Doses maiores

29 de janeiro de 2021

O socialismo inspirado pelas plantas

Em seu livro “Revolução das plantas”, Stefano Mancuso defende que a vida vegetal sirva de inspiração para melhorar nossas relações sociais e ambientais.

Ele começa propondo uma comparação entre animais e plantas:

Os animais se movem, as plantas ficam paradas; os animais se alimentam de outros seres vivos, as plantas alimentam outros seres vivos; animais produzem CO2, as plantas fixam CO2; os animais consomem, as plantas produzem...

Mas entre as muitas oposições possíveis, a decisiva seria, segundo ele, aquela entre concentração e distribuição.

A começar pelo cérebro. Diferente dos animais, as funções cerebrais dos vegetais ficam espalhadas por suas raízes. É o sistema radicular, que funciona como um cérebro coletivo. Desse modo, se danos no sistema cerebral de um animal podem ser fatais, nas plantas, os estragos costumam ser muito menores.

Os vegetais também contam com uma arquitetura colaborativa, distribuída, sem centros de comando, sendo capaz de resistir perfeitamente a repetidos eventos catastróficos sem perder a funcionalidade e de se adaptar com rapidez a enormes mudanças ambientais.

Essa forma de organização confere à vida vegetal grande eficiência para coletar dados exatos, utilizando uma multiplicidade de parâmetros químicos e físicos, como luz, gravidade, elementos minerais, umidade, temperatura, estímulos mecânicos, estrutura do solo e composição dos gases atmosféricos.

Realmente, trata-se de um modelo que pode inspirar novas e melhores formas de organização humana. E algumas delas até já funcionam de modo parecido. É o caso do sistema radicular da internete ou das cooperativas de trabalho e distribuição.

É o primado da desconcentração de poder e da inteligência coletiva. Obrigatório em qualquer projeto para uma sociedade socialista.

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28 de janeiro de 2021

A democracia das abelhas dançarinas

Sempre que se pensa em processos de decisão entre os outros animais, a tendência é imaginar sistemas fortemente hierárquicos. O macho-alfa decide e o restante acata. Mas em seu livro “Revolução das plantas”, Stefano Mancuso afirma que não é nada disso.

Segundo ele, “na natureza, são raras as hierarquias, entendidas como indivíduos ou grupos, que decidem pela comunidade. Nós as vemos em toda parte porque olhamos para a natureza com os olhos de seres humanos”.

Para sustentar sua afirmação, ele cita um estudo publicado em 2003, por Larissa Conradt e T. J. Roper sobre processos deliberativos em diversos coletivos de animais. Um deles se refere a abelhas à procura de um local para construir uma nova colmeia.

Após voltar de suas expedições exploratórias, elas executam danças para descrever o que descobriram. Formam-se, então, grupos dançantes. O grupo cuja descrição atrair mais adeptas indica o local escolhido. E o resultado costuma não decepcionar.

Mas experiências envolvendo seres humanos também são reveladoras. O Instituto Leibniz, em Berlim, por exemplo, publicou uma pesquisa com grupos médicos especialistas sobre a capacidade de diagnosticar, com certeza, câncer mamário com base em radiografias.

O estudo mostrou que “as equipes médicas, usando ferramentas típicas de inteligência coletiva, como a votação majoritária com quórum, obtêm resultados de diagnóstico melhores do que os dos médicos mais prestigiados do grupo”.

Só fica difícil acreditar nessa teoria diante dos vários resultados eleitorais nada inteligentes. Mas aí entram em cena elementos muito humanos, como dominação econômica, manipulações midiáticas e condições extremamente desiguais de competição.

Ou seja, até nessas questões são os animais que têm muito a nos ensinar.

Leia também: A extinção da espécie mais perigosa

27 de janeiro de 2021

Tentando desarmar Engels, o “general”

Na pílula anterior, abordamos a polêmica envolvendo a introdução escrita por Engels para a edição de 1895 do livro “As Lutas de Classes na França”, de Marx.

O centro da controvérsia era um trecho em que Engels considerava ultrapassadas as táticas de resistência militar do proletariado. Essas afirmações foram tiradas de contexto e utilizadas por membros do partido socialista alemão para justificar a substituição das lutas nas ruas pela ocupação do parlamento.  

O mais grave é que em muitas edições do texto foi omitida a seguinte passagem:

Quer isto dizer que no futuro a luta de ruas deixará de ter importância? De modo nenhum. Significa apenas que desde 1848 as condições se tornaram muito mais desfavoráveis para os combatentes civis, muito mais favoráveis para a repressão. Por conseguinte, uma futura luta de ruas só poderá triunfar se esta situação desvantajosa for compensada por outros momentos. Por isso, no início de uma grande revolução ela ocorrerá mais raramente do que em seu decurso e terá de ser empreendida com efetivos bem maiores. Mas, nesse caso, estes decerto preferirão o ataque aberto à tática passiva das barricadas...

“Ataque aberto” dificilmente pode ser confundido com atuação parlamentar. Parte dessa confusão só começou a ser desfeita em 1930, quando a versão original do artigo foi publicada pelo Instituto Marx-Engels, na União Soviética.

Ainda assim, forças políticas à direita e à esquerda ainda insistem em divulgar um Engels que teria desistido da revolução. Uma injustiça para alguém cuja predileção pela ação direta lhe rendeu o apelido de “general”.

Para mais detalhes, leia: O “testamento” falsificado de Engels: uma lenda dos oportunistas.

Leia também: A vergonhosa moderação póstuma imposta a Engels

26 de janeiro de 2021

A vergonhosa moderação póstuma imposta a Engels

Uma das maiores polêmicas envolvendo os escritos de Engels diz respeito ao que ficou conhecido como seu “testamento”. Na verdade, trata-se da introdução que ele escreveu, em 1895, ano de sua morte, para o livro “As Lutas de Classes na França”, de Marx.

Em um trecho sobre o aspecto militar das insurreições populares, Engels afirma:

Em 1848 havia a espingarda de percussão; hoje existe a espingarda de repetição de reduzido calibre que alcança quatro vezes mais longe, é dez vezes mais precisa e dez vezes mais rápida do que aquela. Antes havia os projéteis esféricos maciços e as balas de artilharia de efeito relativamente fraco; hoje espoletas de percussão das quais uma basta para fazer voar em pedaços a melhor das barricadas. Antes havia a picareta dos sapadores para deitar abaixo as paredes; hoje os cartuchos de dinamite.

“Do lado dos insurretos pioraram todas as condições”, dizia Engels. Pronto. Foi o suficiente para que essas afirmações fossem utilizadas para justificar a necessidade de substituir os métodos de luta mais radicais por batalhas parlamentares.

Tudo começou quando Richard Fischer, líder do partido alemão e responsável pelas publicações do partido, pediu a Engels para atenuar o tom do texto. A preocupação de Fischer era com as recentes leis de repressão impostas por Bismarck. Engels concordou.

Mas a versão finalmente publicada sofreu outros cortes feitos à revelia do autor. Mutilada desse modo, a introdução tornou-se uma defesa da “legalidade a qualquer preço”, como escreveu Engels, muito descontente, em carta ao editor.

Na próxima pílula, veremos como terminou essa novela. Se é que terminou.

Leia também: Engels: de mulherengo a feminista

25 de janeiro de 2021

Engels: de mulherengo a feminista

O bicentenário de nascimento de Engels ficou para trás. Mas a estatura do grande parceiro de Marx continua a merecer celebração.

Voltamos ao livro “Comunista de Casaca”, de Tristram Hunt, para mostrar a contribuição do biografado para a luta feminista. Nas palavras do autor, de “maneira um tanto inesperada, o mulherengo Engels acabou sendo o responsável pelo texto de fundação do feminismo socialista”.

Trata-se do livro “A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado”, publicado em 1884. Nele, Engels afirma, por exemplo que:

De acordo com a concepção materialista, o fator determinante na história é, em última instância, a produção e reprodução da vida imediata.

Ou seja, diz o biógrafo, Engels colocou a produção feminina da vida humana no mesmo plano teórico que o da produção dos meios de existência. Seu próximo movimento foi “historicizar a forma familiar, mostrando sua natureza fluida ao longo das épocas anteriores e apontar para sua futura encarnação sob o governo comunista”. Assim como o proletariado precisava entender que o capitalismo era um estado transitório, afirma Hunt, as mulheres podiam alimentar a esperança de que as atuais desigualdades de gênero seriam um interlúdio passageiro.

“O primeiro antagonismo de classes que apareceu na história coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre homem e mulher na monogamia; e a primeira opressão de classes, com a opressão do sexo feminino pelo masculino", declarou Engels.

Os escritos de Engels sobre a família, conclui Hunt, foram uma contribuição significativa para toda uma geração de feministas marxistas, com sua influência adentrando o século vinte.

Parece que, aos 64 anos, Engels, o mulherengo, tomou algum juízo.

Leia também: Engels, um grande festeiro