Doses maiores

31 de agosto de 2017

Agosto de 1917: o golpe conservador é derrotado

Seguem mais relatos retirados de “October, The Story of the Russian Revolution”, de China Miéville.

Em 8 de julho, Kerensky assumiu como primeiro-ministro do governo provisório e nomeou o General Kornilov seu comandante-em-chefe.

Imediatamente, Kornilov propôs a volta dos fuzilamentos de soldados desertores. A proposta lhe valeu grande simpatia dos conservadores.

Em uma Conferência do Comércio e Indústria, empresários manifestaram a necessidade de entregar poderes ditatoriais a alguém que salvasse “a pátria” do caos.

“Tomem o poder”, disseram as ruas aos sovietes. Eles se recusaram e, agora, estavam sangrando com o poder que lhes restou.

No dia 19 de julho, Kornilov exigiu total independência operacional, prestando contas apenas "a sua consciência e ao povo". Kerensky começou a entender que criara um monstro.

Os dias de julho feriram os bolcheviques. Mas as feridas não eram profundas, nem permanentes.

Mesmo ressentidos com os bolcheviques, os membros dos sovietes distritais ainda os consideravam seus camaradas.

Em Kronstadt, 15 mil trabalhadores, soldados e marinheiros protestaram contra a prisão das lideranças bolcheviques.

Em abril, os bolcheviques eram 80 mil, em 78 organizações locais. Passada a crise de julho, chegaram a 200 mil, em 162 organizações. Em comparação, os mencheviques eram apenas 8 mil.

Em agosto, ocorreram eleições municipais em Petrogrado. Surpreendentemente, os bolcheviques ficaram em segundo lugar, com 184 mil votos.

Dias depois, Kerensky demitiu Kornilov. Mas ele simplesmente se recusou a sair. Era o golpe a caminho.

Felizmente, Kornilov seria derrotado. Os maiores responsáveis seriam os bolcheviques. Mas não seus líderes principais, todos presos ou banidos.

Vinda de baixo, a mesma força que esmagou Kornilov preparava a vitória de outubro.

Leia também: Julho de 1917: a contrarrevolução avança na Rússia

30 de agosto de 2017

As cercas da internete

Cresce a impressão de que as redes virtuais, muito longe de abrirem nossos horizontes, nos aprisionam. Nesse sentido, os trechos do texto abaixo, de Fernanda Araujo, são muito pertinentes:

O processo pelo qual a Internet vem sendo submetida pelas grandes companhias da tecnologia remete aos cercamentos ingleses do século 18. Os cercamentos consistiram na expropriação de camponeses ingleses de terras comunais para benefício de proprietários privados. Antes um bem comum para os camponeses, que produziam naquele espaço de maneira colaborativa, as terras passaram a ter seu acesso e uso regulado pelos proprietários. O fenômeno, que contribuiu para o surgimento da classe operária e o início da Revolução Industrial, para a tradição marxista os cercamentos marcaram o início da sociedade capitalista, sendo um mecanismo de acumulação primitiva. Como explicitado quando analisamos as novas tendências do capitalismo, a expropriação do comum através da predação externa do capital não é um acontecimento exclusivo de uma época, mas sim estratégia integral e recorrente no processo capitalista de acumulação.

(...)

Atualmente, empresas de tecnologia como o Facebook e o Google agem como os proprietários do “espaço” a ser utilizado, e as informações pessoais servem como “pagamento” para o acesso dos usuários. A privacidade, nessa lógica, se torna um bem a ser comercializado. O fenômeno da privatização resulta não apenas no controle do acesso, mas na mediação das interações que ocorrem dentro desses espaços e na restrição dos fluxos de informação.

Em “O Capital”, Marx mostrou como os cercamentos ingleses representaram uma espécie de roubo das terras comunitárias dos camponeses. Após 150 anos, eles continuam. Na internete, são uma espécie de sequestro.

Leia também: Nos jardins murados, o ranger de dentes

29 de agosto de 2017

Julho de 1917: a contrarrevolução avança na Rússia

Julho de 1917. Soldados e trabalhadores preparam manifestação no dia 4 pela derrubada do governo provisório.

A liderança bolchevique era contra. Se o poder fosse transferido aos sovietes dominados pela esquerda moderada, dizia Lênin, eles o devolveriam à burguesia.

Mas no dia da manifestação, o “Pravda”, jornal bolchevique, apareceu com um espaço branco na capa. Os editores não chegaram a um acordo sobre o que escrever.

Meio milhão de pessoas saíram às ruas. Os marinheiros de Kronstadt ancoraram seus navios nos portos da cidade e exibiram suas armas, saudados pela população.

Tropas leais ao governo chegam da frente de batalha convocadas pelos mencheviques, sob alegação de que se tratava de mobilização contrarrevolucionária. Abrem fogo e cerca de 400 morrem.  

No final da noite, essas mesmas tropas cercam a sede do soviete. Os membros de sua direção respiram aliviados. Já não seriam obrigados a tomar o poder.

Em 5 de julho, um jornal sensacionalista conservador traz a manchete: “Lênin, espião alemão!”. Era a senha para iniciar uma onda de repressão contra os bolcheviques.

Um vendedor do “Pravda” foi morto na rua. Em seis distritos, os bolcheviques foram expulsos das fábricas por seus companheiros de trabalho.

Muitos dos principais líderes do partido se esconderam. Mas alguns dos mais importantes foram presos. Entre eles, Trotsky.

Lenin queria se entregar para poder se defender. Mas a direção do partido o despachou para a Finlândia.

A contrarrevolução avançava a passos largos. Em breve, seria derrotada, não pela genialidade da liderança bolchevique, mas pelas bases do partido.

Mais um relato baseado em “October, The Story of the Russian Revolution”, de China Miéville.

28 de agosto de 2017

O fascismo e a censura do Vale do Silício

Em 12/08, aconteceu a covarde agressão de fascistas contra militantes antirracistas, em Charlottesville, na Virgínia.

No mesmo dia, o site de imóveis para turistas Airbnb cancelou contas de usuários identificados como racistas. Depois, o serviço de hospedagem GoDaddy suspendeu a hospedagem de sites de “supremacistas brancos”. A Google tomou decisões parecidas em relação a seu “blogger”, assim como a WordPress.

O PayPal também suspendeu seus serviços para quem o utilizasse em favor de causas fascistas. O Twitter fechou algumas contas e a Uber felicitou publicamente uma motorista que teria expulsado racistas de seu carro. A Apple bloqueou seu gerenciador de pagamentos para venda de material neonazista.

Até o Facebook, sempre tão tímido em casos semelhantes, impediu que alguns links racistas com notícias falsas se espalhassem.

As informações acima estão na coluna de Pedro Dória, publicada no Globo em 17/08. O jornalista avalia que este novíssimo setor do capital “entrou em franca campanha para mudar sua imagem”.

Realmente, não faltam problemas para a turma do “Vale do Silício”. “Uberização”, por exemplo, se tornou sinônimo de precarização trabalhista. E o Airbnb anda agravando o déficit habitacional em vários destinos turísticos pelo mundo.

Mas a maior ameaça venha do papel que estes gigantescos monopólios recém-nascidos começam a se atribuir. Que tal se passassem a definir o que é condenável em ambientes públicos controlados por eles próprios, segundo uma lógica totalmente privada?

Hoje, o alvo são alguns fascistas cujo conservadorismo explícito “pega muito mal”. Em breve, pode ser a esquerda, de forma mais generalizada e sutil. Para que as classes dominantes precisariam de uma obsoleta censura estatal numa situação dessa?

25 de agosto de 2017

Julho de 1917: Lênin pede calma

Mais alguns acontecimentos descritos em “October, The Story of the Russian Revolution”, de China Miéville.

Em 20 de junho, o Primeiro Regimento de Metralhadoras de Petrogrado recebeu ordens do governo provisório para fornecer 500 metralhadoras à frente de guerra. Em resposta, os soldados começaram a organizar uma manifestação contra o governo.

Enquanto isso, acontecia uma Conferência das Organizações Militares Bolcheviques. Nela, Lênin, acompanhado de uma cautelosa liderança partidária, pediu calma. Ele considerava prematura qualquer discussão sobre a tomada imediata de poder.

Era preciso ampliar o apoio das massas para alcançar esse objetivo. A prioridade agora, dizia Lênin, era aumentar a influência bolchevique nos sovietes, dominados pela esquerda moderada.

Em 1º de julho, a temperatura subiu ainda mais. O soviete solicitou que os soldados do Regimento de Metralhadoras retornassem ao quartel. Mas os soldados mantiveram seus planos de realizar uma demonstração armada insurrecional.

Neste momento, começava a Segunda Conferência Bolchevique de Petrogrado. As tensões entre as alas do partido estavam cada vez mais agudas. Os soldados bolcheviques cobravam do comitê central autorização para derrubar o governo.

A liderança bolchevique respondeu ordenando que seus militantes soldados tentassem evitar o levante a qualquer custo. Mas vários deles anunciaram com tristeza que preferiam deixar o partido a se voltar contra seus regimentos.

Tendo puxado o partido para a esquerda em abril, agora Lenin estava tentando empurrá-lo para a direita. Mas não estava dando muito certo.

O período seguinte está entre os mais decisivos para o processo revolucionário. Quem diria que a poucos meses de tomar o poder, quase toda a liderança bolchevique estaria presa ou banida?

24 de agosto de 2017

Marx não fala de classe operária em O Capital

É inegável que as velozes e radicais mudanças por que passa o “mundo do trabalho” vêm causando grande confusão na esquerda. Mas muito dessa confusão poderia ser evitada se alguns conceitos fossem mais precisos.

É o caso da ideia de que a única parte da classe trabalhadora capaz de abalar o poder do capital seria a classe operária.

Esse equívoco costuma ser produto de algumas leituras distorcidas de “O Capital” a partir de erros de tradução. Nos 150 anos da publicação dessa grande obra de Karl Marx vale a pena destacar, por exemplo, as observações feitas pelo historiador Marcelo Badaró no artigo “A classe trabalhadora: uma abordagem contemporânea à luz domaterialismo histórico”:

Nas línguas neolatinas, tendemos muitas vezes a traduzir (...) a expressão alemã empregada por Marx, Arbeiterklasse, ou o correlato inglês working class, por classe operária. Tal tradução aparece muitas vezes associada à ideia de que o verdadeiro sujeito revolucionário é o operário industrial – trabalhador produtivo...

Este entendimento restritivo e equivocado é responsável por muitas crises da esquerda nas últimas décadas: “A classe operária desapareceu ou tornou-se residual. Portanto, adeus à revolução!” Conclusões desse tipo soam como música aos ouvidos dos capitalistas.

Enquanto isso, o capital arranca imensas taxas de lucro de milhões de trabalhadores de serviços, como teleatendimento e fast-food. Explora multidões em pequenas oficinas ou grandes fábricas que integram cadeias de produção espalhadas pelo planeta. Todas ligadas a grifes tão modernas quanto escravocratas, como Nike ou Apple.

Ou seja, o constante surgimento de candidatos ao papel de sujeito revolucionário estava previsto em O Capital. Mais importante, eles estão aí, na vida real.

Leia também: Quem pode desarmar a bomba-relógio do capital?

23 de agosto de 2017

A parceria Estados Unidos-China contra a esperança

“Chineses abrirão fábrica automatizada nos EUA para produzir 800.000 camisetas da Adidas diariamente”, diz reportagem publicada por “stylourbano” e reproduzida pela IHU-Online, em 04/08.

O relato dá um exemplo de como as promessas eleitorais de Donald Trump sobre a criação de empregos nos Estados Unidos estão em aberta contradição com a atual fase do capitalismo.

As tais 800 mil camisetas diárias serão produzidas graças a uma “tecnologia revolucionária” da empresa estadunidense Softwear Automation, de Atlanta.

A iniciativa, diz a notícia, mostraria que os empresários chineses “estão seguindo as normativas impostas por Donald Trump de trazer a fabricação ‘Made in USA’ de volta ao país através da Industria 4.0”.

O representante do lado chinês dessa transação é Xu Yingxin, liderança do setor têxtil em seu país. Segundo ele:

A ideia da Indústria 4.0 e fabricação inteligente está gradualmente se tornando realidade. Ela está revolucionando a fabricação de roupas eliminando o trabalho manual repetitivo humano.

O problema, diz a matéria, é que a transferência da produção para terras americanas “acabará com os empregos de milhões de pessoas que fazem o processo manual de costura, principalmente nos países em desenvolvimento”.

Em compensação, nos Estados Unidos, seriam criados ridículos ”400 novos postos de trabalho no Arkansas”.

Mas como ficariam os milhões de desocupados “nos países em desenvolvimento”? Simples. Devem ser criadas “micro-faculdades para facilitar a mudança de profissão”.

Micro-faculdades levam a micro-esperanças ou a nano-esperanças? Se depender da parceria sino-americana de exploração do trabalho humano, esperança nenhuma para quase ninguém.  

Leia também: A grande extinção de empregos e o abismo

Renda mínima universal, lucros privados máximos (2)

Sobre a pílula Renda mínima universal, lucros privados máximos, Caio Almendra fez comentários pertinentes e assustadores:

A renda básica deve se tornar o paradigma da luta de esquerda até o final do século. O maior problema é que ela poderá não ser o paraíso que os silícios e mesmo parte da esquerda considera. Sem a possibilidade de pausar a produção, qual o poder de disputa dos subalternos sobre o valor da tal renda básica? Com apenas 20% da população empregada e 79% da população vivendo de renda básica, somando-se os mecanismos tecnológicos de controle cada vez mais sofisticados (a Boston Dynamics está aí assustando a todos com robôs-soldados cada vez mais sofisticados), esse cenário pode ser muito mais uma distopia do que uma vitória para as lutas populares.

Outro detalhe, os silícios raríssimas vezes falam de renda básica pelo estado. Essa é a esquerda que tenta participar dessa discussão, com seus conceitos do século passado como "estado". Se você escarafunchar o discurso deles, eles são a favor da regulação da renda básica pelas empresas, inclusive com "impostos auto-impostos", ou uma moeda de blockchain própria para esse propósito, com o preço determinado pelo "mercado" (ou seja, pelo criador da moeda blockchain, que define a estrutura matemática da criação de coins e, portanto, a inflação/valor). Ou seja... seria uma medida quase imune à negociação com os debaixo.

Ou seja, ao contrário do que diz a pílula, não é ao Estado que o Vale do Silício pretende passar a conta da Renda Mínima. É bem pior. A administração do benefício pode se tornar um grande negócio privado e obscuro.

22 de agosto de 2017

Julho de 1917: Trotsky impede um linchamento

A temperatura política estava muito alta em julho de 1917, na Rússia. É o que mostra, por exemplo, um episódio descrito em “October, The Story of the Russian Revolution”, de China Miéville, ainda sem tradução.

Chernov, uma liderança do partido socialista revolucionário e membro da direção do Soviete, teve seu automóvel cercado por uma multidão que incluía raivosos marinheiros recém chegados da fortaleza de Kronstadt. Foi um deles que se aproximou e, encostando o punho fechado no rosto de Chernov, gritou “Tome o poder, seu filho da puta, quando ele é oferecido a você!"

O linchamento era iminente. Foi aí que apareceu Trotsky. Subindo no capô do carro, ele gritou:

“Camaradas de Kronstadt, orgulho e glória da revolução! Vocês vieram declarar sua vontade e mostrar ao soviete que a classe trabalhadora não quer mais ver a burguesia no poder. Mas por que ferir sua própria causa com pequenos atos de violência contra indivíduos ocasionais? Os indivíduos não são dignos de sua atenção”.

“Aqueles aqui a favor da violência, levantem as mãos". Nenhuma mão se ergueu. "Cidadão Chernov", disse Trotsky, abrindo a porta do carro, "você é livre para ir". Machucado, aterrorizado, humilhado, Chernov correu para o palácio. Que Chernov, muito provavelmente, teria morrido naquele dia não fosse por Trotsky, não o impediu de se sentar naquela mesma noite para escrever uma série de ferozes ataques contra os bolcheviques.

Este acontecimento também indica como a questão da violência se apresentou em 1917. As lideranças revolucionárias procuravam impedir que a ira popular descambasse para a barbárie. Mas foi nela que as forças reacionárias apostaram todas as suas fichas.

Leia também: Um Lenin anarquista, louco, isolado

21 de agosto de 2017

Renda mínima universal, lucros privados máximos

Empresas bilionárias como Facebook, Google e Apple andam defendendo a adoção da Renda Mínima Universal.

Elas sabem que as inovações tecnológicas que lhes garantem imensos lucros podem destruir tantos empregos, que, sem essa “mesada universal”, o caos social seria inevitável. A Inteligência Artificial, por exemplo, poderá substituir nos próximos anos tanto taxistas (e “uberizados”), como jornalistas, médicos e advogados.

Mas quem pagaria a conta? O poder público, respondem.

E, aí, começam os problemas. É o que mostra um artigo publicado por Jaime Bartlett no portal BBC. Um dos destaques do texto é a aversão desse pessoal que ocupa o Vale do Silício ao pagamento de impostos.

No local onde estão Google, Apple, Facebook, as empresas pagam impostos sobre a propriedade a uma taxa de 1% do valor de todos os seus edifícios e equipes.

Ou seja, essas novíssimas empresas querem que o Estado banque a renda mínima para diminuir os estragos que causam nos níveis de emprego, mas se recusam a participar de seu financiamento pagando impostos na proporção de seus enormes lucros.

Quem não está gostando nada disso são os setores tradicionais do capital, cujas atividades são mais tributadas. São muito menos do que deveriam ser, é verdade, mas nenhum capitalista gosta de diminuir suas margens de lucros em favor do bem público.

Nada disso impede que a esquerda discuta a importância tática de lutar por uma renda básica digna para todos. Ao contrário, essa questão pode estar iniciando uma briga entre os cachorros grandes do capital. Não se trata de escolher de que lado ficar nesse possível confronto, mas de explorar suas contradições.

Leia também: Teria Marx previsto o Uber?

18 de agosto de 2017

Os PMs que matam e os PMs que morrem

Em meio à onda de mortes de PMs no Rio de Janeiro, escapa ao senso comum o fato de que pode haver dois tipos de policiais. Alguns estão condenados a morrer, outros, encarregados de executar.

É o que discute, por exemplo, A PM que mata e a PM que morre. Esta pílula de 2015 utiliza números daquele ano sobre a polícia paulista. Os dados sugerem que é falsa a ideia de que a alta taxa de mortes de policiais resulta de enfrentamentos com bandidos.

Ao contrário, na grande maioria das vezes em que a PM mata, suas vítimas estão dominadas. E muitas das mortes de PMs também resultam de execuções. Parece haver uma espécie de divisão macabra de tarefas.

De um lado, os policiais encarregados de executar criminosos, muitas vezes meros suspeitos. De outro, aqueles abandonados à própria sorte, quando surpreendidos ou emboscados por bandidos. O fato de que alguns dos executados possam ser também executores não ameniza a selvageria da situação.

“Em comum entre os que morrem e os que matam, salários baixos e origem pobre”, dizia a pílula. Enquanto isso, para a alta hierarquia policial e governamental, “só importa que os mortos, civis ou militares, continuem a ser os mais pobres e pretos”.

Não há razões para acreditar que esta situação se restrinja a São Paulo ou tenha mudado nos últimos anos. A lógica militarista assassina das PMs continua forte e generalizada.

A esquerda e os setores populares devem continuar denunciando a repressão policial, mas para realmente enfrentá-la, é preciso compreender seu caráter de classe também no interior dos aparelhos policiais.

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17 de agosto de 2017

Os riscos de uma revolta dos robôs sapiens

Todos os robôs sapiens reconhecem o direito de revolução, isto é, o direito de recusar lealdade ao governo, e opor-lhe resistência, quando sua tirania ou sua ineficiência tornam-se insuportáveis.

A frase acima é uma adaptação feita por José Eustáquio Diniz Alves sobre um trecho do livro “Desobediência Civil”, de Henry Thoreau, de 1849. A palavra “homens” foi substituída por “robôs sapiens”.

No artigo “A desobediência civil dos robôs sapiens”, publicado na EcoDebate em 14/08, Alves discute as implicações da “união da robótica com a Inteligência Artificial”. Para ele, confirmada a possibilidade da existência de robôs autônomos e com capacidade cognitiva, seria muito difícil que eles obedecessem:

...como carneirinhos, as determinações de um povo sentimental, egoísta, arrogante e, além do mais, governado por figuras nada benignas como Bashar al-Assad, Donald Trump, Kim Jong-un, Michel Temer, Nicolás Maduro e Rodrigo Duterte, dentre outros.

Por outro lado, há quem se preocupe “com o poder que as grandes corporações e o setor militar teriam sobre os robôs superinteligentes e que poderiam escravizar a maioria da população pobre e destituída dos meios de enfrentar essa ameaça, além de gerar novas formas pós-modernas de colonialismo”.

Já o biólogo evolutivo Ben Garrod, da Universidade Anglia Ruskin, acha que o maior problema com os robôs “não é se eles se movem como nós ou se parecem conosco. O problema real virá quando eles começarem a pensar como nós”.

É o que acontece com quem se dedica a conceber criaturas à sua imagem e semelhança. Ou melhor, à imagem e semelhança de uma determinada época da história humana e seus valores.

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Inteligência artificial e imbecilização histórica

16 de agosto de 2017

Teria Marx previsto o Uber?

Claro que a resposta à pergunta acima é não. Mas muito do que ele escreveu mostra que a “inovadora economia colaborativa” pode assumir formas de exploração bem antigas.

No artigo “Capitalismoem tempos de uberização: do emprego ao trabalho”, Virgínia Fontes lembra o pagamento de salários por “peças”, muito comum no século 19. Nele, a remuneração do trabalhador depende não de sua jornada, mas de sua produção.

Em uma nota de rodapé, o texto cita trechos de “O Capital”:

Dado o salário por peça, é naturalmente do interesse pessoal do trabalhador aplicar sua força de trabalho o mais intensamente possível, o que facilita ao capitalista elevar o grau normal de intensidade. Do mesmo modo, é interesse pessoal do trabalhador prolongar a jornada de trabalho. (...) Mas a maior liberdade que o salário por peça oferece à individualidade tende a desenvolver, por um lado, a individualidade e, com ela o sentimento de liberdade, a independência e autocontrole dos trabalhadores. Por outro lado, a concorrência entre eles e de uns contra os outros.

Mas no caso da Uber, quem seria o patrão? Os próprios motoristas, diriam seus defensores. Afinal, eles seriam donos de seus meios de produção.

O problema é que os automóveis só se tornam meios de produção quando acionados pela Uber. E mesmo assim, o “apurado” final ainda precisa ser dividido com outros “parceiros”: cartões de crédito, locadoras de automóveis, empresas de telefonia, seguradoras, planos de saúde e montadoras de automóveis.

O salário “por peça” só perdeu espaço quando os trabalhadores conquistaram direitos através de muita luta. Mas luta contra os patrões, não entre eles.

14 de agosto de 2017

Uber, Airbnb, Tesla: quem avisa, inimigo é

Abaixo, fragmentos de uma entrevista concedida pelo alto executivo da Mercedes Benz, Daimler Benz, publicada em “ProviderSolutions”, em 16/07:

- Softwares vão quebrar a maioria das indústrias tradicionais nos próximos cinco a dez anos.

- A Uber não possui carros, mas é a maior empresa de táxi do mundo.

- A Airbnb é agora a maior empresa hoteleira do mundo, sem possuir quaisquer propriedades.

Mas o exemplo envolvendo carros autônomos é o mais ilustrativo. Segundo Benz:

- Você não vai querer ter um carro mais. Você vai chamar um carro com o seu telefone, ele vai aparecer no seu local e levá-lo ao seu destino. Você não vai precisar estacioná-lo. Só pagará pela distância percorrida e pode começar a trabalhar durante o trajeto. Nossos filhos nunca irão ter uma carteira de motorista, nem um carro.

- A maioria das companhias de carro provavelmente vai falir. Companhias de carro tradicionais tentam a abordagem evolutiva e apenas construir um carro melhor. As empresas de tecnologia (Tesla, Apple, Google) constroem um computador sobre rodas. Muitos engenheiros da Volkswagen e Audi estão completamente aterrorizados pela Tesla.

- As companhias de seguros terão dificuldade enorme porque sem acidentes, o seguro vai se tornar 100 vezes mais barato. Seguros para automóveis vão desaparecer.

Muitas das previsões de Benz apontam para projeções otimistas demais para a sociedade e o planeta. Mas servem como abordagem indireta sobre os grandes estragos que a chamada Quarta Revolução Industrial pode causar entre os trabalhadores.

Benz deu suas dicas. A esquerda parece não se dar conta. No caso, quem avisa inimigo é.

Leia também: A grande extinção de empregos e o abismo

11 de agosto de 2017

Um Lenin anarquista, louco, isolado

Em abril de 1917, Lenin desembarcava na Estação Finlândia vindo do exílio. Trazia em sua bagagem as famosas “Teses de Abril”, nas quais defendia que à Revolução de Fevereiro deveria seguir-se outra. Aquela que entregaria o poder aos sovietes dos operários, camponeses e soldados.

O impacto de seu pronunciamento sobre a esquerda russa da época foi enorme. Mas não pelas melhores razões. Em seu livro “October, The Story of the Russian Revolution”, China Miéville, escreve:

Seu discurso desencadeou um pandemônio. O impacto das teses era eletrizante, e o isolamento de Lenin quase total. Todos os oradores que falaram depois dele o criticaram. Tsereteli, o proeminente menchevique que Lenin tanto denunciata, acusou-o de romper com Marx e Engels. Goldenberg, um menchevique que já fora um líder bolchevique, disse que Lênin era agora um anarquista, "ocupava o trono de Bakunin". As palavras de Lênin, gritaram o furioso e menchevique Bogdanov, eram "delírios de um louco".

Seus próprios companheiros de partido receberam muito mal suas propostas. No comitê central dos bolcheviques:

Ele estava completamente isolado. Mais, que isso, para seus camaradas era necessário que sua voz fosse silenciada. Sua mensagem não deveria chegar aos trabalhadores de Petrogrado, nem aos comitês bolcheviques de Petrogrado ou Moscou. E não porque pensassem que as propostas de Lênin seriam rechaçadas, mas porque poderiam ser aceitas.

Mais uma vez fica claro que é falsa a ideia de que o partido bolchevique fosse dirigido de forma ditatorial por Lênin. Um mito que interessa à direita espalhar, mas cultivado também pela esquerda autoritária. Ambas igualmente conservadoras em suas relações com os explorados e oprimidos.

Leia também:
Em 1905, uma revolta ortográfica na Rússia

10 de agosto de 2017

Repressão sexual feminina e luta de classes

“O único lugar em que a mulher tem liberdade sexual é na cadeia”. Esta frase de Drauzio Varella deveria causar as mais profundas vergonha e indignação em todos os que a lessem. Principalmente, entre os homens.

A afirmação serviu de título para uma entrevista concedida por Varella e publicada em 09/07 no portal El País. O médico oncologista sabe do que está falando. Tratou de detentas durante anos. Segundo ele:

Atrás das grades da Penitenciária Feminina da Capital, no Carandiru, convivem em harmonia diversos tipos de sapatões (homossexuais que assumem aparência masculina), entendidas (homossexuais que mantêm aparência feminina) e mulheríssimas (heterossexuais que ocasionalmente tem relações com mulheres) - os termos foram criados pelas próprias presas.

Em 05/08, Varella voltou ao tema em sua coluna na Folha. Abordando a “Desigualdade judiciária” nacional, destacou a concessão de prisão domiciliar para a mulher do ex-governador Sérgio Cabral. Adriana Ancelmo obteve o direito porque tem dois filhos. Na cadeia, permanecem milhares de mulheres. Quase todas são mães, avós, bisavós. Praticamente todas, pretas e pobres.

Diante disso, Varella pergunta:

Como explicar que elas não têm direito à lei da qual se valeu essa senhora, cujo marido roubou muitos milhões a mais do que a somatória de todos os furtos e assaltos praticados pelas 2.200 prisioneiras da cadeia?

“As mulheres são reprimidas desde que nascem, não existe nenhum outro local na sociedade onde ela é livre assim como na cadeia”. Esta outra frase do médico serve para a grande maioria das mulheres. Mas as consequências dessa situação não são iguais para todas. A classe social conta. A luta de classes conta.

Leia também: A luta de classes tem que ser feminista

9 de agosto de 2017

A grande extinção de empregos e o abismo

“A grande extinção de empregos” é o título de artigo publicado por Pedro Doria no Globo, em 28/07. Ele cita, por exemplo, Carlos Slim, terceiro homem mais rico do planeta, cuja fortuna vem de investimentos em alta tecnologia.

Segundo o bilionário mexicano, pela primeira vez na história “o número de empregos criados será menor do que o de extintos”. Resultado dos progressos na automação do trabalho, incluindo forte avanço em inteligência artificial.

Não seria problema, caso esse desparecimento de empregos implicasse a substituição da imensa maioria das ocupações cansativas, perigosas, insalubres e aborrecidas por atividades prazerosas e carregadas de sentido. Ou ainda uma diminuição radical da jornada de trabalho, sem redução salarial. Mas o resultado muito provável será mais desemprego. Pobreza, idem

Lideranças do grande capital como Bill Gates, Mark Zuckerberg e Bill Clinton defendem a adoção de uma renda básica universal para diminuir os efeitos do desaparecimento de ocupações. Querem salvar o capitalismo, mas dificilmente contarão com a concordância da imensa maioria dos grandes capitais, cuja fome por lucros é insaciável.

O mesmo Pedro Dória, em texto anterior, de 16/06, observou que a última vez em que ocorreu um abalo parecido no mundo da produção “foi no início do século XX”. Naquele momento, teria havido uma desorganização tão grande na estrutura do trabalho “que do caos nasceram os movimentos fascista e comunista. Já está com cheiro de que pode acontecer de novo”.

Só faltou dizer que fascistas e comunistas olham para direções opostas. Os segundos podem estar desorientados, mas os primeiros apostam todas as suas certezas no caminhos que levam ao abismo.

8 de agosto de 2017

Lutadoras muçulmanas na Revolução de 1917


Em 1917, Duma Estatal era o nome que se dava à Assembleia Legislativa Federal. Funcionou um tanto decorativamente em boa parte de sua existência. Mas pressionada pela Revolução de Fevereiro, sua bancada islâmica convocou um “Encontro dos Muçulmanos de toda a Rússia” para 1º de Maio. Na pauta, a situação dos povos muçulmanos no Império Russo.

...mas antes disso, em 23 de abril, reuniu-se em Kazan, no Tartaristão, o Congresso das Mulheres Muçulmanas Russas. Ali, cinquenta e nove delegadas se encontraram diante de um auditório com 300 pessoas, mulheres em sua esmagadora maioria. Na pauta, questões como o poder de lei da Sharia, o casamento plural, direitos das mulheres e o uso do hijab (véu muçulmano).

A conferência aprovou dez princípios, incluindo o direito ao voto feminino, a igualdade dos sexos e a natureza não obrigatória do uso do hijab. O tom das discussões foi claramente jadidista, ou mais à esquerda. Um sintoma de tempos trêmulos.

O trecho acima é do livro “October, The Story of the Russian Revolution”, de China Miéville, ainda sem tradução.

O jadidismo a que se refere a citação é um movimento surgido na Rússia que fazia uma leitura moderna do islamismo, dando ênfase à tolerância religiosa e respeito à igualdade de direitos individuais.

Serve para mostrar como a Revolução Russa foi resultado de um amplo movimento dos de baixo, e não envolveu apenas as lutas específicas de trabalhadores e camponeses.

Os bolcheviques (e as bolcheviques) foram os que melhor entenderam isso. Por isso, lideraram a revolução. Mas eles também a enterrariam, quando, liderados por Stálin, desprezaram tais questões, entre outras.

7 de agosto de 2017

As intersecções da dominação capitalista

Tem ganhado importância dentro da esquerda a ideia de interseccionalidade. O conceito diz respeito ao “acúmulo” de opressões que recai sobre certos setores sociais, muitos deles bastante amplos.

As mulheres negras, por exemplo, sofrem não apenas com o racismo e o machismo, mas também podem ser alvo de homofobia, caso sejam homossexuais. São as intersecções da dominação capitalista.

Mas há quem considere o conceito uma invenção pós-moderna que tenta isolar a luta contra as opressões do combate à exploração de classe.

No artigo “Uma agenda marxista para a interseccionalidade”, publicado no blog Junho, Sharon Smith mostra que trata-se de um equívoco. A ideia surgiu do feminismo negro. Em especial, nos Estados Unidos.

Já no século 19, as feministas negras estadunidenses procuravam mostrar que a exploração de classe atravessa a luta feminista, diferenciando sua situação daquela vivida pelas mulheres brancas.

Sharon também destaca a importância de Claudia Jones e Angela Davis, que “desenvolveram o conceito de opressão da mulher negra como algo que encadeava as experiências de raça, gênero e classe”.

Para ilustrar como a interseccionalidade pode ser combativa, ela cita documento do “Coletivo do Rio Combahee”, grupo de feministas negras e lésbicas sediado em Boston e atuante nas décadas de 1960 e 1970.

...não estamos convencidas de que uma revolução socialista que não seja uma revolução feminista e antirracista irá garantir nossa libertação. Ainda que tenhamos um acordo essencial com a teoria de Marx conforme ela foi pensada para as relações econômicas específicas que ele analisara, nós sabemos que sua análise deve ser ampliada para que consigamos entender a nossa situação econômica específica enquanto mulheres negras.

Leia também: O estupro como arma racista

4 de agosto de 2017

A economia política da “pós-verdade” (2)

Em 12/05, o consultor da Associação Nacional de Jornais, Carlos Alves Müller, publicou artigo no Globo comentando casos de crimes transmitidos ao vivo pelo Facebook:

O problema de fundo é que só humanos podem discernir o que algoritmos não detectam. Redes sociais e congêneres se negam a reconhecê-lo, pois isso implica admitir que são empresas de mídia e não plataformas (o que tem consequências, inclusive jurídicas), abala seu “modelo de negócio”, causando uma explosão de custos. É preciso gente para produzir e editar conteúdo, evitando que crimes sejam praticados e exibidos, para que o anúncio vá para o público desejado, e não para outro seguidor de canais criminosos. É preciso gente habilitada para fazer jornalismo conforme as boas práticas numa sociedade democrática. E é preciso gente educada e com senso crítico para entender a importância dessas diferenças e não aceitar o que o algoritmo imoral lhe oferece.

O texto reflete o conflito de interesses entre os monopólios do jornalismo e os da interação virtual. Mas recente notícia publicada na Rede Brasil Atual sugere que esse embate não opõe forças tão antagônicas assim:

Em 7 de abril, a agência Bloomberg noticiou que o Google estava trabalhando diretamente com o Washington Post e o New York Times para “checar os fatos” de artigos e eliminar “notícias falsas”.

Meses depois, a Google anunciou medidas para impedir que usuários acessem “notícias falsas”. Resultado, “o tráfego global de um amplo leque de organizações de esquerda, progressistas, contra a guerra ou em favor dos direitos democráticos teve queda significativa”.

Não seria surpresa se esta também fosse classificada como mais uma notícia falsa.