 mil anos separam o surgimento dos primeiros lavradores no Oriente Médio e o aparecimento do que seriam os primeiros estados. Nesse meio tempo, claro que surgiram relações fortemente hierárquicas em sociedades agrícolas, mas também muita resistência a elas.

Na década de 1960, o antropólogo francês Pierre Clastres escreveu sobre sociedades indígenas que são contra o Estado, mas não são apolíticas. Nelas, ser chefe é mais um fardo que um privilégio. Muitas responsabilidades, poucos benefícios. Não adianta dar ordens. É preciso convencer. Ou seja, comparados aos povos europeus, são extremamente politizados.

Estudos recentes mostram que povos inclinados a expandir a agricultura de forma sustentável, sem privatizar a terra ou entregar sua gestão a uma classe de capatazes, sempre encontraram maneiras de fazê-lo.

Posse comunal, redistribuição periódica de glebas e manejo cooperativo de pastagens não são particularmente excepcionais na história humana e foram praticados com frequência durante séculos.

No Neolítico, os povos da Grã-Bretanha, tendo adotado a economia agrícola, parecem ter abandonado o cultivo de cereais e retornado, por volta de 3.300 a.C., à coleta de avelãs como fonte básica de alimento vegetal. Por outro lado, mantinham seus porcos domésticos e rebanhos de gado.

Esse tipo de relação com a natureza existiu em toda a Europa, das Terras Altas da Escócia aos Balcãs, antes e em tempos recentes. E seria possível citar outros exemplos, como o sistema “mash'a” palestino ou o “subak” balinês.

Mesmo em partes do continente americano, a tendência geral por cerca de 500 anos antes da chegada dos europeus foi o abandono gradual do cultivo do milho e do feijão, em alguns casos, realizado há milhares de anos, e o retorno a um modo de vida forrageiro (coletor-caçador).

Todos esses povos parecem não ter sido forrageadores nem pastores, mas algo intermediário. E mostrariam que a adoção da agricultura não leva necessariamente à propriedade privada, desigualdade social e formação de hierarquias rígidas sustentadas por estados.

Pelo menos, é o que defendem nossos autores, segundo os quais, acreditar no contrário seria reduzir a história humana a um rígido determinismo eurocêntrico e anacrônico.

Ao discutir o conceito de propriedade entre os povos não europeus Graeber e Wengrow lembram que:

A apropriação colonial de terras indígenas muitas vezes começou com alguma afirmação geral de que populações formadas por caçadores-coletores realmente viviam em um estado de natureza – o que significava que elas eram consideradas parte da terra, mas não tinham o direito de possuí-la.

Em 1690, John Locke publicou o “Segundo Tratado do Governo”, argumentando que o direito de propriedade é natural e deriva necessariamente do trabalho. Portanto, terras usadas apenas para caça e coleta foram consideradas vagas e passíveis de serem apropriadas pelos colonizadores. Quem se opusesse estaria violando uma lei natural. Poderia ser punido, eliminado ou escravizado.

No entanto, dizem nossos autores, o que parecia aos colonizadores uma selva intocada geralmente eram terrenos ativamente manejados por populações originárias há milhares de anos por meio de queimadas controladas, capina, fertilização e poda. Além de prepararem terraços para estender o habitat de determinadas plantas, jardins de moluscos para melhorar a reprodução de mariscos, açudes para pescar algumas espécies de peixe, e assim por diante.

O fato, concluem eles, é que os povos forrageiros (caçadores-coletores) tinham concepções extraordinariamente complexas e sofisticadas de propriedade. Às vezes, esses sistemas formavam a base para um acesso diferenciado aos recursos, resultando em algo como classes sociais. Geralmente, porém, esse processo não se consolidava, porque essas sociedades procuravam impedir que surgisse um poder coercitivo.

Ainda sobre o conceito de propriedade Graeber e Wengrow lembram que entre muitos povos ameríndios:

Muitas vezes, os verdadeiros “donos” da terra ou de outros recursos naturais eram deuses ou espíritos. Humanos mortais são meramente posseiros, caçadores eventuais ou, melhor ainda, zeladores.

Não é incomum, dizem eles, que etnógrafos que trabalham com sociedades indígenas amazônicas descubram que quase tudo ao seu redor tem um dono, de lagos e montanhas a cipós e animais. Mas tal propriedade sempre carrega um duplo sentido: quem possui, tem o dever de cuidar.

Muito diferente da concepção de propriedade segundo o direito romano, que fundamenta muito do que se tornou a legalidade ocidental. Nela, a posse é definida segundo três direitos básicos: “usus” (o direito de usar), “fructus” (o direito de usufruir dos produtos de uma propriedade, por exemplo, o fruto de uma árvore) e “abusos” (o direito de danificar ou destruir). Se alguém tiver apenas os dois primeiros direitos, não é considerado legítimo proprietário. Propriedade verdadeira, portanto, seria a que apresenta a possibilidade de destruí-la.

É esta ideia de propriedade que acabou prevalecendo no mundo ocidental e foi imposta ao restante do planeta. E olhando para a destruição ambiental que nos rodeia, difícil discordar de que segundo essa lógica, propriedade e destruição são sinônimos.

Reafirmando o que disseram nossos autores, entre muitos povos ameríndios, os seres humanos são meros zeladores dos recursos naturais. Mas, infelizmente, no caso dos povos marcados pelas tragédias da colonização, não há zelo capaz de proteger a eles e ao restante da natureza.

Engels usou os iroqueses como exemplo do comunismo primitivo em sua obra “A Origem da Família, Propriedade Privada e Estado”, de 1884. Graeber e Wengrow entendem que o conceito de “comunismo”, neste caso, se refere à propriedade comunal, particularmente de recursos produtivos.

No entanto, nossos autores propõem usar a palavra não como um regime de propriedade, mas no sentido original de “de cada um de acordo com suas habilidades, a cada um de acordo com suas necessidades”.

Na visão ameríndia, a liberdade individual estava ligada a certo nível de "comunismo de base", afirmam Graeber e Wengrow. Afinal, pessoas que passam fome ou não têm roupas adequadas ou abrigo em uma tempestade de neve não são realmente livres para fazer muito além de se manter vivo. Já a concepção europeia-colonizadora de liberdade individual ficou inevitavelmente ligada à propriedade privada.

Na sociedade em que vivemos, a produção abundante de alimentos torna pouco dispendioso eliminar totalmente a fome, por exemplo. Mas as relações sociais vigentes não permitem. E não se trata apenas de um problema de distribuição desigual de recursos. Trata-se também de desigualdade na liberdade de acessar uma riqueza produzida por todos.

Registros antropológicos mostram que muitas sociedades na história humana permitiram que seus membros garantissem uns aos outros os meios para uma vida autônoma. Ou pelo menos assegurassem que nenhum homem ou mulher se subordinasse a outro. Na medida em que podemos falar de comunismo, dizem nossos autores, ele existiu não em oposição, mas em apoio à liberdade individual. Comunismo primitivo? Pode até ser, mas muito sofisticado.

No capítulo“Sobre as mulheres cientistas” Graeber e Wengrow dizem que as mulheres foram responsáveis por grande parte do trabalho intelectual e braçal nos primeiros experimentos humanos na manipulação de vegetais.

Muito pouco do que foi feito culturalmente com plantas sobrevive desde os tempos pré-históricos, afirmam. Mas onde existem evidências, elas apontam para fortes associações entre mulheres e conhecimento baseado em plantas. E não apenas como atividade prática, mas também no desenvolvimento de formas abstratas de conhecimento.

Tecidos, cestaria, redes, esteiras e cordames foram muito provavelmente desenvolvidos em paralelo com o cultivo de plantas comestíveis, o que implica também o desenvolvimento da matemática e geometria envolvidas em tais ofícios.

Em vez de campos fixos, elas exploravam solos aluviais nas margens de lagos e nascentes, que mudavam de local de um ano para outro. Em vez de cortar madeira, arar campos e carregar água, elas encontraram maneiras de “persuadir” a natureza a fazer grande parte desse trabalho por elas. A sua não era uma ciência de dominação e classificação, mas de dobrar e persuadir, nutrir e adular, ou mesmo enganar as forças da natureza, para aumentar a probabilidade de garantir resultados favoráveis. Seu "laboratório" era o mundo real da flora e fauna. Um modo de cultivo muito bem sucedido.

As mulheres neolíticas, concluem nossos autores, transformaram um mundo sem laboratórios em um mundo em que os laboratórios estão potencialmente em todo e qualquer lugar.

Em tempos de colapsos ambientais, imprescindível resgatar o enorme potencial desse modo feminino de ecologia.

Certo senso comum científico afirma que grandes populações não podem funcionar sem soberanos que tomam as decisões, executivos que as colocam em prática e burocratas que as administram. Além, claro, de algum tipo de monopólio de força repressiva.

Exemplos clássicos desses arranjos seriam as sociedades do Egito Antigo. Mas Graeber e Wengrow questionam tais afirmações. O problema, dizem eles, é que as evidências disponíveis mostram que os agricultores egípcios eram perfeitamente capazes de coordenar sozinhos a gestão das águas e, na maioria dos casos, os burocratas não se envolviam nesses assuntos. Enquanto isso, muitos soberanos simplesmente não se importavam com a forma como seus súditos mantinham seus sistemas hídricos.

Na verdade, dizem nossos autores, os primeiros sistemas de controle administrativo surgiram em comunidades muito pequenas. A primeira evidência clara disso aparece em vários pequenos assentamentos pré-históricos no Oriente Médio, por volta de 7.400 aC. Mais de 2 mil anos antes do aparecimento de qualquer coisa que lembrasse uma cidade.

Ao mesmo tempo, no império Inca, por exemplo, existiam comunidades chamadas Ayllus, que tinham como uma das principais funções redistribuir terras agrícolas entre as famílias, para garantir que nenhuma ficasse mais rica do que a outra.

Segundo os autores, em muitas partes do mundo e em várias épocas, surgiram iniciativas comunitárias que buscavam realizar o verdadeiro sentido do conceito de civilização. No interior ou nas franjas de grandes estados, lutavam contra o poder de reis, burocratas e exércitos, tentando promover justiça social e crescimento igualitário.

Resgatar tais experiências é apostar no melhor da humanidade

É comum debater se o carnaval e outras festas populares têm realmente um caráter subversivo ou, na verdade, são eventos que permitem às pessoas comuns dar vazão aos seus anseios por liberdade antes de retornar aos hábitos cotidianos de submissão.

Para Graeber e Wengrow, porém, acontecimentos desse tipo mantêm viva “a velha centelha da autoconsciência política”. Em seu livro “O Amanhecer de Tudo”, eles lembram que o Primeiro de Maio foi escolhido como a data da luta internacional dos trabalhadores em grande parte porque, historicamente, muitas revoltas camponesas britânicas começaram naquele dia, que inaugurava um festival desenfreado. Para muitas sociedades, dizem eles, esses momentos festivos podem ser lidos como uma verdadeira “enciclopédia de formas políticas possíveis”.

Para concluirmos estes comentários sobre o livro, uma última citação:

Está claro agora que as sociedades humanas antes do advento da agricultura não estavam confinadas a pequenos bandos igualitários. Pelo contrário, o mundo dos caçadores-coletores, tal como existia antes do advento da agricultura, estava cheio de experimentos sociais ousados, assemelhando-se muito mais a um desfile carnavalesco de formas políticas do que às abstrações monótonas da teoria evolucionária. A agricultura, por sua vez, não significou o surgimento da propriedade privada, nem marcou um passo irreversível para a desigualdade. De fato, muitas das primeiras comunidades agrícolas eram relativamente livres de divisões e hierarquias. E longe de tornar as diferenças de classe cláusulas pétreas, muitas das primeiras cidades do mundo foram organizadas em linhas fortemente igualitárias, sem necessidade de governantes autoritários, ambiciosos políticos-guerreiros ou mesmo administradores mandões.

Sendo assim, que as alas se abram para dar passagem à persistente e milenar resistência popular!

Fevereiro de 2022

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