Doses maiores

25 de abril de 2019

Prestando culto a uma carcaça

Abaixo, dois fragmentos jornalísticos recentes.

Primeiro, uma entrevista com o filósofo italiano Franco Berardi, publicada no Globo em 16/03/2019. Ele começa dizendo que:

As novas gerações aprenderam mais palavras com as máquinas do que com suas mães. A linguagem é, cada vez mais, uma ferramenta desprovida de dimensão afetiva e coletiva. A precarização da vida contemporânea não resulta apenas de mudanças no mundo do trabalho, mas também de trocas linguísticas desprovidas de afeto. A hipertrofia digital e a quantidade exorbitante de tempo que dedicamos à comunicação virtual estão transformando o sexo, a percepção e o desejo. Os efeitos disso são patológicos. Depressão, ansiedade e pânico não são mais patologias comportamentais tratadas individualmente, mas sintomas de uma mutação antropológica.

Mas além disso, Berardi identifica “um quê de necrofilia na glorificação contemporânea da tecnologia”. Para ele, estaríamos “vivendo dentro do cadáver do capitalismo, e viver em uma carcaça não é saudável para nossos corpos e mentes”.

O outro fragmento refere-se a matéria da Folha publicada em 21/03/2019, sobre um avião da Boeing que caiu em 10/03/2019, matando 159 pessoas na Etiópia.

Segundo a matéria, a causa da tragédia seria a falta de atualização de um dos sistemas de orientação da aeronave. Tratava-se de um dos itens “opcionais” pelos quais a Boeing “cobrava uma tarifa à parte”. Acontece que companhias aéreas menores ou de baixo custo costumam deixar de fora “atualizações opcionais”.

Talvez, o desastre aéreo sirva como demonstração do culto à morte mediado pela tecnologia denunciado por Berardi. Mas é preciso acrescentar que o verdadeiro deus é o lucro.

Não apenas vivemos em uma carcaça. Nós a veneramos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário