Doses maiores

19 de janeiro de 2017

Machado, o Diabo e sua igreja

No conto "A Igreja do Diabo", Machado de Assis descreve como o maior inimigo de Deus resolveu fundar sua própria religião. Para atrair fiéis, a ladainha diabólica era a seguinte:

Se tu podes vender a tua casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéu, coisas que são tuas por uma razão jurídica e legal, mas que, em todo caso, estão fora de ti, como é que não podes vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé, coisas que são mais do que tuas, porque são a tua própria consciência, isto é, tu mesmo?

A igreja logo alcançou sucesso. Afinal, sua doutrina mostrou-se extremamente compatível com tempos em que tudo pode encarnar-se na forma mercadoria. E, talvez, tenha sido ela a inspirar inúmeros outros empreendimentos religiosos que também reconhecem no comércio da fé a importância devida.

O fato é que tudo ia bem até que...

... notou o Diabo que muitos dos seus fiéis, às escondidas, praticavam as antigas virtudes. Não as praticavam todas, nem integralmente, mas algumas, por partes, e, como digo, às ocultas. Certos glutões recolhiam-se a comer frugalmente três ou quatro vezes por ano, justamente em dias de preceito católico; muitos avaros davam esmolas, à noite, ou nas ruas mal povoadas; vários dilapidadores do erário restituíam-lhe pequenas quantias...

Deus, procurado pela perversa e desconsolada criatura, assim respondeu:

Que queres tu, meu pobre Diabo? (...) Que queres tu? É a eterna contradição humana.

E o que esperamos nós, crentes ou não? Seguidores de divindades imaculadas ou sujas? Apenas que a eterna contradição humana continue a salvar nossas almas.

Leia também: Até Machado achava escola um saco

2 comentários:

  1. Bom, muito bom resgate do conto e da defesa da contradição humana. É o que nos mantem minimamente otimistas.

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    1. Obrigado, mas os agradecimentos devem ir mesmo para o grande Machado.
      Abraço

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