Doses maiores

4 de outubro de 2019

Bacurau: a esquerda sem chão e sem lugar

“Bacurau”, de Kleber Mendonça e Juliano Dornelles, tem se prestado a diversas interpretações. Consensual mesmo seria seu caráter de resistência aos avanços da extrema-direita. Menos consensual é definir o que simbolizaria a pequena vila do sertão pernambucano.

Bacurau é uma comunidade digna e solidária, mas muito distante de qualquer abundância e conforto. O poder comunitário é, na verdade, dominado pela velha política encarnada no prefeito pilantra. Sua vigorosa unidade mostra-se vulnerável diante de ataques de inimigos próximos ou distantes.

Visto dessa forma, aquele lugarejo do agreste seria uma metáfora do Brasil governado pelos petistas.

E aí, surgem duas leituras contraditórias entre si. Em um polo, os que interpretam o filme como uma convocação à luta pela derrubada imediata do atual governo. No outro, aqueles que o veem como um chamado à mobilização pela vitória nas próximas eleições. 

Para tentar compreender essa polarização e toda sua complexidade, Bárbara d’Alencar Dragão escreveu “Bacurau e a esquerda anestesiada”, artigo publicado pelo portal Outras Palavras. Segundo ela, alguns podem ver o filme:

...como distopia já em curso. Outros, como utopia catártica. Em comum, a incapacidade para lidar com um real cada vez mais diferente do imaginado. O sintoma não está na obra, mas na estranha recepção de boa parte do público.

Mas nem um e outro são distópicos ou utópicos, diz ela. São “atópicos”:

Sem lugar, em um mundo que os expulsa de dentro de si mesmo, mostrando que um dia este mesmo mundo não fora completamente deles, conforme tinham imaginado.

É verdade, grande parte da esquerda ficou sem lugar. Mas o restante também está sem chão. Esperemos que provisoriamente.

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4 comentários:

  1. Pois é, Sergio, muitas reflexões sobre o filme. A principal é no momento em que surge: derrota da esquerda e a vitória da extrema-direita. Neste sentido ele vem nos "redimir e nos vingar". Não colocaria ele nessa divisão do que a esquerda quer e espera para o momento atual. Ele é cartártico, quer cabeças rolando, quer uma revolta que remonta quase a uma revolução. Ele não está no plano das possibilidades, está no plano dos desejos. Acho que aí está o mérito dele, o de fazer arte sem pensar nas condições objetivas da luta de classes, e o demérito da esquerda (sabe que nem me passou pela cabeça e nem sabia disso) de pensar que ele possa representar o apoio a uma ou outra de suas táticas para o momento. Só mais um coisa, não acho que ele seja também uma metáfora para os governos petistas. Ele situa uma rejeição a algo mais amplo, que vem desde o coronelismo.

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    1. Bom, eu continuo sem digerir o filme. Por isso, o apelo ao texto da Bárbara. Mas tem outro texto que vai mais na linha que você defende. É este aqui http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/592976-bacurau-e-um-filme-de-ataque-mesmo-que-involuntariamente. Quanto à metáfora do governo petista, ela é menos consensual mesmo, como está no texto. O jeito é continuar mastigando. Valeu!

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  2. Vendo a excelene pílula e os (idem) comentários, só posso dizer que este filme é bem instigante, o que me causa uma curiosidade ainda maior quanto a ele. Ainda não o vi, mas irei me oportunizar. Sei que a mastigação poderá durar muito tempo, mas um dia o digeriremos. Abração!

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