Doses maiores

31 de julho de 2018

Vitórias de Marx nos tribunais

Em sua biografia sobre Marx, Francis Wheen conta que em 1849, ele e Engels foram levados a julgamento em Colônia, na Alemanha, acusados de insultar o promotor público local. Em um discurso de uma hora, Marx mostrou a mente brilhante que o Direito perdeu quando ele se recusou a seguir a carreira do pai:

Prefiro seguir os grandes acontecimentos do mundo, analisar o curso da história, do que ocupar-me com chefes locais, com a polícia e com magistrados de acusação. Por maiores que esses senhores possam imaginar-se em sua própria fantasia, não são nada, absolutamente nada, nas gigantescas batalhas da atualidade. Eu considero que estamos fazendo um verdadeiro sacrifício quando decidimos cruzar lanças com esses oponentes. Mas, em primeiro lugar, é dever da imprensa avançar em nome dos oprimidos (...). Seu dever prioritário é minar todos os fundamentos da situação política existente.

E sentou-se sob os aplausos de uma sala de audiências lotada. Marx e Engels tinham conquistado sua absolvição.

Mal houve tempo para comemorações. No dia seguinte, Marx estava de volta ao tribunal com outros membros do Comitê Distrital dos Democratas do Reno. Desta vez, acusados ​​de "incitamento à revolta". Tratava-se de uma manifestação do Comitê em apoio a uma milícia popular formada para lutar contra impostos extorsivos que haviam sido aprovados pouco antes. Marx arrancou nova absolvição, ao lembrar o direito reconhecido pela constituição vigente à “revolta por todos os meios” contra abusos fiscais.

Foi a gota d´água para o governo. Em alguns meses, Marx seria expulso da Alemanha, sem direito a julgamentos e a novas chances de proferir seus brilhantes discursos de defesa.

Leia também: Engels, o agente secreto de Marx em Manchester

30 de julho de 2018

Estados Unidos e China, da guerra comercial à guerra quente

A Guerra Fria entre Estados Unidos e União Soviética causou muito medo pelo mundo. Mas jamais chegou a esquentar porque os arsenais das duas potências seriam capazes de fritar todo o planeta em poucas horas.

A atual guerra comercial que Trump iniciou contra a China também assusta. Mas, tal como aconteceu naquela, não interessa aos envolvidos elevar demais sua temperatura.

Trump aumentou as tarifas sobre exportações chinesas, por exemplo. Mas o governo chinês poderia fazer algo muito pior. Beijing é o maior investidor mundial em papéis do Tesouro Americano. Basta que pare de comprá-los para que o crédito nos Estados Unidos encareça e ameace a atividade econômica ianque.

No entanto, os chineses dificilmente farão isso porque significaria menos encomendas americanas para suas fábricas. Além disso, a maior empresa do mundo é a estadunidense Apple, cuja produção vem em grande parte da China.

Por fim, os chineses criaram, recentemente, a estratégia “Zhongguancun Development Group”, que estabeleceu vários centros de inovação tecnológica fora da China. Os mais importantes estão na Califórnia, onde ficam a Universidade de Stanford e as sedes de Google e Apple, e em Boston, próximos de Harvard e do MIT.

Toda essa inter-relação sino-americana tenderia a manter a guerra comercial em baixa temperatura não fosse por um detalhe.

A China criou a maior classe operária da história, concentrada em unidades imensas que produzem para o mundo todo. Os níveis de desigualdade são brutais e há pouca liberdade política e sindical.

Portanto, há material inflamável suficiente para colocar fogo no cenário. Principalmente, com um piromaníaco como Trump rebolando no palco principal.

27 de julho de 2018

Eleições em Gotham City

A confusão reina em Gotham City. Aproximam-se as eleições e os supervilões trocam sopapos para chegar ao poder na cidade. A bagunça ficou ainda maior porque quase todos se parecem com o Charada.

A começar pelo líder das pesquisas. Ninguém tem muitas dúvidas quanto ao que Bolsonaro pensa sobre mulheres, negros, gays, socialistas e sindicalistas. E, se eleito, certamente a vida pioraria muito para a ralé da cidade. Até aí, tudo bem para o bando mafioso que domina Gotham. Mas não se sabe o que o tresloucado faria em relação a economia, mercado, relações exteriores etc. Daí a resistência da elite local em adotá-lo como seu malvado favorito.

Outro forte candidato a ser o Charada é Ciro Gomes. Mas sua retórica nacionalista e pseudoesquerdista oscila cada vez mais. Ora, aproxima-se dos vilões, ora diz defender os fracos e oprimidos. De modo que nesse movimento pendular desloca-se como se fosse o Pinguim.

Alckmin e Marina são os próprios enigmas uniformizados. Não pelo que defendem, mas porque ninguém sabe com certeza qual é seu potencial eleitoral.

O fato é que o único personagem capaz de realmente colocar ordem nisso tudo seria o Coringa. Não o vilão do sorriso arreganhado, mas aquele do baralho. Uma figura que já mostrou ser capaz de apaziguar os de baixo e garantir tranquilidade aos mafiosos que governam em cima.

Ele existe e teria enormes chances de vitória, não fosse um magistrado duas-caras tê-lo trancado na cadeia de uma cidade no sul do País.

Mas, cadê o Batman, perguntariam todos. Bem, este é o único personagem verdadeiramente imaginário nessa delirante e triste Gotham City.

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26 de julho de 2018

Sobre tecnologia, desemprego e capitalismo. Sobre barbárie, enfim

Escrevendo no Globo, em 29/06/2018, Pedro Doria afirmou:

A Uber não foi pensada para carros com motorista. Ela entra no azul mesmo quando não precisar mais pagar motoristas e substituir a frota por carros autônomos. Só que, até lá, é preciso acostumar os consumidores com a ideia de chamar um carro via app. E a maneira de montar um gigantesco portfólio de consumidores é seduzindo-os e aos motoristas simultaneamente. O segredo que permitiu à Uber se tornar líder perante suas concorrentes está no capital que levantou. Foi tanto, mas tanto dinheiro, que lhe permitiu cobrar menos do que taxistas, pagar um percentual alto da corrida aos motoristas, e se estabelecer rápido em incontáveis cidades no mundo. Tudo ao mesmo tempo. Faz tudo no vermelho para ser líder ali na frente.

Em entrevista à revista da EPSJV/Fiocruz, publicada em 05/07/2018, Marildo Menegat, professor da UFRJ, lembra que nas plantações de cana:

Quando as ceifadeiras tornaram-se mais rentáveis, trabalhando 24 horas por dia, cada uma substituindo até 15 trabalhadores, já não se fazia mais necessária a presença de cortadores nessa produção.

 Esse fenômeno tende a se generalizar, diz Menegat. O problema é:

...que o capitalismo produziu hoje é a humanidade como um excesso para o capital. Qual é a solução técnica para este excesso? Eliminá-la. E isso já está acontecendo: temos a maior quantidade de refugiados no mundo, a maior quantidade de pessoas passando fome e a maior quantidade de pessoas trabalhando em condições análogas à escravidão. E, na história do capitalismo, isso só tende a crescer.

É esta a verdadeira solução capitalista para a humanidade. A barbárie.

25 de julho de 2018

Engels, o agente secreto de Marx em Manchester

Segundo a biografia “Karl Marx”, de Francis Wheen, em agosto de 1850, os problemas financeiros da família Marx eram tão graves que Jenny foi à Holanda implorar ajuda a um tio de Karl.

Era Lion Philips, rico empresário cujo sobrenome é famoso, hoje, por seus aparelhos eletroeletrônicos. Consciente das atividades de seu sobrinho, a ajuda de Philips limitou-se a um pequeno presente ao mais novo dos filhos do casal.

Diante disso, só restou apelar novamente ao amigo de todas as horas. Engolindo sua enorme repulsa ao mundo dos negócios, Engels foi trabalhar no escritório da tecelagem de seu pai em Manchester.

De seu gabinete, Engels agia como uma espécie de agente secreto por trás das linhas inimigas. Enviava a Marx detalhes confidenciais do comércio de algodão, observações especializadas sobre o estado dos mercados internacionais e, principalmente, pequenas remessas de dinheiro desviado do caixa da empresa.

Manter a regularidade dos envios sem levantar suspeitas, no entanto, significava, algumas vezes, deixar a família Marx sem dinheiro. Em uma ocasião, escreveu: “Infelizmente ainda não estou em condições de lhe enviar as duas libras que prometi, pois o valor total no caixa é de apenas quatro libras. Infelizmente, será preciso esperar um pouco”.

Mas nem sempre Engels conseguia evitar atitudes estranhas. Aqueles com quem convivia em Manchester não entendiam, por exemplo, seu desânimo quando a economia ia bem e bom humor quando o contrário acontecia.

Na verdade, Engels ansiava desesperadamente por uma grande crise econômica que abrisse oportunidades revolucionárias. Não apenas para libertar grande parte da humanidade de sua condição proletária, como a ele mesmo de seu calvário burguês.

24 de julho de 2018

Na China, uma fábrica com 300 mil trabalhadores e muitos suicídios

A resenha sobre o livro “Behemoth: a History of the Factory and the Making of the Modern World”, ou “Beemote: uma história da fábrica e a produção do mundo moderno”, começa com o seguinte poema:

Eles me treinaram para me tornar dócil / Não sei gritar ou me rebelar / nem como reclamar ou exigir / Aprendi apenas a sofrer de exaustão silenciosamente

O poema é de Xu Lizhi, um operário da Foxconn, em Shenzhen, China. Foi escrito pouco antes de ele cometer suicídio, em 2014. O livro é de Joshua B Freeman. A resenha é de John Newsinger, publicada na revista britânica marxista “Socialist Review”.

Segundo o artigo, uma das fábricas da Foxconn na cidade em que Xu Lizhi se matou tem 300 mil trabalhadores. É a maior planta industrial da história do capitalismo e mostra como é falsa a ideia de que a classe operária é coisa do século passado. Já o número de suicídios nas fábricas chinesas desmentem os que acham que a crueldade da exploração capitalista tornou-se peça de museu.

Mas há outra informação assustadora. Os fabricantes chineses estão começando a transferir sua produção para países onde a mão-de-obra é mais barata. A Huajian Shoes abriu uma fábrica de calçados na Etiópia, onde os salários são cerca de US$ 30 por mês, em comparação com os US$ 560 pagos aos chineses. Inicialmente, a unidade etíope vai receber a produção de calçados da linha “Ivanka Trump”, filha de vocês sabem quem.

Na tradição judaica, o Beemote é um monstro gigantesco e brutal. Na realidade capitalista contemporânea, se desloca pelo mundo destruindo muitas vidas.

23 de julho de 2018

A economia política da "pós verdade" (3)

Mais dois exemplos de como funciona a economia política da pós verdade.

O controlador do Facebook, Mark Zuckerberg, meteu-se em mais uma polêmica. Discutindo como restringir a divulgação de informações falsas em sua plataforma, ele usou como exemplo páginas que negam a existência do holocausto judeu. Segundo Zuckerberg não haveria motivo para vetar um conteúdo desses já que não ameaçaria “diretamente a segurança dos internautas”.

Seria um típico dilema entre a liberdade de expressão e a divulgação de mentiras. Seria, mas não é. Afinal, é sempre bom lembrar que o Facebook é um negócio, e não uma ONG. E um negócio movido a quantidade de likes.

E na linha do velho sensacionalismo jornalístico, exageros mentirosos e falsidades continuam a atrair muita audiência. Muitos likes, no caso.

Outro exemplo envolve o Twitter. A plataforma anunciou no início de julho a suspensão de 70 milhões de contas "suspeitas". Elas seriam manejadas por robôs que produzem spam e contas fake.

Foi o bastante para que as ações da empresa sofressem oscilações para baixo nas bolsas. Acontece que para o “mercado”, tal como no caso do Facebook, o que importa é a reprodução de informações aos milhões, ainda que sejam fraudulentas.

É a economia política da pós-verdade. Nela, tal como já acontece com as outras mercadorias, as informações e notícias perdem cada vez mais relação com sua utilidade prática.

Já não interessa saber o quanto de verdade há numa informação. Apenas o quão rápida e amplamente ela circula. Quanto mais cliques, mais ela vale. Os algoritmos dos monopólios digitais que remuneram pelos volume de acessos não deixam dúvidas sobre isso.

20 de julho de 2018

Dicas para amigos virtuais no Dia do Amigo

Pawel Kuczynski - Soledad 2
Janaína Brizante, doutora em neurociência pela USP, concedeu entrevista para a revista Época, publicada em 13/07/2018. Ela começa dizendo que nosso cérebro:

...evoluiu no meio do mato, sem geladeira, supermercado ou smartphone. Ele não está acostumado a lidar com esse monte de opções. Lá atrás, seu cérebro não tinha de lidar com a incerteza sobre a reação de outra pessoa quando se fala alguma coisa no mundo virtual. O cérebro que hoje lida com isso é um cérebro que evoluiu em um ambiente muito diferente da internet. O máximo de conexão virtual era tomar um alucinógeno e tentar se conectar com os deuses. Era uma experiência transcendental. Hoje, o mundo virtual está em todo lugar.

(...)

Cada vez que um ratinho de laboratório aperta uma barrinha e recebe açúcar, libera um neurotransmissor. Esse sistema de recompensa fica ativo. Instagram, WhatsApp etc. são a mesma coisa. Quando você posta algo e checa a toda hora para ver se alguém curtiu, é isso: barrinha, recompensa. E isso gera ansiedade, sofrimento, pode até levar à depressão.

(...)

Existe uma demanda por contato social físico em nossa espécie, e isso não pode ser substituído. Temos uma geração de adolescentes que ficam muito em casa, porque têm os amigos no WhatsApp o tempo todo. Muitas vezes o excesso de interação virtual pode ser maléfica à saúde mental de um adolescente ou de uma criança. Nosso cérebro tende a interpretar o que acontece no mundo virtual como real também. No final, estamos falando das mesmas dores.

Hoje é Dia do Amigo. Aproveite e envie esses toques para aqueles seus 1.628 amigos virtuais.

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19 de julho de 2018

Trabalho de merda num sistema de bosta

“Sem o seu trabalho, um homem não tem honra. E sem a sua honra, se morre, se mata. Não dá pra ser feliz...”, diz a bela canção de Gonzaguinha.

Para Marx o que define o ser humano é o trabalho. Não precisa ser marxista para concordar. Basta olhar em volta.

No entanto, não é marxista considerar que se trata de qualquer trabalho. Só serve aquele que seja atividade criativa. Transformadora não apenas do mundo material, mas do próprio trabalhador.

O desemprego é uma das mais graves doenças sociais da contemporaneidade. Mas ter um emprego está longe de garantir alguma realização pessoal.

Essa é uma verdade óbvia para muitas ocupações mal remuneradas, pesadas, cansativas, repetitivas, humilhantes, sujas e insalubres.

Mas isso é menos evidente para os “shit jobs”, ou “trabalhos de merda”, conceito criado pelo antropólogo David Graeber.

Segundo ele, trata-se de um tipo de atividade criada pelo mundo corporativo sob o capitalismo financeiro. Uma “forma de trabalho assalariado que é tão inútil, desnecessária ou daninha, que até mesmo o próprio trabalhador não consegue justificar sua existência, ainda que – como parte de suas condições de emprego – se sinta obrigado a fingir o contrário”.

Assessores que não assessoram. Executivos que nada executam. Inúmeras reuniões e decisões sem qualquer objetividade. Enormes relatórios que ninguém lê. Tudo isso em empresas altamente lucrativas.

Mas não é verdade que esse tipo de trabalho não produza nada. Produz depressão, infelicidade e, principalmente, desperdício e concentração de recursos numa sociedade e planetas tão carentes deles.

Só um sistema de bosta para criar um trabalho bem remunerado com o qual não dá pra ser feliz.

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18 de julho de 2018

Marx participa de um programa do Monty Python

A primeira versão do Manifesto para a Liga Comunista feita por Engels era, na verdade, uma "profissão de fé". O rascunho que escreveu em junho de 1847 mostra como ele e Marx ainda estavam apegados aos rituais de iniciação das seitas clandestinas francesas.

Chamava-se "Princípios do Comunismo" e continha mais de sete páginas com perguntas que deveriam ser respondidas pelos candidatos a participar da Liga. Por exemplo:

Pergunta 1: Você é comunista?

Resposta: sim.

Pergunta 2: Qual é o objetivo dos comunistas?

Resposta: Organizar a sociedade de tal maneira que cada membro dela possa desenvolver e usar todas as suas capacidades e poderes com total liberdade e sem infringir as condições básicas desta sociedade.

Em sua biografia de Marx, Francis Wheen não resiste a usar o episódio para lembrar um quadro feito para a TV pelo grupo britânico Monty Python, exibido em 1970.

Nele, Marx aparece em um daqueles programas de perguntas e respostas:

Apresentador: O desenvolvimento do proletariado industrial é condicionado por qual outro desenvolvimento?

Marx: O da burguesia industrial.

Apresentador: Sim, muito bem, Karl! Você está a caminho de uma suíte presidencial!

Marx vai bem na competição até chegar à pergunta decisiva:

Apresentador: Quem ganhou a Copa da Inglaterra em 1949?

Marx: Hã... hã..., o controle dos trabalhadores sobre os meios de produção? A luta do proletariado urbano?

Apresentador: Não, foi o Wolverhampton Wanderers, que derrotou o Leicester por 3 a 1.

Marx: Merda!

Não à toa, Marx escreveu a Engels em 23 de novembro de 1847:

Creio que seria melhor abandonar sua proposta e pensar numa coisa tipo “Manifesto Comunista”.

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17 de julho de 2018

A duvidosa sapiência do Homo sapiens

O que mais tem sido lembrado na vitória da seleção francesa na última Copa do Mundo é a diversidade étnica de seus jogadores. Dos 22 atletas, 18 são filhos ou netos de pessoas vindas de lugares tão diferentes como Filipinas, Haiti, Congo, Senegal, Mali, Angola, Guiné, Togo, Mauritânia, Argélia, Camarões, Ilha de Guadalupe, Martinica, Alemanha, Espanha e Portugal.

Mas antes deles, o selecionado francês também contou, por exemplo, com o polonês Kopa, o italiano Platini, o espanhol Fernández e o argelino Zidane.

De qualquer modo, o que se deveria perguntar é o que significa, afinal, ser francês “legítimo”? Provavelmente, somente deveria ser aceito como tal alguém que provasse sua descendência direta de Asterix, o gaulês. Mesmo assim, um dos criadores do famoso personagem é filho de espanhóis e o outro, de ucranianos.

O fato é que a diversidade e a mistura sempre foram regra na formação das populações humanas. E uma recente pesquisa arqueológica prova que isso é verdade inclusive para a pré-história. Estudo liderado pelos pesquisadores Eleanor Scerri e Lounes Chikhi, em Oxford, mostra que o “Homo sapiens” coexistiu durante muito tempo com outros hominídeos. Principalmente, com o “Homo floresiensis”, o “Homo neanderthalensis“ e o “Homo naledi”.

Nossa espécie seria resultado dessa mistura toda aí. Portanto, nunca houve uma população humana pura. Nosso único atributo preservado ao longo de muitos milênios seria a “sapiência”. Acredita-se que esta capacidade para o acúmulo de conhecimento e sabedoria nos distinguiria dos outros animais. Mas, diante da persistência de teorias e comportamentos racistas e discriminatórios, talvez mesmo esta característica ainda esteja muito longe de prevalecer entre nós.

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16 de julho de 2018

Explicando a charlatanice capitalista para crianças

O livro “Comunismo para crianças”, de Bini Adamczak, tem um público-alvo muito definido. Mas sua didática também pode ajudar os mais velhos. Vejamos um exemplo:

O tabuleiro “ouija” consiste numa mesa com um copo emborcado no meio. As letras do alfabeto estão escritas no tampo. Várias pessoas sentam em volta da mesa e colocam o dedo no copo, que começa a se mover, lentamente, de uma letra para a outra, formando palavras ou frases. As pessoas não percebem que são elas que movem o copo, porque tremor individual de suas mãos não poderia provocar o movimento sozinho. Em vez disso, pensam que se trata de um espírito enviando alguma mensagem por meio delas. Esse “jogo” ilustra muito bem como a vida funciona sob o capitalismo. (...) O copo se move apenas porque os participantes agem juntos em vez de separadamente. Mas eles nem percebem que estão cooperando (...). Se esse coletivo se reunisse conscientemente para pensar sobre o que realmente pretendiam escrever, o resultado provavelmente seria muito diferente. Pelo menos, não haveria incerteza sobre quem escreveu a mensagem. Mas do jeito que foi feito, o texto parece ter sido escrito por uma mão invisível. E como ninguém pode explicar como isso aconteceu, predomina a crença em um poder sobrenatural, como um espírito ou espectro.

Na verdade, para Marx, a história humana sempre foi assim. “Os homens fazem a história, mas não sabem que a fazem”, disse ele. A grande diferença é que sob o capitalismo, já teríamos condições concretas para desmascarar muito desse charlatanismo místico. Incluindo a atual crença cega nas leis do mercado.

Leia também: Quem pode desarmar a bomba-relógio do capital?

13 de julho de 2018

Marx, Engels e o quebra-cabeças capitalista

Na biografia “Karl Marx: Grandeza e ilusão”, Gareth Stedman Jones destaca o papel fundamental de Engels na obra de Marx. Foi ele, por exemplo:

...o primeiro a identificar as possibilidades revolucionárias da indústria moderna, a ressaltar o lugar do operário fabril e a dramatizar para socialistas alemães o caráter da moderna luta de classes industrial. Seu estudo sobre a Inglaterra ligava os estágios da formação da consciência de classe proletária a fases do desenvolvimento industrial. Seu interesse central pela fábrica movida a energia a vapor, em vez da oficina, também o levou a enfatizar a relação entre trabalhadores e meios de produção, em vez do produto isolado, e a descrever a relação entre as classes, em vez da competição entre indivíduos alienados; e esse relato impressionou Karl profundamente. Quase vinte anos depois, Karl escreveu para Engels: “No que diz respeito às principais teses do seu livro […] elas foram confirmadas até o último detalhe pelos acontecimentos posteriores a 1844”.

Foi assim que Engels levou Marx a buscar outros autores fundamentais. É o caso especialmente de Simonde de Sismondi, David Ricardo e Adam Smith, cujas contribuições foram devidamente reconhecidas por ele.

Mas foi a genialidade de Marx que tornou possível juntar os elementos capazes de dar um panorama coerente para o enorme e confuso quebra-cabeças que é a sociedade capitalista.

Não para resolvê-lo, mas para desmontá-lo. Na maior parte do tempo, peça por peça. Mas, muitas vezes, com uns bons chutes. Para Marx, e principalmente para o belicoso Engels, havia momentos em que a luta de classes tornava inevitável quebrar algumas cabeças.

Engels, o anjo torto de Marx

12 de julho de 2018

Quem são os porteiros do fascismo

Publicado na Revista Serrote, o artigo “Cinco lições de história para antifascistas”, do historiador Mark Bray, traz como primeira lição o fato de que “as revoluções fascistas nunca tiveram sucesso. Os fascistas chegaram ao poder por vias legais”.

Segundo o autor, essa circunstância mostra as falhas da “fórmula liberal de oposição ao fascismo”, cuja essência seria:

...a crença no debate racional para se contrapor às ideias fascistas, na polícia para se contrapor à violência fascista, e nas instituições republicanas para se contrapor às tentativas fascistas de tomar o poder. Sem dúvida, essa fórmula funcionou algumas vezes. Mas em outras tantas não funcionou.

E continua:

...a história mostra que as instituições republicanas nem sempre foram uma barreira ao fascismo. Pelo contrário, em diversas ocasiões, funcionaram como um tapete vermelho. Quando as elites econômicas e políticas do entreguerras se sentiram ameaçadas pela perspectiva da revolução, recorreram a figuras como Mussolini e Hitler para esmagar impiedosamente as dissidências e proteger a propriedade privada.

A polícia, por sua vez, até prende e combate os fascistas, mas a história mostra que, assim como os militares, ela é um dos grupos mais ávidos pela “restauração da ordem”.

Por fim, ele conclui:

Historicamente, contudo, o fascismo não precisou derrubar portões para ganhar acesso aos centros do poder. Bastou convencer os porteiros a deixá-lo entrar.

Em outro trecho do mesmo artigo, Bray mostra como entre esses porteiros, também estiveram setores da esquerda. Seja por menosprezarem a ameaça fascista, seja por confiarem em autoridades que não hesitam em atropelar quaisquer leis e direitos sempre que os interesses de ricos e poderosos são ameaçados.

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Contra fascistas ou fascistoides, a luta é uma só

11 de julho de 2018

Os zaps e tuítes e seus antepassados

No livro “O que é fascismo? – e outros ensaios”, de George Orwell, aparece um texto publicado por ele no jornal “Tribune”, em 08/12/1944. Um trecho diz o seguinte:

Durante anos no passado fui um laborioso colecionador de panfletos, e um leitor razoavelmente constante de literatura política de todos os tipos. O que me impressiona cada vez mais – e impressiona muitas outras pessoas também – é a extraordinária depravação e desonestidade da controvérsia política em nossa época. Não estou meramente afirmando que controvérsias são acrimoniosas. Elas têm de ser quando tratam de assuntos sérios. Estou dizendo que quase ninguém parece achar que um oponente merece ser ouvido com atenção, ou que a verdade objetiva importa tanto quanto você ser capaz de marcar ponto num debate. Quando olho para minha coleção de panfletos – conservadores, comunistas, católicos, trotskistas, pacifistas, anarquistas ou sabe-se lá o que mais –, a mim parece que quase todos têm a mesma atmosfera mental, embora os pontos de ênfase variem. Ninguém está em busca da verdade, todos estão apresentando um “caso” com total desconsideração à imparcialidade ou à exatidão, e os fatos mais evidentemente óbvios podem ser ignorados por quem não os quer ver. Em quase todos eles podem-se encontrar os mesmos truques de propaganda. Seria necessário preencher muitas páginas deste papel apenas para classificá-los, mas chamo aqui a atenção para um hábito muito disseminado e controverso – o de desconsiderar os motivos do oponente.

Panfletos estão meio fora de moda. Mas é só trocá-los por “zaps” ou “tuítes” no texto acima para atualizá-lo sem grandes problemas. Com o agravante de terem um alcance muito maior, hoje.

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10 de julho de 2018

Karl Marx era satanista?

A pergunta acima está no título de um livro publicado em 1976 por um evangelista americano, o reverendo Richard Wurmbrand.

A informação consta da divertida biografia de Marx escrita por Francis Wheen, que também cita um trecho da “obra”:

Já que uma seita satanista é altamente secreta, nós só podemos contar com algumas pistas sobre possíveis conexões entre uma delas e Marx. Quais seriam elas? Bem, quando era estudante, Marx escreveu uma peça de teatro cujo título, “Oulanem”, é mais ou menos um anagrama de Emanuel, o nome bíblico de Jesus - e, portanto, nos lembra das inversões típicas de uma missa negra satanista.

Outra dessas pistas seria o “penteado” de Marx. Segundo o tal reverendo algumas características ligadas à aparência dele eram típicas dos discípulos de Joanna Southcott, uma sacerdotisa satânica que manteria contato com o demônio Shiloh. Mais especificamente, o cabelo grande e cheio, assim como a barba espessa.

Na verdade, diz Wheen, na Inglaterra da época de Marx não faltavam cavalheiros com características “capilares” semelhantes. Do famoso jogador de críquete W.G. Grace ao renomado político Lord Salisbury. “Será que eles também andavam conversando com o demônio Shiloh?”, pergunta o biógrafo.

Se depender dessas “pistas” para ser confirmada, a hipótese realmente não faz nenhum sentido. Mas há outras mais promissoras, ignoradas por Wurmbrand.

Entre elas, a opinião do pai de Marx, para quem o filho tinha um “espírito demoníaco”. Ou um poema em que Engels acusava o parceiro de, muitas vezes, se comportar como “se dez mil demônios o agarrassem pelos cabelos...”.

Mas, afinal, por que não considerar também o conjunto da obra?

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9 de julho de 2018

João Saldanha e a “burrice siderúrgica” no comando da seleção

Em 05/07/1982, a lendária seleção brasileira de Telê Santana deu adeus à Copa, perdendo para a Itália. João Saldanha estava lá e naquele mesmo dia escreveu em sua coluna para o Jornal dos Esportes:

Pois querem saber se fico nervoso na hora de jogos de Copa do Mundo? Fico sim.

Mas só tremo na primeira fase eliminatória, que pode ser vexaminosa. E sabem por quê? Porque a gente sempre diz, afirma e reafirma que nosso futebol é o melhor do mundo. Pois acho que é e não tenho a menor dúvida. Daí o medo em perder logo de cara.

A gente perde, volta melancolicamente porque os patrocinadores marcam logo a passagem. As companhias de aviação, sempre quando se pede passagem, dizem que precisam confirmar, que precisam computar e o diabo a quatro. Mas para o time que perde jogo na Copa é só chegar no balcão que a mocinha diz logo: "Tem sim, o avião está vazio." Bandida.

Agora tiro de letra. Agora já pudemos provar a todos e principalmente aos nossos torcedores, isto é o mais importante, que nosso futebol, o futebol brasileiro é o maior espetáculo da terra.

Mas, a partir daí, o jornalista só veria as coisas piorarem. Depois de testemunhar outra desclassificação em 1986, Saldanha morreria em plena Copa de 1990, na Itália. Na cama do hospital, escreveu um derradeiro artigo dizendo que a seleção brasileira estava entregue à “burrice siderúrgica” de seu treinador, Sebastião Lazaroni.

Responsável por mais uma desclassificação brasileira, Lazaroni logo deixaria a seleção. Já quanto à burrice, há controvérsias. Talvez, só tenha deixado de ser siderúrgica.

Leia também: João Saldanha bem que avisou

6 de julho de 2018

O futebol é sua própria metáfora

No livro “Anatomia de uma derrota”, Paulo Perdigão faz uma detalhada descrição da vitória do Uruguai sobre o Brasil no final da Copa de 1950, no Maracanã. Até 2014, a maior tragédia do futebol brasileiro.

Mas um trecho da obra destaca a partida Brasil e Espanha, em que, na condição de locutor, Ary Barroso descreveu o elenco brasileiro do seguinte modo:

A música é lenta e suave. Danilo está com a pelota. Ligeira variação. Passa a Bigode, e a melodia vai num crescendo violento. A técnica de Danilo lembra Chopin, manso, doce, inspirado. Bigode é a selvagem poesia nacional de Villa-Lobos. Jair é Wagner, poderoso e dramático. Quando a bola está com Zizinho, é Mozart tecendo filigranas, mas, se entrega a Ademir... Beethoven? Não, nem Liszt, Strauss, Tchaikovsky ou Verdi. O futebol de Ademir é a música da terra, de ritmo marcante e beleza inconfundível. Que faz Ademir a caminho do arco, senão passes do mais puro samba, da mais brasileira das capoeiras, e, se dribla, é maxixe autêntico, é jongo, é o frevo de sua terra pernambucana. Um estrangeiro disse que o selecionado do Brasil é uma orquestra sinfônica afinada. Acrescente-se que, sob a batuta de Ademir, é uma orquestra tocando em ritmo de samba.

O jogo terminou 6 a 1 para o Brasil. Antes, já havíamos batido a Suécia por 7 a 1. Ou seja, quando chegamos ao último jogo, ninguém esperava que nossa orquestra acabasse dançando ao ritmo de um tango uruguaio misturado com candombe.

Portanto, melhor evitar metáforas musicais ou quaisquer outras. Afinal, o futebol já é, ele próprio, uma poderosa metáfora.

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5 de julho de 2018

Contra fascistas ou fascistoides, a luta é uma só

No artigo “Cinco lições de história para antifascistas”, o historiador Mark Bray diz ser necessário reconhecer a relação entre dois dos muitos registros do antifascismo: o analítico e o moral.

O registro analítico refere-se a “definições e interpretações do fascismo ancoradas na história”.  O registro moral entra “em cena quando lentes antifascistas são aplicadas a fenômenos que podem não ser fascistas, tecnicamente falando, mas que são fascistoides”.

Por exemplo:

...os Panteras Negras estavam errados ao chamar os policiais que mataram negros impunemente de “porcos fascistas”, mesmo que eles não estivessem defendendo pessoalmente crenças fascistas ou mesmo que o governo norte-americano não fosse literalmente fascista? Em uma manifestação antifascista em Madri, vi uma bandeira do arco-íris com o lema “homofobia é fascismo”. Será que a existência de homofóbicos não fascistas invalida esse argumento?

Nesses casos, o termo “fascismo”, diz Bray, se tornou:

...um significante moral que aqueles que lutam contra diversos tipos de opressão usam para enfatizar a ferocidade de seus inimigos políticos e os elementos de continuidade que eles compartilham com o fascismo histórico. A Espanha de Franco pode ter sido antes um regime militar católico tradicionalista do que um fascismo propriamente dito, mas tais diferenças tiveram pouca importância para quem foi perseguido pela Guarda Civil.

É por isso que:

Embora seja verdade que o epíteto “fascista” perca parte da força se aplicado de forma muito difusa, um elemento fundamental do antifascismo é promover a organização contra políticas fascistas e contra políticas fascistoides, em solidariedade a todos aqueles que sofrem e lutam. Questões conceituais deveriam influenciar nossas estratégias e táticas, não nossa solidariedade.

Perfeito!

Leia também: O fascismo como palavrão

Ciro Gomes: para bom entendedor...

Abaixo, algumas notas publicadas na Coluna do Estadão, em 02/07/2018:

Ciro Gomes rejeitou, em conversa com o setor financeiro, tocar a reforma da Previdência proposta pelo governo caso eleito. O pedetista defende o reinício do diálogo. E disse que apenas ele e Marina Silva (Rede), pela ligação com a esquerda, conseguiriam fazer esse debate.

Um dos pontos que mais chamou a atenção dos investidores da XP na palestra de Ciro, também na quinta, foi a convicção com o que o pedetista disse que só a esquerda teria condições reais de implementar reformas.

De acordo com a avaliação do ex-ministro, essas siglas têm diálogo com setores da sociedade resistentes às propostas e capacidade de convencimento.

Parênteses: Em discurso feito em março de 2003, na posse do presidente da Associação Comercial Paulista, Lula afirmou o seguinte em relação à Reforma da Previdência:

Por que eu dizia na campanha que somente eu poderia fazer a reforma? Não porque eu fosse melhor do que os outros. Era porque eu sabia que a reforma terá de enfrentar uma base muito organizada, e uma grande parte dela votou em mim, votou no Ciro, não votou no governo FHC.

Voltando ao tempo presente, na mesma coluna, mas do dia anterior, uma nota dizia que Ciro impressionou o comandante do Exército, general Villas Bôas, numa das conversas que o militar está tendo com todos os pré-candidatos:

A interlocutores, Villas Bôas disse que Ciro se mostrou muito preparado, fugindo do óbvio discurso de reforçar as fronteiras. O ex-capitão Jair Bolsonaro (PSL) não entusiasma o alto-comando do Exército. Ele tem mais respaldo entre praças e suboficiais.