Doses maiores

31 de maio de 2022

A desglobalização capitalista e seus riscos

Dois artigos sobre um possível processo de desglobalização em andamento. Primeiro, o de Paolo Gerbaudo, professor do King’s College London.

Segundo ele, muitos esperavam que a recuperação iniciada no final dos anos 2010 marcaria um retorno às glórias da globalização. Mas o início dos anos 2020 marcou dois novos choques que, embora considerados exógenos, revelaram problemas essencialmente endógenos, ou seja, próprios da globalização e seus desequilíbrios.

Com a crise do coronavírus, prossegue, muitos países se viram forçados a fechar suas fronteiras. Além disso, houve interrupções e desacelerações nas cadeias de fornecimento, o que fez empresas e governos reavaliarem os riscos associados à sua integração global.

O segundo acontecimento traumático foi a invasão russa à Ucrânia, que contribuiu para romper as últimas ilusões sobre a estabilidade da globalização. As medidas adotadas pelos países da OTAN e as tensões entre o Ocidente e a China seriam “sinais do fim da globalização da forma como a conhecíamos”.

O outro artigo é de Eleutério F. S. Prado, professor do Departamento de Economia da USP.

Os períodos de globalização ocorrem sob hegemonia pouco contestada de uma potência imperialista, diz ele. O primeiro deles acontece sob a supremacia inglesa e os dois seguintes sob a preeminência norte-americana. A desglobalização ocorrida no século XX adveio do acirramento do conflito entre as potências imperialistas (...) e, por isso mesmo, se inicia e termina com a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, respectivamente. Assume-se aqui que o ano de 2008 marca o início de um processo de desglobalização que se estenderá pelos próximos anos.

Ou seja, sinais muito preocupantes no horizonte. Ainda que nada surpreendentes.

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30 de maio de 2022

O Antropoceno e o Atlas Selvagem

Anna Tsing coordena o projeto digital colaborativo "Atlas Selvagem: O Antropoceno-Mais-do-que-Humano", desenvolvido por especialistas de vários países, em parceria com a Stanford University Press.

Em recente entrevista, ela explica que o atlas:

...apresenta 79 relatórios de campo sobre "os efeitos selvagens da construção de infraestrutura, ou seja, sobre projetos que mudaram as paisagens terrestres, aquáticas e aéreas" ao longo dos últimos séculos.

Para ela, “ecologias selvagens” são “respostas não-humanas a projetos humanos que estão fora do controle humano”. Seriam efeitos de ações ambientalmente irresponsáveis que podem “pôr em perigo a vida como nós a conhecemos”.

A título de exemplo, a entrevistada cita o mosquito Aedes aegypti, transmissor de dengue e febre amarela. Esse inseto vivia em buracos nas árvores africanas, onde raramente interagia com humanos. Nos navios de escravos, a desumana aglomeração humana permitiu mutações rápidas e o inseto se transformou em algo novo: um mosquito que somente convive com humanos e assim transmite eficientemente a febre amarela e outros vírus de uma pessoa para a outra. A partir daí, se disseminou nas Américas, transmitindo doenças de volta para a África e para a Ásia.

Mas esse é apenas um dos muitos casos que aparecem no Atlas para mostrar como a intervenção humana foi se tornando mais e mais desastrosa. É o Antropoceno se confirmando como era geológica que transformou radicalmente o planeta. Consequência do surgimento do capitalismo, acelerada pela industrialização, o Antropoceno provoca efeitos inesperados e assustadores. A pandemia que matou muitos milhões, e ainda nos ameaça, não poderia ser evidência mais clara disso.

Para acessar o Atlas clique: https://feralatlas.org/

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18 de maio de 2022

A resistência indígena desafia também a velha esquerda

Voltamos a falar do jornalista e escritor uruguaio Raúl Zibechi. Desta vez, trata-se de recente entrevista em que ele anuncia seu último livro: “Mundos otros y pueblos en movimiento. Debates sobre anti-colonialismo y transición en América Latina”.

No depoimento, Zibechi faz várias afirmações interessantes. Alerta, por exemplo, para a existência de dezenas de povos que estão percorrendo “caminhos de autonomia e autogestão”. Segundo ele, no norte do Peru, foram formados dois Governos Territoriais Autônomos, da nação wampis e da nação awajún. “São mais de 100 mil habitantes que optaram pelo autogoverno para frear a pilhagem da floresta”.

No Brasil, continua Zibechi, são doze povos amazônicos demarcando seus territórios frente à ofensiva dos extrativismos e à conivência do Estado. “Sendo 1% da população, os indígenas são a ponta de lança na resistência a Bolsonaro”, diz.

Zibechi acredita que tais movimentos de resistência passam quase despercebidos pelos que “vieram do marxismo”. Afinal, diz, “seguimos apegados à ideia de revolução centrada na conquista do poder estatal, na construção de partidos e organizações hierárquicas, no planejamento dos passos a serem dados (estratégia e tática) por um grupo de homens brancos ilustrados, na separação da ética da política para priorizar os fins acima dos meios, a ação pública acima do crescimento interior...”

Desse modo, afirma, acabamos por nos colocar “em uma posição de superioridade moral que é terrível, porque nos transforma em um ser apegado a supostas verdades eternas. Esse sentimento é tão forte, traz tanta segurança, que não é mais necessário compreender o mundo, e essa atitude acaba nos afastando das pessoas comuns”.

O tom é provocativo, mas justo.

Leia também: A resposta zapatista frente ao genocídio capitalista

17 de maio de 2022

A China e seu pretenso capitalismo sob controle

“Por que a economia da China continua a crescer?”, pergunta Lu Feng, professor da Escola de Governo da Universidade de Pequim, em recente artigo.

De acordo com ele, “o sistema industrial chinês está mais sólido do que nunca, e não há fim à vista para o progresso tecnológico e para as mudanças estruturais do sistema industrial. Assim, a era dourada do crescimento econômico da China ainda está por vir”.

No artigo, Feng explica o advento dessa “era dourada” pelos seguintes fatores:

(1) o Estado domina a direção do desenvolvimento econômico; (2) a terra e os recursos naturais permanecem sob propriedade pública; (3) o sistema monetário e financeiro é controlado através da propriedade estatal dos principais bancos; (4) as maiores empresas industriais são estatais; (5) o governo mantém a capacidade de intervir diretamente na economia real através de investimentos em infraestruturas e grandes projetos tecnológicos e (6) o poder estatal atribui e fixa preços em áreas que afetam a segurança nacional.

Segundo o autor, esses fatores têm “assegurado que a economia da China se desenvolva de forma independente, não dominada por capitalistas e amplamente apoiada por toda a sociedade”.

A se crer na explicação, a China parece ter conseguido montar uma economia capitalista não dominada por capitalistas.

Enquanto isso, em abril, as atividades varejista e industrial chinesas caíram bruscamente por causa das medidas para evitar novos surtos de covid-19.

O que parece escapar ao especialista chinês é que nem mesmo os capitalistas ocidentais conseguem dominar o sistema que tanto os beneficia. Pandemias e crises climáticas são só os mais recentes dos efeitos nada colaterais do capitalismo.

16 de maio de 2022

A ferida do racismo permanece aberta e sangrando

Em 27/03/2022, a TV Bahia exibiu entrevista com Madalena Silva. Negra, 62 anos de idade, ela foi resgatada por autoridades após 54 anos vivendo em condições de escravidão. Trabalhava para uma família sem salário ou folga.

Durante o depoimento, a repórter Adriana Oliveira estendeu-lhe a mão e ela recuou assustada. Questionada pela jornalista, Madalena disse: “Fico com receio de pegar na sua mão branca”. “Mas por quê? Tem medo de quê?” perguntou Adriana. “Porque ver a sua mão branca... eu pego e boto a minha em cima da sua, acho feio isso”.

Uma palestra proferida em 1882 pelo historiador francês Ernest Renan ficou famosa e virou livro com o título “O que é uma nação”. Para ele, “a essência de uma nação é que todos os indivíduos passaram a ter muitas coisas em comum e também esqueceram muitas coisas”.  Referindo-se a momentos traumáticos da história francesa, Renan afirma: “Nenhum cidadão francês sabe se ele é um borgonhês, um Alan, um Taifale ou um visigodo, mas todo cidadão francês precisou esquecer o massacre de São Bartolomeu ou o massacre ocorrido no sul no século 13”.

Com isso, ele queria dizer que uma nação nasce quando seu povo cura e faz cicatrizar suas feridas.

Se há alguma verdade nesse raciocínio, o episódio vergonhoso de Madalena Silva mostra que estamos longe de ser uma nação. O racismo entranhado em nosso sistema social e abrigado pela estrutura dominante desde o período colonial não permite esquecimentos. Ao contrário, salta à nossa frente, cada vez mais escandaloso e cruel todos os dias.

As feridas seguem abertas e sangrando.

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13 de maio de 2022

A guerra, a fome, o clima e o verdadeiro inimigo

Além da guerra da Ucrânia, há muitas outras que estão longe de merecer a mesma atenção. É o caso dos conflitos na Síria, Mianmar e Iêmen.

Mas há outros elementos sendo ignorados no panorama geral. Basta observar, por exemplo, os números de três relatórios importantes, divulgados em abril passado.

O primeiro é do Grupo de Trabalho III do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). O segundo é do Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (SIPRI).

O documento do SIPRI revela que os gastos militares mundiais ultrapassaram 2 trilhões de dólares em 2021, cifra jamais atingida anteriormente. Já o informe do IPCC, revela que no mesmo ano o mundo investiu apenas US$ 750 bilhões de dólares em energia limpa e eficiência energética. A desproporção entre um e outro número dá uma boa ideia das prioridades que norteiam os donos do dinheiro e do poder no planeta.

Faltou citar ainda o relatório da Rede Global Contra Crises Alimentares, publicado pelas Nações Unidas e União Europeia, segundo o qual a fome cresceu 22% no mundo em 2021 em relação ao ano anterior. São 193 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar aguda. Mas esses números são anteriores à crise da Ucrânia, país que está com 25 milhões de toneladas bloqueados em seus portos devido ao conflito.

Ou seja, das guerras na Ucrânia e em muitas outras partes do mundo às crises ambiental e alimentar, além da prioridade dos recursos destinados à indústria bélica, o que estamos vendo é o sistema capital-imperialista em pleno funcionamento. E este é o grande inimigo.

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A resposta zapatista frente ao genocídio capitalista

12 de maio de 2022

A resposta zapatista frente ao genocídio capitalista

Em 06/05/2022, o jornalista e analista político uruguaio Raúl Zibechi publicou um artigo no portal “La Jornada”. Ele começa dizendo:

Muitos dados apontam que as grandes empresas do complexo militar-industrial vêm obtendo lucros exorbitantes desde o início da invasão russa à Ucrânia. Mas outros dados afirmam o contrário. Dizem que a crise capitalista está se aprofundando: a ameaça de recessão nos Estados Unidos, o aumento dos preços em todo o mundo e as dificuldades da China em manter as cadeias globais de abastecimento, para citar alguns exemplos.

Em seguida, o autor afirma concordar com William I. Robinson, sociólogo da Universidade da Califórnia em Santa Bárbara, segundo o qual, fica cada vez mais claro que as guerras ajudam o capitalismo a superar suas crises e desviam a atenção da deterioração da legitimidade do sistema.

No entanto, diz Zibechi:

...é provável que estejamos frente à radicalização das elites globais, que parecem dispostas a provocar um genocídio em massa contra uma parte da população do planeta, caso considerem que seus interesses estão em perigo.

Diante disso, o autor afirma que “devemos perder o medo da queda do sistema atual, que pode ser anárquica, mas não necessariamente desastrosa”. Mas encerra lamentando que falte à esquerda estratégias para enfrentar tal tarefa, “com a notável exceção do zapatismo”.

Os zapatistas protagonizaram a primeira grande reação popular à ofensiva neoliberal, desferida pouco depois do fim da União Soviética. Em 1994, os indígenas de Chiapas e Oaxaca pegaram em armas para defender seu território, valores e modos de vida. Já são quase 30 anos de resistência.

Há três décadas, eles estão mostrando o caminho.

Leia também: Guerra “inter-branca” e o estrangulamento das metrópoles

11 de maio de 2022

Guerra “inter-branca” e o estrangulamento das metrópoles

“Quem é o responsável por esta guerra? Quem a quis, provocou, arquitetou e desencadeou?” Estas são as perguntas a serem respondidas diz Franco ‘Bifo’ Berardi, filósofo e ativista italiano em recente artigo sobre a guerra na Ucrânia.

Ele responsabiliza o “nazi-stalinismo” russo liderado por Putin. Mas, adverte que alguém mais a quis com vigor e a está alimentando ativamente. Afinal, diz Bifo, se em fevereiro a União Europeia tivesse convocado uma conferência internacional para discutir as demandas do governo russo, a máquina de guerra poderia ter sido detida. Em vez disso, preferiram alimentar o fogo.

Em certo momento, ele se pergunta o que faria se estivesse na Ucrânia:

Se eu vivesse em Kiev e alguém me explicasse que tenho que defender o Mundo Livre, a Democracia, os Valores do Ocidente, palavras com letras maiúsculas, eu desertaria. Mas talvez optasse por me unir à resistência para defender minha casa, meus irmãos... Palavras com letras minúsculas.

Mas quanto ao panorama geral, Berardi entende que, pela primeira vez, delineia-se um cenário geopolítico que percorre a linha de fratura colonial. “Os impérios brancos do passado colidem ou se unem, enquanto o mundo não-branco emerge no horizonte”.

A guerra “inter-branca” da Ucrânia, conclui o autor, “é o catalisador de um processo de fratura entre o sul e o norte do mundo, do qual estamos vendo apenas os primeiros movimentos”. E lembra o que teria teorizado MaoTsé-Tung nos anos 1960, ao prever “que os subúrbios logo estrangulariam as metrópoles”.

Resta saber se teremos tempo e capacidade de sufocar nossos inimigos antes que nos falte o ar.

Leia também: Ucrânia: observações de um especialista chinês

10 de maio de 2022

Ucrânia: observações de um especialista chinês

Wang Xiangsui é cientista da Universidade de Aeronáutica e Astronáutica de Pequim. Publicou artigo em março passado, que traz alguns elementos importantes sobre a crise na Ucrânia.

Segundo ele, a economia mundial divide-se em três grandes esferas: a esfera do Euro, que representa mais de 70% do comércio interno europeu; a norte-americana, dominada pelos Estados Unidos; e a esfera oriental, composta principalmente pela China e países do sudeste asiático.

A Zona do Euro não tem força militar autônoma e sua segurança é garantida pela Otan, controlada pelos EUA. Enquanto isso, a Rússia é o único país europeu com grande poder militar. Sua integração à zona do euro tornaria a Europa um polo mundial difícil de abalar.

A economia russa depende da Europa e seu comércio exterior está limitado pelo dólar e pelo euro. Desse ponto de vista, está em uma posição fraca diante de estadunidenses e europeus.

Houve erros de todos os lados, continua Xiangsui. O governo da Ucrânia é favorável ao Ocidente, mas este é incapaz de dar o apoio de que os ucranianos necessitam. A eclosão da guerra arrastou a região europeia de volta às tradicionais disputas de soberania territorial.  

Por fim, a crise ucraniana deu um novo impulso à cooperação sino-russa. A China é um grande país produtor. A Rússia é o país mais rico em recursos naturais, mas precisa de um mercado grande e estável como o da China.

Os EUA cometeram um erro estratégico ao confrontar a Rússia, a China e a Europa. Já não é uma superpotência, mas apenas um dos muitos centros de poder do mundo, conclui Xiangsui.

Leia também: A Ucrânia no meio de uma guerra interimperialista

9 de maio de 2022

A Ucrânia no meio de uma guerra interimperialista

Lênin dizia que o imperialismo não é um resquício arcaico da época colonial nem apenas grandes potências intimidando países mais fracos. Trata-se de um sistema global de dominação e rivalidade capitalista, no qual um punhado de poderosos estados capitalistas compete econômica e geopoliticamente em escala global.

As palavras acima são de recente artigo de Alex Callinicos, um dos mais importantes marxistas britânicos dos últimos 40 anos. O texto refere-se à guerra entre Rússia e Ucrânia e procura restabelecer certos critérios que a esquerda, em especial a que se diz marxista, não deveria esquecer ou ignorar.

O conflito em terras ucranianas não tem nada a ver com a defesa de valores democráticos pelo “Ocidente”, lógico. Mas também não tem qualquer coisa que lembre a formação de um polo anti-imperialista a partir de Rússia e China. Os protagonistas nesse cenário continuam a se ser perfeitamente retratados na imagem leninista em que um “punhado de poderosos estados capitalistas competem econômica e geopoliticamente em escala global”.

E ainda que não se trate de considerar todos os envolvidos como farinha do mesmo saco, é preciso reafirmar sempre que uma guerra interimperialista não diz respeito aos interesses dos explorados. Afinal, seus maiores contendores estão muito mais integrados à economia mundial do que estiveram as potências imperialistas do passado.

Dito isso, é importante considerar as sérias implicações que o conflito certamente trará para a luta anticapitalista. E neste aspecto, parece que ainda estamos tateando no escuro. E a falta de luz sempre torna o ambiente perfeito para o avanço da direita. Inclusive, e principalmente, de sua versão fascista.

Voltaremos ao tema.

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