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17 de agosto de 2021

Alforria, democracia racial e meritocracia

Joaquim Barbosa Neves nasceu escravizado em 1780, na cidade de Itu, São Paulo. Alforriado na infância, aos 23 anos de idade já era dono de dois cativos, trabalhava como mascate e servia no batalhão de milícia local. Aos 25, tinha três escravos, tornara-se alferes da milícia e obteve da Câmara Municipal de Porto Feliz licença para abrir uma loja de secos e molhados. Quando morreu, era dono de um engenho de açúcar com 41 escravos e emprestava dinheiro a juros para outros fazendeiros. Seus filhos tiveram padrinhos brancos e ocuparam cargos importantes na administração pública.

No século 19, alguns descendentes de alforriados tornaram-se escultores, arquitetos, pintores, músicos, escritores e outros artistas, como Machado de Assis, Lobo de Mesquita e José Maurício Nunes Garcia. O patriarca da família Rebouças, da Bahia, foi advogado e deputado provincial. Um de seus filhos, o engenheiro André Rebouças, seria abolicionista e amigo da princesa Isabel.

Francisco de Sales Torres Homem, filho de padre com uma negra alforriada, foi ministro do Império, diretor do Banco do Brasil e ganhou de dom Pedro 2º o título de visconde de Inhomirim. Mesmo sendo abolicionista, preferia usar perucas e pó de arroz para disfarçar suas características negras.

Os relatos acima estão no livro “Escravidão”, de Laurentino Gomes. Segundo ele, mostrariam como o “surgimento de uma elite mestiça brasileira” foi possibilitado pela frequente adoção da alforria no sistema escravista brasileiro. Também seria elemento importante para explicar o surgimento dos mitos da democracia racial e da meritocracia como única via para a ascensão social. A alforria acabou, mas o mecanismo racista do qual fazia parte continua resistindo.

Leia também: A alforria como engrenagem da escravidão

5 comentários:

  1. Muito boa essa consideração! assim como "A alforria como engrenagem da escravidão". Poderíamos dizer processos ideológicos intrincados às relações sociais?

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    1. Não. Acho que fica mais claro. E talvez haja processos ideológicos que não sejam tão imbricados às relações sociais.

      Beijo

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  3. Acho que se deve ler tal interpretação de Gomes com muita cautela. Uma "elite mestiça" é supor uma quantidade importante grande de negros/negras que teriam conseguido tal situação. A existência de um punhado deles mostra apenas que havia transformações na sociedade brasileira que permitia pequeníssimas brechas, ao lado da extrema truculẽncia. Separar as duas e olhar apenas o lado das alforrias falsifica o todo. Seria fundamental se houver uma pesquisa sobre a proporção de alforriados frente ao ingresso de novos escravos; se houver uma pesquisa sobre o conjunto desses alforriados e suas trajetórias de vida. Pegar apenas os que "subiram na vida" é fazer o elogio da meritocracia banal.

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    1. Mas a questão é exatamente esta. A meritocracia baseia-se no "sucesso" de uma minoria. O exemplo do alforriado que se tornou fazendeiro é extremamente raro. A democracia racial se apoia em supostos laços cordiais entre senhores e escravos. São mistificações. Acho que o texto deixa claro isso.

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