Doses maiores

6 de outubro de 2022

O irracionalismo fascista da psicologia de capitão

Organizar a nação consoante princípios de obediência tão fortes e indisputados como os que presidem às cadeias de comando militares e, ao mesmo tempo, proceder a uma mistificação de igualdade formal entre as pessoas de todas as classes sociais tão ilusória e poderosa como a democratização suscitada pela presença iminente da morte nas trincheiras – este paradoxo, que o fascismo conseguiu implantar na realidade, só era possível depois da guerra e em função dela. 


O segredo da política interna fascista consistiu em fomentar um espírito de guerra em tempo de paz. Um crítico sagaz do nazismo observou que “a Alemanha aprendeu as lições de 1914, compreendeu que a preparação para a guerra tem de começar durante a paz, que guerra e paz deixaram de ser duas categorias distintas e constituem duas expressões de um mesmo fenômeno – o fenômeno da expansão”.

Os trechos acima são do livro “Labirintos do Fascismo”, de João Bernardo. Em relação a nossa situação atual e local, similaridades aparecem quando ele descreve alguns dos principais aspectos da ideologia fascista: 

...a apologia da morte, o fascínio pela vertente destruidora da civilização mecânica, o afã sádico de mandar e o paradoxal prazer masoquista da obediência, a exaltação da novidade sem ultrapassar as sombras da tradição, a face escanhoada. Que prosaico! Será que a mística do irracionalismo não foi mais do que uma psicologia de sargento?

É certo que não há veteranos de guerra entre os fascistas tupiniquins. Mas é assim que eles se sentem na sua delirante luta contra o comunismo. Portanto, irracionalismo não lhes falta e um capitão tresloucado faz as vezes do sargento.

4 comentários:

  1. "a exaltação da novidade sem ultrapassar as sombras da tradição" - chocante e delirante.
    Perfeita análise. Obrigado por compartilhar. Sempre achei algo de esquizofrênico nesse povo. Há um conceito freudiano (não gosto desse mentiroso, mas...) que nos diz da identificação, modelada na representatividade de um indivíduo (como a sereia Ariel preta, como o porteiro que usa farda com Bolsonaro...). Salvo engano (e posso estar "estendendo" o conceito), Freud chama de "transferência" a algo diverso da "projeção", que é, mais precisamente um "Mecanismo de Defesa" psicológico em que determinada pessoa "projecta" seus próprios pensamentos, motivações, desejos e sentimentos indesejáveis numa ou mais pessoas. Na transferência, o indivíduo "projecta" para o líder (ou para um outro capaz de imantá-lo) seus desejos, seus valores, sua cosmovisão, subjacentes a seus medos e delírios... (nesse caso, não só dentro da clínica).
    Segundo Laplanche e Pontalis (1992, p. 668), a transferência “designa em psicanálise o processo pelo qual os desejos inconscientes se atualizam sobre determinados objetos no quadro de um certo tipo de relação estabelecida com eles, e eminentemente, no quadro da relação analítica” (roubado do google).

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    1. Nossa, muito bom! Comentário e aula, ao mesmo tempo. Esses trechos do Freud estão na "Psicologia de Massas"? João Bernardo é ótima leitura, também. Valeu!

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  2. Nossa, cada parágrafo é uma discussão enorme, não no sentido da discordância, mas no aprofundamento da proposição. O primeiro me parece meio discordante do resto das afirmações do autor e do tom geral dessa Pílula: "...o fascismo conseguiu implantar na realidade, só era possível depois da guerra e em função dela." E depois, em especial, essa frase: !"compreendeu que a preparação para a guerra tem de começar durante a paz". Essa ordem fascista paradoxal do primeiro parágrafo só era possível de existir no período de guerra? Ou o fascismo se implanta em tempos que antecedem as guerras como no outro parágrafo? Acho que não entendi, ou se entendi não concordo com esse primeiro parágrafo. A maioria dos autores (pelo menos os que conheço) afirmam que o fascismo se implanta em tempos de paz, inclusive foi isso com o nazismo, para aí sim instaurar a guerra. E o que importa nessa discussão é saber se o neofascismo que enfrentamos é de fato uma preparação para guerra (não acredito igual a que conhecemos das anteriores) ideológica mais aberta e franca. Então, é o que importa mais ainda é barrarmos essa preparação. Portanto, derrotar o neofascismo bolsonarista nessa eleição é tarefa de todo comunista. Vamos à luta.

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    1. Bom, acho que é um consenso que o fascismo europeu só cresceu graças ao ressentimento resultante das derrotas ou frustrações com a primeira guerra. Na Itália, porque foi preterida no butim e Alemanha pela humilhação que teria sofrido. É ressentimento, ingrediente fundamental para o fascismo. Mas ressentimento decorrente de perdas bélicas é outro patamar. Muito mais potente. Quanto a se preparar para a guerra na paz, acho que é o lance de manter o ânimo beligerante. E aí, é isso. O fascismo cresce melhor na paz que é entendida como paz dos derrotados, frustrados, etc. O bolsonarismo é exatamente isso. Paz dos ressentidos.

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