Doses maiores

31 de janeiro de 2024

O racismo sionista instrumentaliza o racismo antissemita

No momento em que o Estado de Israel aprofunda sua política de genocídio contra os palestinos, atingindo principalmente a população da Faixa de Gaza, é importante recuperar um pouco da história do sionismo.

É o que faz João Bernardo, em seu livro “Labirintos do Fascismo”, ao lembrar que na obra considerada fundadora do movimento sionista, “O Estado Judeu”, publicada em 1896, Theodor Herzl dizia que bastava uma presença substancial de judeus para necessariamente provocar reações antissemitas. Desse modo, a única alternativa seria a separação e o estabelecimento dos perseguidos num território autônomo. Tal território seria a Palestina.

Já Chaim Weizmann, que se tornaria o primeiro presidente de Israel, declarou em 1912, em uma palestra feita em Berlim, que “para evitar perturbações internas, cada país só pode absorver um número limitado de judeus. E a Alemanha já tem judeus demais”.

Segundo Bernardo, era essa a doutrina básica do sionismo, cujos dirigentes encontravam no racismo dos outros povos a condição indispensável para se tornarem, eles também, governantes de um povo eleito. Por isso desde muito cedo o movimento sionista procurou estabelecer acordos com governos hostis aos judeus e convencê-los de que ambos convergiam no mesmo objetivo imediato. Se os antissemitas queriam desembaraçar-se dos compatriotas judaicos e os sionistas pretendiam aumentar o número de judeus na Palestina, por que não unirem os esforços?

Um século depois, o sionismo continua usando o antissemitismo para falsear a realidade. Confunde as denúncias contra o governo assassino de Israel com ataques aos judeus. Quer sobrepor o legítimo direito à autodeterminação dos israelenses à própria existência de outros povos.

Leia também: A estupidez do sionismo de esquerda

30 de janeiro de 2024

Jornalismo revolucionário: os oito nomes do Pravda

No centenário da morte de Lênin, voltamos ao artigo “Lenin’s Pravda”, de Tony Cliff, sobre o jornalismo revolucionário defendido pelo líder russo. Nele ficamos sabendo que o Pravda, principal jornal do partido bolchevique, mudou de nome oito vezes. As constantes alterações aconteciam devido à forte perseguição que o periódico sofria da ditadura czarista.

Frequentemente, as instalações do jornal eram invadidas, edições confiscadas, multas impostas, editores presos, jornaleiros assediados. Mesmo assim, foram publicados 645 números de 1912 a 1914, quando deu lugar a outros jornais até retornar após a revolução de 1917. Isto foi possível em grande parte devido à engenhosidade da equipe editorial para contornar as perseguições, ao apoio financeiro dos leitores, a lacunas na lei de imprensa e à ineficiência da polícia.

Uma linguagem codificada procurava evitar o confisco imediato das edições. No lugar do nome do partido, “subterrâneo”, “buraco” ou “velho”. O programa bolchevique, que defendia a república democrática, confisco das propriedades fundiárias e jornada máxima de 8 horas era chamado de “exigências de 1905” ou os “três pilares”. Um bolchevique era um “democrata consistente” ou um “marxista consistente”. Os trabalhadores mais militantes conseguiam decifrar essa linguagem sem maiores problemas.

Essas e outras dificuldades para fazer circular um periódico revolucionário em plena ditadura autocrática na Rússia do início do século passado deveriam servir de exemplo. As dificuldades e obstáculos atuais são bem diferentes e igualmente enormes, mas Lênin defendia que o trabalho revolucionário era resultado de intervenções concretas adaptadas às situações concretas, sejam elas quais fossem. Hoje, como na época de Lênin, não adianta tentar combinar com os russos.

Voltaremos ao tema.

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29 de janeiro de 2024

Fé e Fuzil: a Teologia da Libertação contra a ditadura

A chamada Teologia da Libertação surgiu para “evitar a revolução”, diz Bruno Paes Manso em seu livro “A fé e o fuzil”. É verdade. Tudo começou com o Concílio Vaticano II, em meados dos anos 1960. Em plena Guerra Fria, a cúpula católica queria fazer sua parte na resistência ao comunismo, propondo uma leitura da Bíblia centrada na opção pelos pobres.

Mas dito isso, não se pode esquecer o papel fundamental de importantes setores católicos na resistência à ditadura militar no Brasil. Como diz Manso:

A articulação política da Igreja, os holofotes jogados nos porões, a análise crítica sobre a economia e a sociedade, a presença nas periferias e nas favelas e a defesa dos pobres das cidades formavam um poderoso projeto político de oposição, que dialogava fortemente com os anseios da época (...). Apostava-se na queda dos militares, na restituição da democracia para mediar o imenso potencial do sistema de mercado e adequá-lo à necessidade das pessoas.

A esquerda tornara-se “portadora dos sonhos e utopias urbanos, potencializados pelo carisma de um Jesus Cristo rebelde e progressista”. Estava sendo posto em prática “um projeto consistente, que gerava engajamento, contribuía para unir as forças de oposição” e contava com a participação de uma elite intelectual pronta para reassumir as rédeas do país.

Contra os militares, forjou-se “um projeto alternativo vinculado a uma maior participação popular”, conclui o autor.

Foi desse campo que saiu a poderosa liderança de Lula. Muitos de nós participamos de sua ascensão vitoriosa. Hoje, o projeto perdeu seu potencial utópico, golpeado pela distopia do neopentecostalismo conservador. Somos testemunhas de sua heroica, mas precária sobrevivência.

Leia também: Fé e fuzil: surgem os esquadrões da morte

26 de janeiro de 2024

Fé e fuzil: surgem os esquadrões da morte

José Miranda Rosa, o Mineirinho, era morador do Morro da Mangueira e acusado de diversos assaltos e homicídios. Em maio de 1962, foi executado por policiais com treze tiros. Em junho daquele mesmo ano, Clarice Lispector publicou na revista Senhor a crônica “Um grama de radium – Mineirinho”. Um trecho dizia:

Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina – porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro.

Em uma entrevista publicada em 1977, ela explicaria: “Qualquer que tenha sido o crime dele, uma bala bastava. O resto era vontade de matar. Era prepotência.”

Em 1958, o general Amaury Kruel, chefe do Departamento Federal de Segurança Pública, já encarnara essa prepotência violenta criando o grupo Diligências Especiais para atuar em casos de grande repercussão. Seu líder era Milton Le Cocq, o policial que viria a conduzir a caçada que executou Mineirinho. Em 1965, policiais criaram uma irmandade batizada de Scuderie Le Cocq. Os esquadrões da morte entravam em cena para ficar. Apenas assumiriam novas formas, como as atuais milícias.

As informações acima estão no livro “A Fé e o Fuzil” de Bruno Paes Manso. Continuaremos a comentar essa obra na próxima pílula.

Leia também: Fé e fuzil: a Cristolândia tocando “pragod” na Cracolândia

25 de janeiro de 2024

O jornalismo revolucionário segundo Lênin

No mês do centenário da morte de Lênin, vale dar uma olhada em sua concepção de jornalismo revolucionário. O artigo “Lenin’s Pravda” de Tony Cliff, por exemplo, traz um trecho que diz:

O Pravda não era um jornal para trabalhadores; era um jornal dos trabalhadores. Era muito diferente de muitos outros jornais socialistas, escritos por um pequeno grupo de redatores brilhantes. Lenin dizia que nesses jornais não havia vestígios de iniciativa dos trabalhadores, ou de qualquer ligação com organizações da classe trabalhadora. No Pravda, ao contrário disso, mais de 11 mil cartas e notas de trabalhadores eram publicadas em um ano, média de 35 por dia.

Na passagem abaixo, é o próprio Lênin que deixa claro o que pensa sobre a função de um verdadeiro jornal operário:

Ao ler os relatos e as cartas dos trabalhadores de fábricas e escritórios em toda a Rússia, o público do Pravda, em sua maioria disperso e separado pelas grandes distâncias e severas condições geográficas da vida russa, conseguia ter uma ideia de como lutam os proletários dos vários ramos e localidades, assim como viam o despertar para a luta em defesa da democracia da classe trabalhadora.

Tudo isso pode cheirar a naftalina em pleno século 21, com seus meios de comunicação caóticos, mas sob firme controle de monopólios cada vez mais poderosos. No entanto, a situação na Rússia czarista, sob feroz repressão policial e pesada censura estatal, não era nem um pouco melhor que a nossa. Trata-se de encontrar formas de atuar nas condições concretas. De enfrentar o velho e fundamental desafio sobre o que fazer.

Leia também: As suspeitas sobre a morte de Lênin

24 de janeiro de 2024

Fé e fuzil: a Cristolândia tocando “pragod” na Cracolândia

Sérgio é um personagem do livro “Fé e Fuzil”, de Bruno Paes Manso. Membro da instituição evangélica Cristolândia, ele e outros “missionários” percorriam a Cracolândia paulistana tentando convencer os usuários de drogas a mudar de vida. Chegavam tocando samba (que chamavam de “pragod”), oravam para expulsar demônios e distribuíam sopas e cobertores.

Ainda menino, Sérgio foi abusado por um homem de sua família. Adulto, tornou-se travesti e foi para a Europa, onde caiu vítima de uma gangue de tráfico humano. De volta ao Brasil, acabou na Cracolândia, mas foi “resgatado” pelos religiosos da Cristolândia.

Sérgio não condenava moralmente os transexuais ou travestis. Sua missão na Cracolândia era trabalhar com elas, não para que mudassem suas identidades ou orientações, mas para que deixassem as drogas e as ruas. Quando os transexuais e travestis aceitavam dormir no abrigo da instituição, recebiam calcinhas e roupas femininas, não cuecas, camisetas e bermudas. Sérgio defendia que o trabalho de doutrinação religiosa só seria efetivo se essas pessoas fossem respeitadas e aceitas como tais.

Depois de se converter ao cristianismo, Sérgio fez várias cirurgias para retirada de silicone e frequentou um curso de teatro para “recuperar o que entendia como comportamento masculino”. Na época que Manso o conheceu, estava prestes a se casar com uma missionária de Curitiba.

Se Sérgio livrou-se do inferno das drogas e das ruas, sua conversão pode representar o ingresso em nova etapa de sofrimento, ao ceder à repressão religiosa e violentar sua sexualidade. Mas, mesmo equivocada em seus fins, a abordagem emocional e afetiva que adotou em seu trabalho deveria servir de exemplo à militância de esquerda.

Leia também: Fé e Fuzil: a Bíblia como manual de instrução

23 de janeiro de 2024

Nomofobia, a doença que é um sintoma

Nomofobia. Trata-se de um distúrbio patológico que atinge a todos, sem distinção de classe, cor, sexo, religião, nacionalidade, ideologia, preferências político-partidárias. Alvinegros, rubro-negros, tricolores, alviverdes, esquerdistas, bolsonaristas, todos são igualmente afetados.

Não há grupo de risco porque o perigo é global. Literalmente. São poucos os lugares do mundo imunes à nomofobia, a não ser pela rara condição de estarem isolados dos elementos que a causam. Os sintomas são ansiedade, desorientação, sensação de inutilidade, vazio mental, dificuldade de refletir sobre assuntos complexos e até sobre coisas mais banais.

Apesar disso, governos e organizações internacionais de saúde pública não parecem preocupados com essa pandemia que se alastra sem alarde. Nomofobia vem do inglês “no-mobile”: “sem celular”. É a ansiedade provocada pela privação do acesso ao celular. Uma espécie de síndrome de abstinência causada pela desconexão das redes virtuais.

É preciso ocupar todos os sentidos com imagens, sensações e sons fragmentados e ininterruptos. Na fila, na condução, cozinhando, fazendo faxina, nas inúmeras tarefas cansativas, mas sem sentido. Há que haver palestras, entrevistas, tramas, fantasias. Tudo reproduzido de modo vertiginoso, em horário integral.

O silêncio, a contemplação ou a simples conversa tomam tempo que precisa ser totalmente entregue à exploração econômica acentuada e ao consumismo acelerado. É necessário inviabilizar o pensamento, a reflexão e o debate racional, que podem servir para entender melhor e, talvez, combater essa realidade cada vez mais opressora do cotidiano capitalista.

Na verdade, a nomofobia é só um sintoma. Ela deriva da dependência das redes virtuais, que, por sua vez, fazem parte do implacável processo de acumulação capitalista. Este, sim, a grande moléstia contemporânea.

Leia também: A esquerda e sua fatal dependência das redes

22 de janeiro de 2024

Fé e Fuzil: a Bíblia como manual de instrução

“A vida nas cidades não permite um respiro sequer”, diz Bruno Paes Manso em seu livro “Fé e Fuzil”. Ele se refere à urbanização desenfreada da sociedade brasileira desde meados do século passado. Para as populações vindas do campo que desembarcavam nas grandes cidades, era “cada um por si, numa competição desesperada para superar a pobreza”.

Nessa situação, “ganha quem consegue mais dinheiro, não apenas para as necessidades urgentes e concretas, mas também para as conquistas materiais simbólicas que garantem respeito, status e protegem de situações violentas e humilhantes”, diz ele.

“Muitos ficam pelo caminho, pobres, com fome, sem emprego”. Não poucos encontraram no crime um atalho ilusório e fatal para a resolução de seus problemas. “Entre matadores, policiais, grupos de extermínio e criminosos, o sistema funcionava como uma máquina bem azeitada de produzir pecadores, enquanto os pentecostais tentavam faturar oferecendo um antídoto para essas almas”, afirma Manso.

O remédio fornecido pelos “crentes” converteu os mais convictos “pecadores”.  Foi o caso do tenente Pereira, policial militar condenado e preso por executar suspeitos. Segundo ele, sua conversão para uma vida livre da dominação demoníaca aconteceu graças a um manual de instruções chamado Bíblia. “Se você não ler o manual, não seguir o manual, a sua tendência é ser destruído”, assegura.

Nada disso seria problema se não servisse para ocultar o que realmente está por trás do massacre cotidiano da população pobre e explorada das grandes cidades. São os poderes entranhados na materialidade da máquina de exploração e opressão do capitalismo contemporâneo. Poderes que podem até ser diabólicos, mas não têm nada de sobrenaturais.

Leia também: Na periferia do Rio, Faixa de Gaza e Complexo de Israel

19 de janeiro de 2024

As suspeitas sobre a morte de Lênin

Em 21 de janeiro, completam-se 100 anos do falecimento de Lênin. Sua morte prematura, aos 54 anos, teria sido causada por sequelas decorrentes de um atentado que sofrera em 1918. Mas há outras versões. Por exemplo, assassinato por envenenamento.

No seu livro “Havia alternativa ao stalinismo?” o historiador russo Vadím Rogóvin explica que, no início de 1924, o principal perigo para Stálin não era Trotsky, cuja influência no partido bolchevique havia diminuído nos meses anteriores, mas Lênin.

Liderança máxima do processo revolucionário, Lênin cada vez mais manifestava divergências em relação à centralização do poder por Stálin. E essa disposição ficou muito clara no chamado “testamento” de Lênin. Trata-se dos últimos documentos escritos por ele, cuja íntegra permaneceu secreta por anos.

Lênin estava acamado há meses, impossibilitado de acompanhar os debates do partido e a construção soviética. À Nádia Krupskaya, sua mulher, ele manifestara o desejo de ser envenenado, caso se tornasse incapaz. O escolhido para atender esse pedido quando a hora chegasse teria sido Stálin.

Em artigo de 1939, Trotsky concluiu que Lênin escolheu Stálin por ser a única pessoa próxima a ele que não vacilaria em atender o trágico pedido. Stálin, por sua vez, teria se negado a cumprir a tarefa e advertira membros da direção partidária para o perigo de deixar substâncias venenosas ao alcance de Lênin.

Outro historiador russo, Abdurakhman Avtorkhanov, escreveu que Stálin pode ter cometido o crime perfeito. Caso fosse constatada a presença de veneno no organismo de Lênin, Stálin seria o primeiro a dizer “eu avisei!”. 

A autópsia foi feita às pressas para viabilizar o embalsamamento do corpo.

Leia também: Fazendo o L de Lênin

18 de janeiro de 2024

Dois grandes pontos cegos na desigualdade brasileira

Entre 2017 e 2022, a renda de 15 mil pessoas pertencentes ao topo da pirâmide social no Brasil cresceu o triplo do ritmo observado entre o restante da população. Essa elite representa 0,01% da população. Enquanto isso, os ganhos dos 95% mais pobres não passaram dos 33%. Não por acaso, aconteceu no período Temer/Bolsonaro.

Essas informações estão em recentes matérias da Folha e do Globo, que citam números de um estudo da FGV.

Segundo a mais recente edição da “Síntese de Indicadores Sociais”, do IBGE, a pessoa mais rica do país tem uma renda mensal de R$ 597 mil, equivalente a 377 vezes a renda média geral e 3.665 vezes a renda média dos 10% mais pobres.

Em novembro passado, Marcelo Medeiros lançou o livro “Os Ricos e os Pobres: o Brasil e a desigualdade“. Nele, divulgou o seguinte dado: “Para uma pessoa entrar para o grupo dos 10% mais ricos do País, basta receber R$ 3.800 reais mensais, trabalhando com carteira assinada”.

Estes números deveriam ser motivo de grande preocupação por parte da esquerda. Grosso modo, eles sinalizam que há dois grandes pontos cegos na disputa de classes que travamos. 

O primeiro fica no alto. Os super-ricos usam seu imenso poder econômico para controlar os destinos do País. Das menores prefeituras ao governo federal, passando pelos governos estaduais. Dos tribunais e parlamentos aos quartéis. Em cada centro de poder, postos-chave são ocupados por seus representantes. E é para estes que olhamos, não para seus mandantes. 

Embaixo, está a imensa multidão de despossuídos. Há tempos, deixamos de enxergá-los, enquanto a direita os manteve sob sua mira.

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17 de janeiro de 2024

Na periferia do Rio, Faixa de Gaza e Complexo de Israel

Em 2016, na periferia da zona norte do Rio, havia uma região dividida por conflitos violentos conhecida como Faixa de Gaza até que foi pacificada e unificada sob o nome de Complexo de Israel. Essa operação foi feita de forma violenta e liderada por um traficante chamado Peixão.

Leitor da Bíblia, Peixão compara sua trajetória à de personagens sagrados nas guerras de conquistas territoriais do povo de Israel. Ele alega que sua autoridade decorre diretamente do Criador. Para além dos lucros do tráfico, sua governança baseia-se nos textos sagrados.

“Traficrentes” é o apelido que convertidos como Peixão receberam no Rio. Diferente de outros que aderiram à fé cristã e abandonaram as atividades ilegais, ele continua ganhando dinheiro com o crime. Ostenta fuzis, corrompe policiais e é implacável com os inimigos.

Por outro lado, investiu em pavimentação e coleta de lixo, além de construir uma ponte que a comunidade esperava da prefeitura há muitos anos. Com direito até a prestação de contas, revelando para a população os custos da construção.

Tudo isso está no livro “Fé e Fuzil”, de Bruno Paes Manso. O discurso de Peixão não é simples simulação para enganar os incautos, diz o autor. Ele atribui um sentido para sua missão. Sustentar e fortalecer os guerreiros de Deus, vendendo drogas para os adoradores do diabo.

No Rio de Janeiro, com seu longo histórico de governadores presos, “é como se as leis republicanas estivessem suspensas”, afirma Manso. Mas, certamente, para a grande maioria pobre e marginalizada da população, leis republicanas são mais abstratas que fanatismos religiosos ou as regras brutais do crime.

Leia também: Fé e fuzil: a metanoia e os traficrentes

16 de janeiro de 2024

Fé e fuzil: a metanoia e os traficrentes

“Metanoia” é um conceito que aparece no livro “Fé e Fuzil”, de Bruno Paes Manso. Representa “uma mudança de consciência e de comportamento que não acontece por ameaça de punição, nem por mera pressão social, mas por convicção pessoal, em decorrência de uma crença que faz o sujeito passar a enxergar o mundo de outra forma e a agir conforme ela.”

O processo é radical e quase sempre envolve uma religião, diz o autor. Quem passa por ele adota “outro programa mental”, que o torna um “abençoado”.

Segundo Manso, a partir da metanoia, o “abençoado” iniciava seu caminho sem passivos. Mesmo porque para boa parte dos pentecostais, “a perversidade pregressa, a maldade, as pisadas na bola em geral, tinham sido resultado da ausência de Jesus na vida do indivíduo” e da “influência do Diabo, o inimigo de Cristo”.

Essas conversões ofereciam respostas para suportar o cotidiano das misérias materiais e existenciais dos centros urbanos, criar oportunidades, abrir caminhos. “Bastava crer para ver o portal se abrir. O crente ganhava passaporte para um novo mundo que direcionava suas escolhas, dava uma missão transcendente e preenchia o vazio da vida”, afirma o autor.

Após a conversão, muitos abandonaram suas atividades criminosas. Mas outros se mantiveram fora da lei. É o caso de Peixão, um traficante que criou o Complexo de Israel na zona norte do Rio, unificando sob seu comando uma violenta região conhecida como “Faixa de Gaza”. É um exemplo do que se costuma chamar de “traficrente”.

Também mostra como o sistema de dominação utiliza os mais diversos elementos a seu favor, enquanto espalha a barbárie.

Leia também: PCC, pentecostais e reprogramação mental

15 de janeiro de 2024

Capitalismo control C, control V

No livro “Pós-Capitalismo: um guia para o nosso futuro”, Paul Mason defende a hipótese de que formas básicas de uma economia pós-capitalista já podem ser encontradas no interior do sistema vigente.

Essa situação seria causada principalmente pelas modernas tecnologias da informação, cujo funcionamento corrói os mecanismos de mercado, mina os direitos de propriedade e destrói a velha relação entre salários, trabalho e lucro, diz o autor.

O raciocínio é o seguinte. Uma vez que você pode copiar e colar algo, sua reprodução torna-se gratuita. O sistema reage a isso tornando legalmente impossível copiar certos tipos de informação. Mas o fato é que qualquer que seja o expediente utilizado para protegê-las, essas informações permanecem copiáveis e compartilháveis a um custo insignificante.

A teoria dos economistas do sistema é incapaz de compreender um mundo de bens a preço próximo do zero, espaço econômico compartilhado, organizações não mercantis e produtos não proprietários, afirma Mason.

Desse modo, as condições objetivas para uma economia comunista estariam cada vez mais maduras no interior do sistema. Até aí, trata-se de um constatação compatível com o marxismo, que sempre parte das condições concretas para criar possibilidades revolucionárias. Mas entender que essa economia já está em funcionamento e prospera sob as leis econômicas implacáveis do capitalismo é uma ideia incompatível com o que pensa a maioria dos teóricos do marxismo, incluindo o próprio Marx.

De qualquer maneira, o livro vale a leitura pelo que revela sobre as agudas contradições em que a economia capitalista vem se metendo.

Uma resenha mais detalhada foi publicada na edição 15 da Revista Mouro, que pode ser adquirida aqui.

Leia também: A sociedade do espetáculo é capitalismo atualizado

12 de janeiro de 2024

PCC, pentecostais e reprogramação mental

No início dos anos 1990, imperava imensa desordem nas periferias paulistanas. Para grande parte da população periférica masculina restava como ocupação “um mercado ilegal, cheio de armas e altamente competitivo”.

As chacinas se multiplicavam. Os jovens pobres e negros viviam acuados. O consumo de crack se espalhava e os conflitos se intensificaram ainda mais. Surgiram justiceiros populares que acabaram alimentando um ciclo interminável de vinganças.

Nessa situação, “seria possível produzir outras verdades, capazes de reprogramar as mentes e mudar os comportamentos homicidas? Haveria espaço para mudar comportamentos a partir de um discurso que convencesse os matadores a pararem de se matar?”. É o que pergunta Bruno Paes Manso em seu livro “Fé e Fuzil”.

A resposta veio com uma queda vertiginosa nos homicídios nas periferias paulistanas a partir dos anos 2000. Resultado da maior presença do PCC, que proibiu as vinganças e impôs regras brutais, mas claras e eficientes para as atividades criminosas.

Ao mesmo tempo, diz o autor, os pentecostais cresciam mais do que nunca, promovendo milhares de conversões no mundo do crime. Justiceiros tornaram-se devotos, passando a pregar o bom comportamento e o respeito a Deus e à família. Conhecendo de perto os problemas e aflições das “quebradas”, tornavam-se pastores respeitados.

“Tanto o PCC como as igrejas pentecostais são instituições criadas pelos pobres, para os pobres, que produziam discursos capazes de reprogramar as mentes. O novo Brasil pobre e urbano começava a inventar formas de se governar”, afirma Manso. Enquanto isso, a esquerda perdia terreno.

Reprogramação também pode ser chamada de disputa de hegemonia. Embate decisivo que, em breve, seria vencido pela extrema-direita.

Leia também: Fé e fuzil: crime e religião no Brasil do século XXI

11 de janeiro de 2024

Fé e fuzil: crime e religião no Brasil do século XXI

A população rural brasileira representava 69% do total em 1940. Em 1991, esse percentual havia caído para 26%. Os quase 75% que migraram para as cidades encontraram uma estrutura urbana incapaz de acolhê-los.

Diante da incapacidade do Estado e outras instituições para responder a essa situação, duas “soluções” surgiram “para organizar a vida caótica das cidades: a fé e o fuzil”. É o que afirma Bruno Paes Manso, utilizando a expressão que dá nome a seu livro.

Quanto à fé, diz o autor, verifica-se o fortalecimento da autoridade religiosa representada pelo crescimento dos pentecostais, a partir dos anos 1950. No lugar da Teologia da Libertação, que pregava a organização coletiva dos pobres, surge o neopentecostalismo, baseado na fé e empenho individuais, com foco na família, para combater o mal e prosperar em um mundo condenado ao apocalipse.

Com relação à ordem imposta pelo fuzil, verifica-se o aumento da violência policial e da criminalidade nos bairros pobres, a partir dos anos 1980, e a disseminação das facções nos presídios e o surgimento das milícias, a partir dos anos 1990.

No Rio, o Comando Vermelho, fundado nas prisões, encontra na venda de cocaína uma maneira lucrativa de financiar sua organização. Priorizando o controle territorial, facções deste tipo tornaram-se donas dos morros.

Em São Paulo, o controle territorial não fazia parte da estratégia dos traficantes. Havia uma rede horizontal de pequenos empreendedores do crime atuando “sem regulação”. O PCC surgiria dentro dos presídios para se tornar uma “agência reguladora do mercado atomizado do crime paulista”.

Os elementos trazidos pela obra de Paes Manso são fundamentais. Continuaremos a comentá-la.

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10 de janeiro de 2024

A cabeça ferve diante da insensatez dominante

Está disponível na Netflix “Cabeça Quente”. Produzida na Turquia, a minissérie retrata um mundo em que uma doença altamente contagiosa transforma-se em uma pandemia que leva a sociedade ao caos.

Diante disso, é criado um órgão de controle sanitário que estabelece zonas de quarentena, além de impor uma lei marcial para diminuir os contágios. Mas as preocupações com a saúde pública logo se tornam pretexto para instalar uma ditadura. Desse modo, neutralizar ou erradicar a doença deixa de interessar aos ocupantes do poder.

O personagem Murat Siyavus, interpretado por Osman Sonant, é a única pessoa imune ao distúrbio. Portanto, interessa ao regime ditatorial impedir que o estudo de seu organismo possibilite encontrar a cura para a doença. Enquanto isso, uma organização de resistência à ditadura quer convencer Siyavus a colaborar na fabricação de uma vacina.

Mas o mais interessante na trama é a forma como a doença se manifesta. As pessoas infectadas passam a repetir coisas sem sentido, ficando incapacitadas de se comunicar.  O contágio ocorre pela fala. Desse modo, o uso de tampões de ouvidos torna-se medida fundamental para evitar mais contágios.

Siyavus é um linguista e não deixa de ser irônico que um estudioso da comunicação humana seja exposto ao besteirol dominante, sem sofrer maiores consequências do que um forte aumento na temperatura de sua caixa craniana. É dele a cabeça quente que dá título à série.

Trata-se de uma distopia da indústria de entretenimento. Mas parece a vida real, em que uma praga de opiniões e informações delirantes nos faz ferver a cabeça há algum tempo. E não há tampão que dê jeito!

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9 de janeiro de 2024

Distopia capitalista: do gemido ao estrondo

Distopia vem do grego e pode ser traduzida como um lugar ruim, mas imaginário. Há décadas, tornou-se tema favorito de filmes, peças, séries, livros e quadrinhos. Geralmente, ambientados em um cenário pré ou pós-apocalíptico.

Elementos clássicos dessas tramas ficcionais são enorme repressão estatal, robôs e dispositivos eletrônicos descontrolados, vigilância e controle cibernéticos da vida social, multidões de miseráveis, hordas de criminosos, a sociedade dominada pela lei do mais forte, pandemias, hecatombes naturais, crises climáticas, extinções em massa, insanidade mental generalizada, minúsculas elites ricas, poderosas e fortemente protegidas.

A questão é que esse lugar ruim já deixou de ser imaginário há muito tempo. É só olhar em volta: caos violento nas cidades, desemprego e precarização, ilhas de prosperidade em oceanos de miséria, truculência policial contra pobres, facções e milícias criminosas presentes tanto no contexto urbano, como rural. Tudo isso promovido por uma elite cada vez menor e mais poderosa.

São famosos os versos de T.S. Eliot, que afirmam: “É assim que o mundo acaba.\ Sem estrondo, num gemido.” Ou seja, diferente do que vemos nos filmes ou lemos nos livros, não há uma grande e definitiva hecatombe. Só o ruído de fundo do capitalismo funcionando, enquanto destrói grande parte da humanidade.

Mas o poeta estadunidense era branco e viveu no século 20. Bem antes disso, a distopia já era o cotidiano de grande parte da população não europeia ou anglo-saxã. Para muitos dos povos não brancos, o apocalipse das crenças religiosas da colonização branca chegou para ficar. E é com eles que temos que aprender a resistir e lutar. Respondendo com estrondo, não com gemidos.

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8 de janeiro de 2024

O fracasso e o vexame do 8 de Janeiro

Nenhum membro da cúpula das Forças Armadas foi investigado ou responsabilizado pela tentativa de golpe de 8 de janeiro, ocorrida um ano atrás. Oito generais do Exército e um almirante da Marinha foram citados na CPI dos Atos Golpistas. Nada aconteceu.

O discurso dominante no Governo, Judiciário, Legislativo, parte da imprensa é que as Forças Armadas, enquanto instituição, não podem ser responsabilizadas. Uma afirmação óbvia. Instituições não podem ser responsabilizadas. Seus integrantes, sim. Seus manda-chuvas, também. Seus comandantes, com certeza. Mesmo que sejam fardados.

Dois dos maiores responsáveis pela omissão na repressão aos golpistas servem de exemplo. O tenente-coronel Fernandes da Hora era comandante da Guarda Presidencial. Foi nomeado Instrutor do Curso de Altos Estudos Estratégicos, na Espanha. O General Gustavo Henrique Dutra era comandante militar do Planalto. Foi nomeado vice-chefe do Estado-Maior. Se o golpe tivesse prosperado, não estariam mais satisfeitos.

Um ano de impunidade, gritam vozes de vários lados. É muito mais que isso. São quase 40 anos desde que a ditadura abandonou a cena. Junto com Figueiredo, saíram impunes pela porta dos fundos do Palácio da Alvorada centenas de responsáveis por assassinato, tortura e corrupção. Alguns nem sair, saíram. Foram ficando.

O 8 de Janeiro só foi possível porque houve o 15 de Março de 1985, quando José Sarney, homem de confiança dos militares, assumiu o primeiro governo civil em 20 anos. Instalava-se a impunidade que atravessou vários governos e volta a ser renovada.

A tentativa de golpe foi um fracasso. A responsabilização e punição de seus mentores, uma vergonha que pode tornar ainda mais vexaminosa a democracia nacional.

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