Nascido em Singapura e diplomata por 30 anos atuando na região asiática, Mahbubani adota em seu livro um ponto de vista liberal. Este enfoque deixa de capturar as enormes contradições que envolvem o gigante asiático em um sistema econômico global em constante crise e dando sérios sinais de esgotamento histórico.
Ainda assim, as informações que a obra traz e a abordagem que adota dão pistas importantes sobre as características da China, sua sociedade e sistema de dominação. Por isso, as próximas pílulas trarão comentários sobre o livro, na tentativa de ajudar a esclarecer o que poderíamos chamar de enigma chinês.
Por enquanto, fiquemos com duas teses provocativas do autor. Na primeira, Mahbubani afirma que do século 1 ao 19, China e Índia dominaram a economia mundial. Os 200 anos posteriores de predomínio anglo-saxônico, portanto, seriam apenas uma curta interrupção dessa hegemonia asiática que começa a impor-se novamente.
A segunda: na Guerra Fria que opunha Estados Unidos e União Soviética, esta última se caracterizaria por sua rigidez econômica e política, enquanto os estadunidenses contavam com uma flexibilidade maior, proporcionada pela melhor adequação de sua economia de mercado às necessidades de uma acumulação capitalista cada vez mais globalizada.
Na atual “guerra fria”, seriam os Estados Unidos que encontram sérias dificuldades para se adequar aos novos desafios da economia mundial, enquanto o gigante asiático, autointitulado comunista, se movimenta com grande desenvoltura pelo cenário internacional.
Guerra fria de sinais trocados
Ou seja, segundo Mahbubani, na Guerra Fria, os Estados Unidos eram frequentemente flexíveis e racionais na tomada de decisões, enquanto a União Soviética era rígida e doutrinária.
Hoje, aconteceria o contrário, diz ele. Os Estados Unidos se comportam como a União Soviética, e a China age como os Estados Unidos.
Por exemplo, observa o autor, é irracional que os Estados Unidos aumentem seus gastos militares, pois já possuem armas suficientes para destruir a China várias vezes. Portanto, o lógico seria que os estadunidenses reduzissem seus gastos militares e redirecionassem recursos para áreas críticas, como pesquisa e desenvolvimento tecnológico.
Os Estados Unidos têm 6.450 armas nucleares dos Estados Unidos. A China tem 280. Mas, se 280 é suficiente para impedir a América (ou a Rússia) de lançar um ataque nuclear à China, por que pagar mais?
O problema é que os gastos com defesa estadunidenses não são decididos segundo uma estratégia racional, mas são produto de um complexo e poderoso lobby da indústria armamentista e de equipamentos pesados.
Enquanto isso, diz Mahbubani, os chineses não estão aprisionados por nenhum lobby desse tipo. Estão mais preparados para tomar decisões coerentes de longo prazo para manter a China segura.
Para completar a ironia da situação, o autor lembra que, perto de sua derrocada, a União Soviética envolveu-se em uma invasão desastrosa do Afeganistão. Hoje, adivinhem quem está gastando trilhões de dólares em uma ocupação militar daquele mesmo país?
Potência x resistência
“Os Estados Unidos conhecem seu rival chinês?” pergunta Mahbubani.
Segundo o autor, os estadunidenses cometem um erro fundamental de percepção quando, por exemplo:
...veem o PCC como um Partido Comunista Chinês. Isso implicaria que a alma do PCC estivesse inserida em suas raízes comunistas. No entanto, aos olhos de muitos observadores asiáticos objetivos, o PCC realmente funciona como o "Partido da Civilização Chinesa". Sua alma não está enraizada na ideologia estrangeira do marxismo-leninismo, mas na civilização chinesa.
Mas quando os chineses olham para seus dois mil anos de história, afirma, eles têm plena consciência de que os últimos 30 anos sob o regime do PCC foram os melhores desde que a China foi unificada, em 221 a.C.
A única civilização antiga a cair e se reerguer quatro vezes é a chinesa. Uma civilização notavelmente resistente. Por outro lado, diz Mahbubani, o maior erro estratégico que a China pode cometer é subestimar a força dos Estados Unidos. “Este país, afirma ele, surgiu do nada 250 anos atrás. É muito mais jovem que a China. Porém, apesar de sua juventude ou talvez por causa dela, é uma das sociedades mais dinâmicas já criadas na história da humanidade”.
Por isso, ele conclui:
Um dos principais objetivos deste livro é afastar a espessa névoa de mal–entendidos que envolveu o relacionamento sino–americano, para permitir que ambos os lados entendam melhor – mesmo que não possam aprovar – os principais interesses de cada um.
É um objetivo tão ambicioso quanto improvável de ser alcançado.
Como ignorar 1,4 bilhão de consumidores
Outro aspecto importante mostrado por Mahbubani é a situação contraditória da rivalidade comercial sino-americana.
A venda de aviões da Boeing para a China, por exemplo, subiu de US$ 1,2 bilhão, em 1993, para US$ 11,9 bilhões, em 2017. Já a GM vendeu aos chineses, em fevereiro de 2017, mais automóveis do que na época em que era a maior montadora do mundo.
Mas quando Donald Trump lançou uma guerra comercial contra a China, em 2015, nem Boeing nem GM se opuseram.
A principal queixa do governo estadunidense era que a China se tornou integrante da Organização Mundial do Comércio (OMC), em 2003, na condição de país em desenvolvimento. Na época, sua renda per capita era de US$ 2.900, semelhante à do Paquistão e Iêmen.
Em 2015, porém, a renda per capita chinesa havia aumentado para US$ 14.400 e sua economia tornara-se a segunda maior do mundo. Apesar disso, os chineses continuavam alegando necessitar das regras especiais da OMC para países em desenvolvimento.
Com isso, dizia Trump, as empresas chinesas desfrutariam de melhores condições para competir fora da China do que as oferecidas pelos chineses a empresas estrangeiras em seu país.
É nesse cenário que as propostas de Trump ganharam força. Ele quer que as grandes empresas americanas desloquem seus investimentos da China para outros lugares ou os levem de volta aos Estados Unidos.
O problema, lembra Mahbubani, é ignorar um mercado com 1,4 bilhão de consumidores. O maior de toda a história humana.
Este é só um exemplo das enormes contradições que opõem esses dois gigantes, mas também os mantêm amarrados um ao outro.
Mandarinatos esclerosados
Kishore Mahbubani lembra que os mandarins da dinastia Qing, senhores da China do século 19, não perceberam que a ascensão ocidental significava que a China precisava mudar de rumo. Resultado, o poderoso império de 18 séculos começou a ruir.
Hoje, é o império estadunidense que precisaria mudar de rumo para fazer frente ao forte crescimento do lado oriental do planeta. Mas dificilmente seus “mandarins” conseguirão fazer isso.
Geralmente, diz Mahbubani, governos eleitos democraticamente são mais flexíveis e adaptáveis do que sistemas políticos considerados rígidos e esclerosados, como o da China contemporânea.
O problema, alerta o autor, é que sob o disfarce de uma democracia em funcionamento, a sociedade estadunidense passou a ser dirigida por uma aristocracia endinheirada.
Mahbubani atribui essa situação principalmente a uma decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos tomada em 2010, que derrubou muitas das restrições legais ao uso do dinheiro para influenciar o processo político.
Desse modo, diz o autor, as decisões do sistema político estadunidense já não seriam determinadas pelos eleitores, mas pelos financiadores de campanhas eleitorais.
Na verdade, essa situação política é muito anterior a 2010. Mas, de qualquer maneira, Mahbubani parece acertar ao dizer que o sistema de dominação estadunidense está se tornando tão rígido quanto a antiga dinastia Qing.
E não só do ponto de vista político. A “América” há muito tempo também deixou de ser capaz de sustentar a ilusão de que é a terra das oportunidades para todos.
O poder da classe média
Os Estados Unidos não apenas estão se tornando uma sociedade dominada por um sistema político cada vez mais antidemocrático. Nas últimas décadas, o número de bilionários também explodiu por lá. Assim como cresceu a pobreza.
Como diz Mahbubani:
O país está deixando de se tornar a sociedade de classe média que seus fundadores trabalharam para criar como uma reação ao feudalismo que os colonos deixaram para trás na Europa.Enquanto isso, diz ele, os 50% da população chinesa que viviam na pobreza extrema em 1981 foram reduzidos a menos de 5%, atualmente. Ou seja, agora é a classe média chinesa que estaria em forte crescimento.
Mas, observa o autor:
A história europeia nos ensinou que a sociedade feudal foi destruída com mais eficácia quando o capitalismo produziu classes médias que desafiaram a autoridade estabelecida.
Claro que não há nada de feudal na China contemporânea. Mas uma grande classe média costuma exigir maior participação política. E ainda que suas exigências não sejam necessariamente por mais democracia, podem incomodar e desestabilizar os regimes mais sólidos.
Por outro lado, arrisca Mahbubani:
Enquanto o governo chinês continuar a proporcionar crescimento econômico (com melhorias nas condições de vida, incluindo melhores condições ambientais) e estabilidade social e política, o povo chinês aceitará o governo do Partido Comunista.
É verdade. Mas a China não está imune às contradições cada vez mais agudas do sistema capitalista global. Ao contrário, está cada vez mais exposta a elas. Portanto, seria importante acolher com moderação o otimismo de Mahbubani em relação à estabilidade do império chinês.
Caçando com o gato chinês
Segundo Mahbubani, ao contrário da antiga União Soviética, a China não está tentando desafiar ou ameaçar a ideologia americana. Ao tratar o desafio chinês de modo semelhante à antiga estratégia soviética, os Estados Unidos estariam cometendo um erro estratégico clássico: “travam uma guerra de amanhã com estratégias de ontem”.
Segundo o autor, um dos equívocos estadunidenses é achar que os chineses estão travando uma guerra ideológica. Ao contrário disso, afirma o autor:
A China não acredita que tenha como missão "universal" promover a civilização chinesa e incentivar todos os demais povos da humanidade a imitá-la. Já os americanos acreditam sinceramente que defendem valores universais e que o mundo seria um lugar melhor se todos os adotassem e os implementassem.
Para o autor, o maior erro que qualquer líder chinês poderia cometer seria adotar uma postura rígida, ideológica e doutrinária. Embora muitos deles reafirmem seu compromisso com Marx e Mao, afirma Mahbubani, também sabem que essas referências devem ser colocadas em prática de maneira flexível.
O grande responsável pela adoção desse pragmatismo foi Deng Xiaoping, que começou a mudar os rumos da China em 1978, após a morte de Mao Tsé-Tung. Na época, ele deixou claro sua política com a seguinte frase: “Não importa a cor do gato, desde que ele cace o rato”.
“Quem não tem cão, caça com gato”, diz um famoso ditado ocidental. Para azar do imperialismo estadunidense, o capitalismo mundial pode resolver descartar o cão ianque, cada vez mais lento e míope, para adotar o ágil e dissimulado gato chinês.
Democracias duvidosas
Para alguém nascido entre os 10% mais pobres nos Estados Unidos, especialmente os negros, a chance de ser encarcerado é, pelo menos, cinco vezes maior que na China.
No trecho acima, Mahbubani relativiza a imagem de que o sistema político chinês seria muito mais repressivo que o estadunidense.
Mas a questão é mais complexa, admite o autor. Segundo ele:
Na cultura política chinesa, o maior medo é do caos. Quando o povo chinês pode escolher entre um forte controle central e o caos da competição política, eles tendem a escolher quase instintivamente a primeira alternativa.
Ainda segundo Mahbubani, uma das principais razões pelas quais os chineses valorizam a ordem é que eles são muitos e vivem próximos demais uns dos outros. Qualquer erro traria consequências graves.
Para reforçar essa ideia, ele lembra as consequências do "Grande Salto Adiante". Esta política criada por Mao Tsé-Tung, em 1958, teria matado de fome até 30 milhões de chineses.
Episódios como esse, afirma o autor, mostrariam aos chineses que eles possuem margens muito estreitas para erros. Desse modo, seria melhor privilegiar a ordem a arriscar mudanças mais ousadas.
Mas, além disso, haveria outro elemento importante, diz Mahbubani. Trata-se do fato de que nos últimos trinta anos, muitas sociedades do mundo sofreram enorme frustrações com os modelos democráticos liberais ocidentais.
Nada do que está aí acima legitima o sistema de dominação chinês. Apenas mostra como as chamadas democracias ocidentais estão muito longe de servir como referência para a luta dos trabalhadores chineses. Especialmente, a democracia racista estadunidense.
Democracias inviáveis
Mahbubani explica de forma surpreendente porque a instauração de uma democracia não daria certo na China. Vejamos:
Se, repentinamente, a China se tornasse uma democracia típica, diz ele, as vozes políticas que dominariam seu cenário político não seriam calmas e tranquilizadoras como as de líderes como Kennedy ou Obama. O mais provável é que assumissem o comando nacionalistas raivosos, como Donald Trump.
Um governo chinês eleito democraticamente estaria sob grande pressão política para fazer o que Trump fez: retirar-se de acordos comerciais com os Estados Unidos e remover todas as restrições ao rápido desenvolvimento econômico da China.Em vez disso, um PCC não democrático pode fazer cálculos de longo prazo sobre o que seria bom para a China e o mundo. Seria baseada nisso que a liderança chinesa decidiu manter-se no Acordo de Paris, sobre emissão de gases-estufa.
Teoricamente, os partidos comunistas chinês e soviético são organizações muito parecidas. Mas na prática, são opostas, diz Mahbubani. O partido chinês não é dirigido por velhos e poderosos burocratas. Em vez disso, tornou-se um sistema de governança meritocrático, que permite apenas a seus melhores quadros chegarem aos níveis mais altos, afirma o autor.
Além disso, as lideranças chinesas alegam que ao falar em promover a democracia em seu país, o verdadeiro objetivo dos Estados Unidos é criar uma China desunida e caótica.
Difícil discordar diante do histórico golpista dos Estados Unidos. Mas as conclusões de Mahbubani também explicitam a farsa em que se transformaram os ideais democráticos sob o sistema capitalista.
Estados Unidos x China: o capitalismo vencendo
Concluindo os comentários sobre o livro de Kishore Mahbubani, destaquemos aquilo que o autor aponta como o grande erro estratégico cometido por China e Estados Unidos em sua relação mútua. Trata-se da incapacidade de suas lideranças compreenderem que, juntas, elas teriam muito a ganhar.
Mas levando em conta tudo o que Mahbubani relata, poderíamos acrescentar outro erro estratégico. Seria aquele cometido pelos socialistas em relação à rivalidade sino-americana.
Trata-se de acreditar que essa polarização tão fundamental para o mundo atual oponha dois sistemas antagônicos.
Na verdade, o que a obra acaba involuntariamente nos revelando é uma rivalidade muito forte sobre qual força está melhor preparada para manter operante um único sistema, o capitalista.
E a situação fica ainda mais grave quando um autor liberal como Mahbubani defende o modelo chinês, assumindo que ele é superior ao estadunidense porque já não há como administrar o capitalismo preservando nem mesmo as aparências de qualquer participação democrática mais ampla.
Há quem diga que a China não está se rendendo ao capitalismo. Seria o capitalismo que estaria se submetendo aos objetivos chineses. Cada um acredita no que quiser.
O fato é que tudo indica que o modelo chinês está se transformando na boia de salvação do capitalismo. Um modelo ainda mais autoritário, ainda mais submetido à ditadura da circulação das mercadorias e que tende a agravar a crise ambiental.
Que o sistema proposto pela China pareça servir melhor à globalização capitalista do que o estadunidense só quer dizer uma coisa. Que o capitalismo está vencendo por lá, também. E para os socialistas, trata-se, acima de tudo, de derrotá-lo.
Outubro de 2020
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