Doses maiores

4 de março de 2021

Abolição: a propriedade valia mais que pessoas. Ainda é assim

Os discursos dos escravagistas fincaram raízes na cultura brasileira. Sempre em nome da legalidade, da ordem, da produção, da produtividade, do direito, da Constituição, das famílias, das fortunas adquiridas dentro da lei, do respeito à propriedade, da paz, da segurança jurídica e alimentar, das instituições e do bem comum.


A citação acima está em “Raízes do conservadorismo brasileiro”, livro de Juremir Machado da Silva.

A obra mostra como as raízes de que fala o título já se mostravam firmes na resistência conservadora à abolição do trabalho escravo. Por exemplo, durante a votação da Lei do Ventre Livre, o senador Barros Cobra afirmou:

O fruto do ventre escravo pertence ao senhor deste tão legalmente como a cria de qualquer animal do seu domínio. (...) Há, sem dúvida, um direito adquirido a esse fruto, tão rigoroso como o do proprietário da árvore aos frutos que ela pode produzir...

Já o deputado federal Alencar Araripe foi vergonhosamente explícito:
 
A decretação da liberdade do ventre, sem prévia indenização, viola a propriedade, é evidente; porquanto contraria o princípio de nossas leis civis, consagrado nesta muito conhecida fórmula: partus sequitur ventrem. Em consequência deste princípio, o filho da escrava é também escravo, e pertence ao dono desta. Logo, o proprietário do fruto procedente do ventre servil não pode ser privado de sua propriedade sem prévia indenização, conforme o preceito constitucional.

Como os latifundiários ao longo do século XX, diz Silva, os senhores de escravos repetiam insistentemente o mantra: "A Constituição só permite a desapropriação mediante indenização."

“Em dois séculos, a retórica conservadora variou muito pouco”, conclui o autor, com toda razão.

Leia também: Abolição: para jornais, ex-escravos eram vadios em potencial

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