Doses maiores

22 de dezembro de 2016

Sobre uma estrela decadente

Em 2015, foi detectada uma supernova com um brilho 20 vezes maior do que toda a luz emitida pela Via Láctea. Seria o resultado da explosão de uma estrela extremamente massiva no fim de sua vida.

Segundo evidências mais recentes, porém, a enorme explosão teria sido causada por um buraco negro supermassivo. Localizado no centro de uma galáxia, o fenômeno astrofísico teria rasgado uma estrela semelhante ao Sol, que passou muito próximo a ele.

No processo, a estrela teria sido esmagada e as colisões entre os seus restos, bem como o calor gerado, levaram à explosão que teria dado ao evento a aparência de uma supernova muito brilhante.

Agora, considere tudo isso como uma metáfora da vida política brasileira na última década.

A supernova petista surgiu em 2002, com a eleição de Lula para presidente da república. A fonte do enorme brilho parecia sair do próprio astro. Mas já era a perigosa proximidade causada por alianças com o “buraco negro” do conservadorismo nacional.

A  luz abundante ofuscava tanto que não deixava ver que sua origem era o desabamento da estrela em direção à escuridão. A maioria de nós só se apercebeu das trevas ao esbarrar em personagens e coisas que julgávamos enterradas no passado.

No futuro, uma coisa é certa. O brilho daquela estrela somente será visto a distâncias muito mesquinhas.

Na vida real, nem a luz escapa de um buraco negro. Mas em nossa metáfora, é sempre possível ver algumas centelhas em meio a tanto breu. Frágeis que sejam, são elas que nos fazem esperar um 2017 iluminado por muitas lutas.

Até lá!

21 de dezembro de 2016

Réveillon triste em Copacabana

Copacabana, meia-noite. Estouram os fogos. A multidão olha para o espetáculo. Muitos caminham até perto do mar, mas ninguém se molha ou dá os tradicionais sete pulinhos. As oferendas a Iemanjá também não deixam a areia. Ficam encostadas no Muro. É nele que está sendo projetada uma sequência de cenas em alta definição, gravadas em réveillons antigos. Do tempo em que não havia o Muro.

O Muro já existe há dez anos, quando as águas do oceano começaram a invadir a Av. Atlântica. Já antes do século 21, não faltaram alertas sobre os efeitos da elevação do nível do mar na orla carioca, mais uma das consequências do aquecimento global. As autoridades locais continuaram ignorando o perigo. Preferiram, por exemplo, gastar enormes recursos para atrair turistas que começariam a sumir diante de uma cidade cada vez mais ameaçada por águas sujas.

A construção isolou do mar os moradores e os poucos visitantes de Copacabana. Uma das praias mais famosas do mundo reduzida a um aterro de areia que termina em um paredão. Do oceano, só o marulho das águas batendo no outro lado da grande barreira.

Acima da multidão, em suas janelas, moradores dos prédios da Av. Atlântica contemplam alguns navios de cruzeiro navegando além da barreira de concreto. São os privilegiados da terra firme trocando olhares com os privilegiados embarcados nos enormes iates. Parecem um pouco menos tristes que a multidão que os ignora, vários andares abaixo. Buscam, todos, algum consolo nas imagens projetadas no Muro.

É meia-noite. Todos gritam “Feliz 2060!”. O som das palavras bate no paredão e volta num eco desanimado.

Baseado no artigo “Rio debaixo d’água e o fim da praia de Copacabana”, de José Eustáquio Diniz Alves.

Leia também: Vende-se um planeta usado...

20 de dezembro de 2016

A Retrospectiva 2016 tem 30 anos

Ninguém pode negar que o ano de 2016 foi muito produtivo em Brasília. Não, não se trata dos meses gastos para depor Dilma com um golpe parlamentar. Nem do enorme tempo perdido para afastar da presidência da Câmara de Deputados um parlamentar coberto de acusações de corrupção. Também não caberia falar do afastamento do presidente do Senado. Afinal, este foi revertido rapidamente quando o Supremo resolveu ignorar a ficha suja do afastado.

O que realmente valeu foram três dias de intenso trabalho coordenado entre governo federal e Congresso Nacional. Tudo devidamente sacramentado pelo STF. Neste pequeno período, as duas valorosas casas do parlamento nacional votaram quase cinco vezes mais do que em todo ano de 2016.

Foram 62 votações envolvendo projetos de lei, vetos presidenciais, requerimentos e propostas de emenda constitucional. Uma média de pouco mais de 20 projetos por dia de trabalho. Em média, no restante do ano, os parlamentares votaram pouco mais de quatro propostas por sessão.

Por isso, caros parlamentares, “hoje, a festa é sua”! Que ninguém a estrague lembrando que grande parte de seus pares são acusados de ter tentado “desfigurar” um “pacote anticorrupção” para fugir de investigações e processos judiciais. Afinal, toda essa gente acusada de ser corrupta e voltada para interesses particulares finalmente pensou na nação.

Desde que a constituição atual foi aprovada, em 1988, suas conquistas sociais vêm sendo atacadas sistematicamente. Mas, agora, estes ataques parecem ter chegado a seu auge graças ao intenso trabalho a que se dedicaram as autoridades de Brasília neste finalzinho de 2016. Foram três dias que podem valer um retrocesso de 30 anos.

17 de dezembro de 2016

Proposta de roteiro: apocalipse amazônico

Dado Galdieri
Versão 1: o desmatamento na Amazônia leva à descoberta de um estranho grupo de rochas que funciona como observatório astronômico. Trabalho de mãos humanas, realizado uns mil anos atrás. Fica evidente que a Amazônia foi habitada por povos muito mais complexos do que se julgava até então.

Arqueólogos, antropólogos e outros cientistas começam a chegar ao local. Vêm juntar-se aos trabalhadores pagos para derrubar a floresta pelas grandes corporações nacionais e internacionais que são proprietárias dos latifúndios da região.

Também chegam funcionários de grandes meios de comunicação e entretenimento para realizar documentários sobre a estranha descoberta e verificar o potencial do lugar como locação para filmar cenas de aventura e ficção científica.

Logo, surgem conflitos de interesses entre cientistas, latifundiários, governos, produtoras de cinema e TV. Quando os atritos ameaçam descambar para a violência, surgem do nada verdadeiros exércitos de índios que iniciam um massacre entre os recém-chegados. São os povos do passado, que utilizam as rochas como um portal do tempo. Vieram vingar toda a destruição provocada por aquela gente descendente de europeus. São as primeiras tropas de muitas outras que surgirão em outros sítios arqueológicos pelo mundo.

É na Amazônia que se inicia uma espécie de apocalipse vingador promovido pelos povos antigos contra os estragos causados pela lógica produtivista ocidental, inclusive em suas versões chinesa e russa.

Versão 2: a mesma trama acima, sem povos vindos do passado ou portais do tempo. Apenas um documentário que registra o início do apocalipse ocidental, sem necessidade de atores ou efeitos especiais. Basta acompanhar a ação dos poderes que atuam naquela região e no planeta em geral.


Leia também: Os índios e o anjo desesperado

16 de dezembro de 2016

Para dar boas-vindas a alienígenas e estrangeiros

Para eles, a fala é um gargalo porque exige que uma palavra siga a outra em sequência. Com a escrita, por outro lado, cada marca em uma página pode ser visível simultaneamente. Por que restringir a escrita com uma camisa de força que exige que ela seja tão sequencial quanto a fala? Isso nunca lhes ocorreria.

O trecho acima se refere a personagens alienígenas do conto “The story of your life”, de Ted Chiang, ainda sem tradução do inglês. Com base nele, Denis Villeneuve fez o filme “A Chegada”, raro exemplo de ficção científica que faz pensar.

A lógica por trás da linguagem desses extraterrestres é determinada por sua experiência em relação ao tempo. Para eles, a escrita se expressa e é aprendida simultaneamente porque passado, presente e futuro também se manifestam de uma só vez.

Difícil entender? Com certeza. Mas não faltam efeitos especiais, boas atuações e um roteiro cativante, ainda que acabe amarrando algumas pontas à moda de Hollywood.

Mas outro aspecto muito interessante da produção é que o centro da ação e do suspense são os mistérios da linguagem.

Em tempos de fortes ataques às ciências humanas, o papel de uma linguista se revela mais importante que o de físicos, matemáticos, programadores. Até a enorme prioridade contemporânea dispensada às soluções militares é obrigada a dar lugar às sutilezas da comunicação simbólica.  

É como se Chiang e Villeneuve nos lembrassem do quão imprecisas são as ciências exatas e de como é grosseira a pontaria bélica. E se isso vale até para a chegada de alienígenas, deveria ser obrigatório na recepção a estrangeiros.

14 de dezembro de 2016

Sorria, você está sendo explorada

Em 1983, Arlie Hochschild publicou “The Managed Heart: commercialization of human feelings” (“O coração gerenciado: a comercialização dos sentimentos humanos”).

O livro estuda a situação das comissárias de voo, mostrando como elas são obrigadas a administrar os próprios sentimentos no sentido de exibir apenas aqueles que interessam à companhia aérea.

O maior símbolo desse processo é o sorriso. Sua constante exibição passa a ser um “patrimônio” atribuído à trabalhadora, mas apropriado por seus patrões.

Há também o desempenho de um papel cujos polos são a atitude maternal e a erotização. Aquela que deve atender aos desejos dos passageiros como provedora solícita ou possível esposa ou amante.

Segundo esta lógica, relações impessoais devem ser vistas como sendo pessoais. Relações baseadas em troca monetária devem ser vistas como relações sem qualquer envolvimento monetário.

Não é difícil imaginar o estrago que um controle desse tipo pode causar às profissionais envolvidas. De um lado, a entrega ao desempenho do papel exigido, que pode terminar em esgotamentos nervosos. De outro, a sensação de manter uma atitude de constante fingimento e falsidade que deteriora a autoestima.

De uma ponta à outra, as trabalhadoras sofrem com a experiência de ver seus sentimentos expropriados por seus empregadores. Passam a ver sua sensibilidade subordinada às regras da produção em série.

Como essa lógica se impõe em atividades envolvendo relações com pessoas e não com coisas, ela vem se ampliando juntamente com a enorme expansão do setor de serviços verificada nas últimas décadas. E as mulheres tendem a ser suas maiores vítimas.

É mais uma, talvez a mais grave, dimensão desumanizadora do domínio do capital.

Leia também: Suicídio indígena, branco e ocidental

13 de dezembro de 2016

Para nos livrar do peso das raças

 Surendra disse, então:

- Não gosto de pretos, Kindzu.
- Como? Então gosta de quem? Dos brancos?
- Também não.
- Já sei: gosta de indianos, gosta da sua raça.
- Não. Eu gosto de homens que não tem raça. É por isso que eu gosto de si, Kindzu.

O diálogo acima é do livro “Terra Sonâmbula” e está na peça “Os cadernos de Kindzu”, baseada na obra de Mia Couto. A montagem do Amok Teatro faz justiça ao belo texto do escritor moçambicano. Mas também chama a atenção a espetacular “cenografia musical” proporcionada por inúmeros instrumentos afro-orientais brilhantemente tocados por todo o elenco.

A trama gira em torno do jovem Kindzu, apanhado em meio à guerra civil que castigou Moçambique após a libertação do país do domínio português. Mia Couto e o Amok mostram que a libertação colonial foi só um primeiro passo para a verdadeira libertação dos povos africanos.

É por isso que Surendra, antes do diálogo acima, já havia dito a Kindzu que seria “preciso esperar séculos para que cada homem fosse visto sem o peso de sua raça."

É contra essa situação que a companhia teatral dirigida por Ana Teixeira e Stephane Brodt vem atuando, com seu trabalho ligado às tradições africanas iniciado com outra montagem maravilhosa. Trata-se de “Salina – A Última vértebra”, encenada em 2015.

O espetáculo só fica em cartaz até 18/12 no CCBB do Rio de Janeiro. E, infelizmente, ainda não há notícias de novas apresentações para o ano que vem.

Que possamos continuar contando com a arte do Amok para alcançar um futuro livre do peso do racismo.

Leia também: Sobre homens e meninos negros

12 de dezembro de 2016

O Homo Deus e sua divina encrenca

Em seu livro “Homo Deus”, Yuval Harari considera que os últimos 70 mil anos correspondem à era do Antropoceno.

Neste período, diz ele, o Homo sapiens levou à extinção todas as outras espécies humanas do mundo, 90% dos grandes animais de Austrália, 75% dos grandes mamíferos da América e aproximadamente 50% dos grandes mamíferos terrestres do planeta.

Mas a tese mais aceita considera que essa fase geológica começou com a Revolução Industrial, quando a humanidade teria passado a afetar o destino do planeta tanto quanto placas tectônicas e vulcões.

De qualquer maneira, a tese do autor é coerente com a seguinte sequência lógica. Com a Revolução Agrícola, a humanidade silenciou animais e plantas e transformou o que era uma “ópera grandiosa” em um "diálogo entre o homem e os deuses".

Com a Revolução Científica, a humanidade passou a silenciar os deuses também. Os antigos caçadores-coletores eram apenas outra espécie de animal. Os agricultores se viam como o ápice da criação. Os cientistas pretendem nos elevar à condição de deuses.

A mais nova obsessão humana seria conquistar a divindade, criando novos seres principalmente por meio da Inteligência Artificial. O problema seriam os riscos que um salto destes implicaria. Poderíamos criar uma forma de vida que viria a nos escravizar?

Depende, responde o autor. Nossas criaturas robóticas poderiam adotar como modelo de comportamento nossa relação com as outras espécies. Fariam conosco o mesmo que fazemos com elas.

Basta olhar para a crueldade com que tratamos os outros animais e o desprezo que dispensamos ao restante do ecossistema para imaginar o tamanho da encrenca.

Leia também: Porque deixamos de falar com animais e plantas

11 de dezembro de 2016

Porque deixamos de falar com animais e plantas

Em “Homo Deus”, Yuval Harari diz que as religiões teístas surgiram junto com a agricultura. Nelas, os seres humanos alcançaram um patamar privilegiado em suas relações com o plano divino. As outras espécies passaram a ser desprezadas.

Um exemplo é o episódio bíblico da Arca de Noé. Antes de provocar o grande dilúvio, Noé foi instruído a salvar as várias espécies para proteger os interesses comuns de deuses e seres humanos, afirma Harari.

Baixadas as águas, Noé construiu um altar onde sacrificou certos animais em louvor a Deus. O autor cita a Bíblia: “O Senhor sentiu o aroma agradável e disse em seu coração: Nunca mais vou amaldiçoar o chão por causa dos seres humanos”.

Ou seja, a concepção bíblica considera perfeitamente correto matar animais como punição por crimes cometidos pelo Homo sapiens. Outras religiões teístas, como o budismo e o hinduísmo, também autorizam os seres humanos a controlar e usar outros animais, ainda que com certas restrições.

Os caçadores-coletores não se viam como seres superiores porque raramente tinham consciência do seu impacto sobre o ecossistema. Mas os agricultores são muito menos dependentes em relação aos caprichos de outros animais.

Antes da Revolução Agrícola, afirma Harari, a humanidade falava com animais e plantas. Depois dela, restou apenas o diálogo com os deuses.

Agora, a humanidade estava sozinha num palco vazio, “conversando consigo mesma, negociando com ninguém e adquirindo enormes poderes sem obrigações”. Pelo menos, era o que pensávamos até que os desequilíbrios ecológicos começaram a cobrar a fatura.

Esta visão de Harari está longe de ser consensual, mas vale pelo que nos faz pensar.

Leia também: Nosso pacto com Deus contra o ecossistema

10 de dezembro de 2016

Nosso pacto com Deus contra o ecossistema

Yuval Harari lançou mais um best-seller. Em “Homo Deus”, o autor israelense volta a denunciar a arrogante superioridade que nossa espécie assumiu em relação às outras. Para isso, lança mão da teologia.

Ele lembra que as religiões animistas são aquelas em que entes não-humanos também seriam habitados por espíritos. Principalmente, os animais e plantas. Tais crenças corresponderiam à fase em que nossos antepassados eram caçadores e coletores.

Nesse tipo de atividade, éramos obrigados a seguir rigidamente os ciclos biológicos. Se uma determinada planta comestível acabava, era preciso encontrá-la em outro lugar. Ou respeitar seus ciclos reprodutivos. O mesmo acontecia com a caça.

Harari diz que as religiões correspondentes a esse modo de vida seriam como “óperas” com um “elenco ilimitado de atores coloridos”.

Tudo isso mudaria com o surgimento das religiões teístas, ou seja, aquelas em que somente deuses são cultuados. A “ópera” multicolorida, diz ele, deu lugar a um “triste drama com apenas dois personagens principais: o homem e Deus”.

Passamos a ser considerados “o ápice da criação”, logo abaixo dos criadores divinos e acima de todos os outros seres vivos. Uma religiosidade que corresponderia à atividade agrícola. Em troca da proteção dos deuses para nossas colheitas passamos a destinar-lhes parte da safra.

Este “acordo”, diz ele, serviu a ambas as partes, “às custas do resto do ecossistema”. Mas como ficam as partes que ficaram de fora? Milhares de anos desprezando a importância de todas outras espécies não podem vir a nos cobrar um preço elevado demais em um futuro não tão distante?

Continua na próxima pílula, com uma rápida visita à Arca de Noé.

Leia também: Deus e o diabo na terra da energia solar

8 de dezembro de 2016

Artigo 142: intervenção militar garantida

Crise institucional! Juízes, governantes e parlamentares batendo cabeça. A corrupção reina. Renan reina. Temer agoniza.

Diante dessa confusão toda, vozes da direita pedem a aplicação do Artigo 142 da Constituição. E o que vem a ser tal coisa?

Ele, basicamente, diz que as Forças Armadas “destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.

Mas sejamos justos. Esta disposição constitucional jamais ficou esquecida. Foi acionada muitas vezes “por iniciativa” dos “poderes constitucionais”.

Um mês após a aprovação da nova constituição, por exemplo, Sarney enviou tropas militares para reprimir uma greve de metalúrgicos em Volta Redonda. Três operários mortos. Artigo 142.

Em 1995, Fernando Henrique enviou tropas militares para refinarias da Petrobrás em greve. Artigo 142.

Em 2004, Lula criou a Força Nacional de Segurança Pública, composta por policiais militares “de elite”. Desde então, ela interveio em muitas lutas e manifestações. Artigo 142.

As mais corriqueiras manifestações populares jamais deixaram de contar com a presença repressiva de Polícias Militares estaduais. Artigo 142.

As UPPs cariocas ocuparam comunidades pobres. Vieram os soldados, mas não os profissionais de saúde, professores, assistentes sociais... Artigo 142.

As recentes ondas de ocupação de escolas receberam visitas truculentas das forças policiais militares. Artigo 142.

A população brasileira convive com uma polícia militarizada que trata sua parcela pobre como potencial inimigo. Artigo 142.

“Lei antiterrorista”? Sem comentários.

Os próprios selfies que manifestantes vestindo verde-amarelo fazem com policiais militares acontecem graças ao Artigo 142.

Diante disso, a direita poderia dar um tempo no ódio para comemorar suas vitórias. Não são poucas, afinal.

Leia também: A caminho da democracia empresarial-militarizada (2)

7 de dezembro de 2016

As mais recentes pizzas de Brasília

A mais recente pizza de Brasília acabou de sair dos fornos do Supremo. Crua, sem nenhum recheio ou tempero. Apesar disso, fomos obrigados a engoli-la pedaço por pedaço.

Mas há outra pizza assando. Gigantesca, aliás. Trata-se da PEC 55, do corte de gastos. O governo diz que precisa diminuir um déficit de R$ 170 bilhões, congelando os gastos públicos por 20 anos. São as Despesas Primárias, dizem governantes, parlamentares, grande mídia, barbeiros e motoristas de táxi.

É preciso congelar gastos com a máquina pública. O problema é que essas despesas, incluindo desvios, má gestão, salários acima do teto e roubalheiras, representam cerca de 1% do tal déficit. Já o pagamento dos juros da Dívida Pública é responsável por uns 80% do déficit. O restante é queda da arrecadação.

Se ainda não deu pra entender, o gráfico acima pode ajudar. Bem desenhadinho.

Mas, apesar de estar assando a todo vapor, ninguém fala dessa pizza. Será porque o pagamento dos juros da dívida alimenta uma gigantesca ciranda financeira que beneficia, no máximo, umas 70 mil pessoas em uma população de mais de 200 milhões?

Será porque cerca de 98% dos papéis da Dívida Pública estão nas tesourarias de grandes investidores, como empresas, bancos, latifundiários? A mesma minoria que financia a eleição de parlamentares e governantes em geral e anuncia nos grandes meios de comunicação?

São tantas as perguntas...

O certo é que mais uma pizza está assando. E, com certeza, todas as outras, incluindo a dos senhores juízes supremos, serviram apenas como aperitivo para esta. Deliciosa para muito poucos. Venenosa para a enorme maioria.

Leia também: A ferida e o câncer

6 de dezembro de 2016

Onde nascer negro é quase um crime

Não haverá, nos Estados Unidos ou em qualquer lugar sujeito a sua jurisdição, nem escravidão, nem trabalhos forçados, salvo como punição de um crime pelo qual o réu tenha sido devidamente condenado.

Esta é a 13ª Emenda à Constituição dos Estados Unidos. A regra é o fim da escravidão. Exceções, só na hipótese de crime. Para os negros americanos, a exceção virou regra.

Os homens negros representam cerca de 6,5% dos estadunidenses, mas são mais de 40% da população carcerária.

Afinal, num país dominado por racistas, nascer negro, ou não branco, é meio caminho para ser considerado criminoso. A chance de um branco ser preso é uma em 17. Para um negro, uma em três.

Tudo isso está no documentário “13ª Emenda”, de Ava DuVernay. A excelente produção denuncia o encarceramento em massa dos negros americanos. Uma política iniciada por Reagan, mas mantida e reforçada pelos sucessores, incluindo Clinton e Obama.

O filma revela uma sociedade cuja principal forma de relação com os ancestrais daqueles que foram trazidos escravizados para a América inclui linchamentos, condenações ilegais e execuções por policiais.

São inúmeras as terríveis consequências sociais dessa realidade. Mas uma delas é colocar grande parte dos negros na ilegalidade política. Uma simples ocorrência de trânsito pode levar à perda do direito de votar.

No estado do Alabama, por exemplo, 30% da população não pode votar. Quase todos negros, à mercê de uma polícia quase toda branca.

Daí, a vitória de gente como Trump ser regra e a eleição de Obama, rara exceção. E por sua cumplicidade diante dessa realidade, uma exceção, esta sim, criminosa.

Leia também: O massacre dos lanceiros negros

5 de dezembro de 2016

Por uma obscenidade de esquerda

Dois artigos publicados na Folha, em 04/12, pediam paciência e humildade diante das recentes manifestações de rua em defesa da Lava-Jato.

Antônio Prata dizia ser “impossível conversar com quem defende a ditadura, a tortura, a homofobia. Mas ao lado desses, hoje, estarão seu primo, seu tio, seu sogro e uma multidão de pessoas decentes...”. Se virarmos as costas a eles, afirma ele, como evitar um “Bolsonaro em 2018”?.

Rodrigo Nunes vai por caminho parecido:

A identidade de esquerda parece cobrar um preço cada vez mais alto de entrada: os requisitos práticos e teóricos são cada vez mais exigentes, e seu não cumprimento pode implicar não a tentativa de persuasão, mas o fechamento de qualquer via de diálogo.  

Os dois articulistas estão falando sobre a penosa, mas necessária, convivência com um senso comum impregnado de valores retrógados e revoltantes. Realmente, não é fácil ouvir obscenidades como a defesa da tortura, da homofobia, do racismo...

O sentido da palavra “obsceno” refere-se ao que deve ficar escondido, fora de cena. De forma alguma, aceitamos tortura, homofobia, racismo. Mas combater tais valores com ofensas é continuar no mesmo registro de obscenidades.

A defesa da livre orientação sexual ou de tratamento digno para criminosos, por exemplo, é obscena para a extrema-direita. Sem problema. Gostamos de escandalizá-la com esta nossa obscenidade e nos orgulhamos dela. Mas se a abandonarmos para trazer à cena principal nossa arrogância e hostilidade, aqueles que queremos convencer só ouvirão os fascistas.

Como diz Nunes em seu artigo, acolher os medos e anseios das pessoas pode ser um “ponto de partida para uma obscenidade de esquerda”.

2 de dezembro de 2016

De volta ao pesadelo lulista?

Em 28/11, Marcos Coimbra publicou artigo na Carta Capital sobre as eleições de 2018. Segundo ele, “a oposição de esquerda está em vantagem e o governismo vai mal”.  

Presidente do instituto Vox Populi, o articulista cita pesquisas recentes em que Lula, sozinho:

...tem a mesma intenção espontânea de voto que a soma de todos os outros nomes. Possui mais que o dobro de qualquer candidato do PSDB, de Marina Silva (...), seis vezes mais que Temer e outros nomes à direita. Não perde para ninguém nos cenários de segundo turno, empatando com os mais bem colocados, apesar de estar no pior momento de sua trajetória.

Diante disso, diz Coimbra, ou as esquerdas disputam “com ampla chance, a próxima eleição”, ou adiam qualquer “expectativa razoável de chegar ao poder” por uns “20 anos”.

Este cenário pode facilmente se inviabilizar caso Lula se torne réu. Algo muito provável, aliás. Mas, caso contrário, nos veríamos novamente às voltas com um projeto que se mostrou totalmente incapaz de enfrentar o conservadorismo. Ou não?

Cabe aos petistas demonstrar o oposto se comprometendo com algo menos vago que justiça social e retomada do crescimento do PIB. Por exemplo, auditoria da dívida pública, corte dos juros, reforma agrária, taxação dos ricos, democratização dos meios de comunicação e revogação da legislação antiterrorista, só para começar.

Mas, acima de tudo, precisariam se comprometer a ajudar na organização de grandes mobilizações, única forma de realmente enfrentar a atual onda direitista.

Será?

Pode esquecer. Muito mais provável seria vivermos novamente o pesadelo de ver o lulismo disputando com a direita tradicional o apoio de nossos inimigos. 

1 de dezembro de 2016

Contra o reformismo, trabalho de base

Encerrando os comentários sobre “O mito da Aristocracia Operária”, de Charles Post, é importante destacar o que o autor considera ser o ponto de partida para a criação das condições materiais e ideológicas no enfrentamento do reformismo entre os explorados.

Trata-se da necessidade de promover a auto-organização dos trabalhadores e sua auto-atividade. Principalmente, nas lutas iniciadas nos locais de trabalho, mas não limitadas a eles. Uma atividade que deve incluir também o combate a valores conservadores como racismo, machismo, homofobia, xenofobia...

Além disso, é preciso superar os obstáculos criados pela burocracia sindicais, partidárias e de outras organizações populares. Ainda que utilizem um discurso combativo, a estes setores interessa a manutenção da ordem para a perpetuação de seus privilégios.

As maiores ameaças continuam a vir do institucionalismo paralisante. De um lado, pesadas estruturas que engessam a luta. De outro, a priorização da atuação eleitoral.

Estamos falando, claro, do bom e velho trabalho de base, de baixo para cima. Sempre acompanhado da disposição de estar presente em todas as frentes de luta contra a opressão e a exploração capitalistas. Não apenas nas lutas econômicas, mas em defesa dos direitos e da ampliação das liberdades para amplas maiorias.

Na verdade, foi essa combinação que permitiu que as grandes revoluções acontecessem, desde a Comuna de Paris até as jornadas revolucionárias mais recentes.

Tudo isso, porém, implica respeitar a capacidade crítica de que são capazes os setores explorados e oprimidos. Estes, quando se mobilizam, avançam para muito além do que podem nossas vãs teorias. Somente assim seremos capazes de tornar a luta por reformas um caminho sem volta pela revolução. 

30 de novembro de 2016

Senso comum, reformismo e revolução

Em “O mito da Aristocracia Operária”, Charles Post cita a definição do militante socialista estadunidense Kim Moody sobre o senso comum da classe trabalhadora. Para ele, não se trata de "uma ideologia capitalista consistente", mas:

Uma coleção contraditória de ideias antigas herdadas, outras aprendidas através da experiência diária, e ainda outros geradas pela mídia capitalista, pelo sistema de educação, pela religião, etc. Não é simplesmente uma visão que só vê uma nação tranquilizada pela TV e por fins de semana em shoppings. "O senso comum" é tão profundo e contraditório porque também incorpora experiências que vão na contramão da ideologia capitalista.

Antônio Gramsci também identificava no senso comum “uma concepção fragmentária, incoerente, inconsequente...”. E, tal como Moody, considerava possível surgir de toda essa confusão elementos capazes de desmascarar a dominação capitalista.

Por outro lado, essas contradições também são utilizadas para justificar o reformismo. Afinal, diante dos terríveis impactos sociais do capitalismo, o senso comum se apega à ideia que a sociedade humana sempre foi e sempre será assim. Somente seria possível reformá-la, portanto.

O problema é que não se dá combate a esse conformismo fazendo uso apenas de clareza teórica e habilidades retóricas. As contradições acontecem na vida concreta dos explorados e oprimidos. E é neste nível que elas podem dar origem ao que Gramsci chamou de “bom senso” popular. Uma outra organização de ideias, valores, experiências capazes de preparar a reação revolucionária.

Foi assim que se construíram a maiores revoluções populares. É preciso aprender com estas experiências para construir novas. Sempre coletivamente e a partir de baixo.

Na próxima pílula, o fechamento provisório desta discussão.   

Leia também: A aceitação do reformismo entre os explorados

29 de novembro de 2016

A aceitação do reformismo entre os explorados

Continuamos a comentar o artigo “O mito da Aristocracia Operária”, em que Charles Post recusa a tese de que o reformismo é produto da influência de uma pequena parcela, qualificada e bem paga, dos trabalhadores.

Trata-se, na verdade, diz o autor, de um fenômeno político que ganha as mentes do conjunto da classe trabalhadora. E isso acontece, afirma ele, porque “em tempos normais”, ou seja, sem crises, a grande maioria dos explorados aceita as regras da competição capitalista.

Marx já havia dito que um dos maiores obstáculos para a libertação do proletariado é a competição e hostilidade reinante em seu próprio interior. Desde o racismo e o preconceito contra imigrantes até a ação dos “fura-greves”, essas fissuras se multiplicam constantemente.

Elas surgem a partir do nível mais estrutural do funcionamento capitalista. Mas são reforçadas e reproduzidas incessantemente pelos aparelhos hegemônicos da burguesia, como escolas, igrejas, grande mídia, mas também em sindicatos, associações e partidos.

Por isso, os marxistas sempre defenderam a necessidade da organização política dos trabalhadores. Para que condições econômicas e contingências sociais deixem de dividir os explorados. Para que sua unidade aconteça no nível ideológico, desmascarando as ideias dominantes e afirmando o socialismo como única saída.

O grande problema é que o terreno político também está cheio de armadilhas. Principalmente, quando se trata de intervir no campo institucional. É nele que ficamos mais perto do inimigo e a intervenção militante pode ser corrompida, não apenas por dinheiro, mas também pela acomodação aos favores do poder.

Para tentar evitar esses riscos, Post apresenta algumas propostas. É o que veremos nas próximas pílulas.

28 de novembro de 2016

Aristocracia operária e luta burocratizada

Em seu artigo “O mito da Aristocracia Operária”, Charles Post afirma que o reformismo não seduz apenas uma parcela pequena, qualificada e bem paga dos trabalhadores. Também atrai a simpatia de grande parte da classe.

Para começar a entender, citemos as seguintes palavras do autor:

...a maioria dos trabalhadores, na maior parte do tempo, está empenhada na luta para vender sua capacidade individual de trabalho e garantir sua reprodução e a de suas famílias - e não na luta coletiva contra os patrões e o Estado. Os trabalhadores "realmente existentes" só se envolvem em lutas de massas como classe em situações extraordinárias, revolucionárias ou pré-revolucionárias. Devido à posição estrutural do trabalho assalariado sob o capitalismo, seu envolvimento em lutas radicais de contestação acontece em momentos de curta duração. E, na maioria das vezes, diferentes segmentos da classe trabalhadora desempenham um papel ativo na luta contra o capital em momentos diferentes.

Mas, segundo Post, na esteira das lutas vitoriosas, uma minoria de trabalhadores continua ativa. Muitos assumem tarefas administrativas nas organizações que surgem das lutas: sindicatos, partidos, associações...

Esta parcela se afasta dos locais de trabalho e passa a viver de modo muito diferente do restante dos trabalhadores. Torna-se uma camada burocrática que só mantém suas vantagens se a dominação capitalista permanecer intacta. Sob sua liderança, as lutas só podem avançar até certos limites. Reformar o capitalismo? Talvez. Destruí-lo, jamais.

Mas se tudo isso ajuda a entender porque o reformismo persiste entre os setores da “vanguarda” dos trabalhadores, é insuficiente para explicar sua força no restante da classe.

É o que veremos na próxima pílula.

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