Doses maiores

30 de abril de 2021

Entregadores preparam-se para a hora da treta

Continuamos a comentar o livro “Riding for Deliveroo”, de Callum Cant. Agora, para falar do boletim que os entregadores do Deliveroo criaram em defesa de seus interesses.

Chamava-se “Roo rebelde”. Roo é o nome que o Deliveroo dava aos entregadores em seus comunicados. A prioridade era fazê-lo no formato impresso para incentivar sua entrega e circulação de mão em mão. A distribuição on-line acabou sendo iniciativa dos próprios trabalhadores.

Outra prioridade era publicar relatos de trabalhadores de todo o país. As principais contribuições vieram de seis cidades inglesas e de Glasgow, na Escócia. Mas também surgiram correspondentes na França, Alemanha e Itália.

Além do inglês, havia textos introdutórios nos idiomas mais falados na categoria, como bengali, português, francês, polonês e árabe.

Em janeiro de 2017, a circulação combinada, online e impressa, atingia cerca de 1.500 trabalhadores. Isso significava uns 10% da força de trabalho do Deliveroo britânico. O Rebel Roo estava em toda parte, preparando a rebelião.

O Deliveroo não tinha nenhuma obrigação de reconhecer os entregadores como categoria sindical. Mas, ao mesmo tempo, não havia restrições legais a ações grevistas.

Os trabalhadores não tinham auxílio-doença, férias e outros direitos. Mas também não eram obrigados a avisar aos empregadores sobre paralisações ou respeitar quóruns burocráticos para tomar decisões.

A democracia acontecia no local de trabalho e de forma direta. A inexperiência era compensada pela ausência dos problemas típicos dos movimentos burocratizados.

“De repente, diz Can, começamos a entender como as condições precárias podem ser uma fonte de força. Seria uma luta direta: patrões x trabalhadores”.

Enfim, tinha chegado a hora da treta!

Leia também: Os entregadores e a pesada retaguarda das lutas econômicas

29 de abril de 2021

Os entregadores e a pesada retaguarda das lutas econômicas

É perfeitamente possível trabalhar para o Deliveroo e não falar inglês. O aplicativo funciona em vários idiomas e a atividade não exige comunicação verbal extensa.

Quem tem dificuldades em conseguir outras ocupações devido ao pouco domínio da língua pode se tornar entregador facilmente. É o que revela Callum Cant, em seu livro “Riding for Deliveroo”. Foi assim que ele conheceu trabalhadores de várias partes do mundo.

Os imigrantes formam um setor grande, bem organizado e militante nas empresas de plataformas. Não à toa, a primeira ação coletiva dos entregadores da Deliveroo foi um boicote à rede Byron Burgers, após seus gerentes delatarem imigrantes ilegais para as autoridades britânicas.

Originários principalmente da África, Índia, Paquistão, Leste Europeu e América Latina, muitos deles tinham pouca experiência de resistência sindical em seus países. Já outros, como os brasileiros, se destacavam por estar sempre na linha de frente das lutas.

Mas Cant teria uma decepção com alguns de nossos conterrâneos. Segundo ele:

Durante as eleições presidenciais brasileiras de 2018, entregadores brasileiros de Londres, que haviam feito greve algumas semanas antes, começaram a compartilhar vídeos de apoio ao candidato de extrema direita, Jair Bolsanaro, no WhatsApp.

Pareciam não entender a profunda contradição entre a situação deles no Reino Unido e o candidato que apoiavam no Brasil, diz Cant.

Nesse caso, vale o que Trotsky costumava afirmar: todo movimento de caráter estritamente econômico, mesmo quando radicalizado, tende a carregar uma pesada retaguarda conservadora.

Para dar resposta a esse tipo de situação, só a disputa ideológica. É por isso que Cant e outros companheiros criaram o “Rebel Roo”. Um boletim impresso em papel!

Leia também: Uma breve história de militantes precários

28 de abril de 2021

Uma breve história de militantes precários

O título acima pertence a um dos capítulos do livro de “Riding for Deliveroo”, de Callum Cant. Nele, ficamos sabendo que o conceito de "emprego precário" já era usado na Inglaterra do século 19.

Na época, o grande exemplo de trabalhadores precarizados eram os estivadores ingleses. Trabalhando nas docas, eles disputavam diariamente uma vaga nas operações de carga e descarga de navios.

Mas a atividade exigia uma cooperação que logo se transformou em solidariedade. Formaram-se grupos que só aceitavam tarefas em que permaneciam juntos.

Não demorou e eles passaram a negociar remunerações e condições de trabalho coletivamente. A organização cresceu e a categoria passou a ter grande liberdade de ação.

Uma greve nas docas de Londres realizada em 1889, por exemplo, paralisou 100 mil estivadores e conseguiu arrancar uma remuneração fixa para todos.

Fenômenos parecidos se repetiram em vários portos do mundo. E como tratava-se de uma categoria fundamental para o comércio mundial, seus integrantes ganharam muito poder de barganha.

Na Inglaterra, os estivadores conquistaram a regulamentação profissional em 1967. Mas ela veio com uma cláusula de produtividade que passou a dificultar o controle que eles sempre tiveram sobre seu trabalho.

Logo em seguida, os patrões começaram a implantar o sistema de contêineres. Uma inovação que diminuiu muito o número de estivadores e seu poder de mobilização.

Os entregadores de aplicativos estão em situação parecida à dos estivadores do passado. São precarizados, mas seu caráter estratégico pode alavancar lutas importantes.

Agora, como antes, a treta é direta, a união fundamental, mas também é imprescindível aprender com as conquistas e derrotas das lutas do passado.

Leia também: Com entregadores de aplicativos, a treta é direta

27 de abril de 2021

Com entregadores de aplicativos, a treta é direta

Ao contrário das iluminadas e transparentes vitrines do mercado capitalista, os locais de produção são o que Marx chamou de “lugares ocultos”, onde se esconde o lado feio do sistema: a exploração.

Mas os trabalhadores também têm seus segredos. São suas técnicas, saberes, habilidades. Elementos que lhes permitem tanto controlar o ritmo do trabalho em seu favor, como paralisar a produção.

Por isso, é tão importante para o capital apropriar-se desse conhecimento laboral através de processos como automatização, informatização, inovações nos métodos de produção.

Mas no caso de algumas recentes formas de trabalho, nem essa preocupação os patrões têm. É o que mostra Callum Cant no livro “Riding for Deliveroo”, sobre sua experiência como entregador para o aplicativo Deliveroo.  

Claro que os entregadores desenvolvem certos tipos de conhecimento e habilidades, mas jamais chegam perto de controlar um processo de trabalho no qual são legalmente considerados como “colaboradores”.

Tudo é monitorado pelo aplicativo, que coleta dados em grandes quantidades, enquanto os entregadores ficam no mais completo escuro.

Além disso, essas plataformas se isentam da maior parte do “capital fixo”. Despesas com bicicletas, celulares, seguros e até a mochila térmica ficam por conta dos trabalhadores.

Desse modo, muitos mal conseguem cobrir os custos de reprodução de sua própria força de trabalho. E esta é uma das principais questões do capitalismo de plataforma: o trabalho autônomo.

Desprotegidos legalmente, os entregadores sofrem com a precarização. Por outro lado, não dependem de lei alguma para, por exemplo, organizar uma greve. A treta é direta, entre eles e os patrões.

E treta é o que não vai faltar nas próximas pílulas.

Leia também: O lugar oculto dos aplicativos de entrega

23 de abril de 2021

O lugar oculto dos aplicativos de entrega

Segundo Marx, na sociedade capitalista, o mercado é uma esfera pública regida pelos ideais de Liberdade, Igualdade e Propriedade. Mas o local de trabalho, onde o valor é realmente produzido, é um "lugar oculto".

Callum Cant descobriu isso quando começou a trabalhar em sua tese de doutorado sobre aplicativos de entrega. Havia muita literatura sobre eles, mas a realidade de sua produção era um mistério.

Diante disso, ele resolveu trabalhar para o aplicativo Deliveroo, de entrega de alimentos, em Brighton, Inglaterra. Sua experiência está no livro “Riding for Deliveroo”.

Depois de alguns meses, Cant começou a entender que os entregadores já tinham canais bem estabelecidos de comunicação e organização, abaixo da superfície.

Eles conversavam por Whatsapp, diariamente, sobre as condições de trabalho, ajudando uns aos outros, controlando as datas de pagamento, organizando jogos de futebol etc. Essas redes estavam completamente ocultas para todos, exceto para os trabalhadores.

O sistema de controle da Deliveroo foi construído com uma falha fundamental: ele automatizou o gerenciamento, mas o algoritmo criado para isso só foi capaz de fazer parte do trabalho.

Seu nome era “Frank”. Ele podia coordenar o processo de trabalho com incrível precisão e habilidade. Mas não podia disciplinar os trabalhadores como fazem os supervisores humanos. E a pessoa que o gerenciava ficava em um escritório central, sem ter controle das informações em tempo real, além da localização dos entregadores.

Consequentemente, era fácil adotar estratégias individuais de resistência. Frank não era um supervisor muito rígido. E isso era um problema para os patrões.

Mas, calma, os trabalhadores da Deliveroo também tinham problemas. E muitos.

Veremos na próxima pílula.

Leia também: O lugar estratégico dos entregadores na luta anticapitalista

22 de abril de 2021

O lugar estratégico dos entregadores na luta anticapitalista

Callum Cant descreve no livro “Riding for Deliveroo” sua experiência militante como entregador de um aplicativo de entrega de refeições, em Brighton, Inglaterra.

O Deliveroo faz parte do que ele chama de “capitalismo de plataforma”, que explora trabalho humano, mas tem na extração de dados sua mina de ouro.

Por outro lado, plataformas como o Deliveroo ainda não são empresas economicamente viáveis, diz Cant. São investidores externos que mantêm as contas da empresa no azul, de olho em lucros futuros.

Mas a verdade é que importa menos o desempenho financeiro desses aplicativos ou o tamanho de sua força de trabalho do que a maneira como eles mudam o cenário da economia em geral.

A linha de montagem foi criada nas tecelagens de Boston, sem muito sucesso. Só se tornou uma poderosa ferramenta de exploração quando Ford a adotou em suas fábricas.

A fabricação de computadores não é o maior setor da economia. No entanto, esses equipamentos foram estratégicos para o desenvolvimento capitalista porque permitiram reorganizar radicalmente o mundo do trabalho.

O que a exploração do trabalho por aplicativo está fazendo é criar algo semelhante. Oferecendo uma janela de oportunidades para uma nova fase do capitalismo, com mais exploração, menos empregos e ainda mais precariedade trabalhista.

Felizmente, essa janela também pode servir aos explorados. Para que essas tecnologias beneficiem a maioria em vez de garantir lucros para poucos, os trabalhadores precisam estar no controle.

Mas para isso é fundamental aprender, desde já, com lutas como a dos entregadores de aplicativos, permitindo que toda a classe trabalhadora possa ganhar uma vantagem estratégica sobre os patrões.

Leia também:
Um pé na luta, outro no pedal
Sobre tecnologia, desemprego e capitalismo. Sobre barbárie, enfim

20 de abril de 2021

Um pé na luta, outro no pedal

Em recente debate, Paulo Galo, liderança da luta dos entregadores de aplicativos, disse o seguinte sobre as fake news: nossa resposta às mentiras da direita não podem ser mentiras de esquerda nem a verdade, mas a realidade dos trabalhadores.

Na Inglaterra, uma outra liderança dos entregadores parece pensar o mesmo. Trata-se de Callum Cant, que escreveu o livro “Riding for Deliveroo” sobre as lutas de que participou contra a exploração imposta pelos aplicativos a ciclistas e motociclistas de Brighton.

Logo no início, ele avisa:

Este livro é inspirado em Marx. Ou seja, foi escrito na perspectiva da classe trabalhadora: a classe que nada tem a perder a não ser suas correntes. Para tanto, baseia-se em pesquisas realizadas por meio de um método denominado “questionário com trabalhadores”.

Essa metodologia foi criada por Marx em 1880, quando ele enviou um questionário com 101 perguntas para trabalhadores de toda a França. O objetivo dele, diz o autor, era aprender com a classe a quem pertence o futuro para apoiá-la na luta contra toda exploração.

Conduzindo sua bicicleta, Cant entregava comida, mas também formulários para os companheiros da cidade onde trabalhava. Enquanto fazia isso, participou de greves e manifestações e ajudou a formar um braço sindical da categoria.

Também entrevistou trabalhadores de todo o Reino Unido e colaborou na montagem de um banco de dados produzido por uma rede europeia de entregadores. Sempre buscando fortalecer as lutas desse setor cada vez mais importante nas grandes cidades do mundo.

Nem mentiras, nem verdades abstratas, mas intervenção concreta na situação concreta. Nesse caso específico, um pé no pedal, outro na luta.

Leia também: A luta dos entregadores contra os patrões sem rosto

19 de abril de 2021

A luta dos entregadores contra os patrões sem rosto

Entregadores de aplicativos como Rappi, Uber Eats e iFood organizaram uma grande manifestação no dia 16/04/2021, em São Paulo. Mais de 500 motociclistas saíram do estádio do Pacaembu e seguiram pela Marginal Tietê. Protestavam contra as baixas taxas praticadas pelas empresas e exigiam vacinação imediata.

Se enormes contradições já vinham empurrando a categoria para a luta nos últimos quatro ou cinco anos, a pandemia radicalizou a situação. A demanda por seus serviços aumentou e se tornou essencial, mas isso não refletiu em melhores condições de trabalho.

Ao contrário, recente estudo feito pelo Ministério Público do Trabalho, junto com universidades federais, mostra que 59% dos entregadores passaram a receber menos com as plataformas durante a pandemia.

Diante disso, ganha ainda mais relevo o lançamento do livro "Delivery Fight! - A luta contra os patrões sem rosto", do militante britânico Callum Cant. A publicação está em pré-venda pela Editora Veneta, com previsão de lançamento para 31/05/2021.

Cant participou de várias campanhas e greves entre 2013 e 2017, trabalhando como entregador, enquanto fazia doutorado em Sociologia. Rapidamente, ele e seus companheiros descobriram que estavam submetidos a um regime de trabalho que desmentia completamente o discurso em defesa dos aplicativos. O que os criadores dessas plataformas chamam de parceria não passa de exploração.

É o caso do Deliveroo, equivalente do Ifood na Inglaterra. Foi com esse aplicativo que Cant trabalhou por mais tempo. Daí, o nome de seu livro em inglês: “Riding for Deliveroo”. Será esta edição que iremos comentar nas próximas pílulas.

Mais que esclarecedores, os relatos de Cant mostram que sempre há esperança onde há resistência e luta.

Leia também: Os entregadores e a política das ruas

16 de abril de 2021

Marx contra os marxistas

Em artigo publicado no livro “Marx tardio e a via russa”, Teodor Shanin revela que Marx chegou a conviver com marxistas que julgavam saber melhor do que ele o que era ser marxista. Algo que o irritava tanto que, certa vez, negou-se a declarar-se marxista.

Quando jovem, Marx escolheu como seu lema favorito "Duvidar de tudo". E seus rascunhos e anotações tardios são uma prova clara de que jamais abriu mão desse princípio.

O que alguns consideravam ser indícios de senilidade, era fidelidade à sua inquietação criativa e coerência em relação a objetivos revolucionários nunca abandonados.

Os estudos que fez sobre os então recentes achados antropológicos da década de 1870, por exemplo, levaram Marx a descobrir nas sociedades ditas primitivas elementos para a construção do comunismo do futuro.

Olhar para trás também era permitido.

Se havia sinais de que uma transição para o comunismo seria possível na Rússia semifeudal, explorar essa possibilidade importava mais que as verdades sagradas do socialismo oficial.

Foi com a Rússia e com os populistas russos que Marx começou a perceber elementos que só se mostrariam válidos nos processos revolucionários do século seguinte na própria Rússia, mas também na China, em Cuba, no Vietnã...

Mas para a Segunda Internacional que endeusou Marx, com direito a escrituras sagradas elaboradas por sacerdotes, tudo isso não passava de heresias. Foi com esse dogmatismo que Lênin, Trotsky e outros romperam tornando vitoriosa uma improvável revolução socialista.

É verdade que Marx acabaria sendo mumificado e estatizado pelo estalinismo. Felizmente, ainda restam muitos que preferem aliar-se a Marx contra certos marxistas e pela revolução.

Leia também: Marx e os populistas russos contra os marxistas

15 de abril de 2021

Marx e os populistas russos contra os marxistas

Na pílula anterior falamos sobre uma possível via russa para o comunismo em pleno século 18, quando a Rússia recém havia abolido as relações de servidão.

Como mostra Teodor Shanin no livro “Marx tardio e a via russa”, esse estranho atalho foi considerado possível pelo próprio Marx. Mas quem propôs tal ousadia a ele foram os militantes do populismo russo.

Os integrantes desse importante movimento se recusavam a aceitar os "custos sociais" do capitalismo como mal menor na transição para uma etapa histórica “superior”.

Contra as forças da ordem, opressão e exploração, eles colocaram toda sua confiança na mobilização da classe trabalhadora, que seria formada por camponeses, operários e trabalhadores intelectuais.

Por trás dessas concepções estava um conceito muito marxista: o desenvolvimento desigual e combinado, pelo qual o atraso relativo podia se transformar em vantagem revolucionária, tornando possível uma ruptura socialista imediata na Rússia.

Os populistas russos ficaram famosos em toda a Europa. A imagem de "revolucionários profissionais" e "quadros do partido" que os bolcheviques encarnaram posteriormente tem sua principal origem neles.

A militância abnegada, a disciplina férrea e as ações heroicas dos populistas deram considerável contribuição para os processos que desembocariam nas revoluções de 1905 e 1917.

Entre seus militantes estava Alexandre Ulianov, executado em 1887, acusado de tentar assassinar o czar. Uma influência, certamente, importante na vida de seu irmão mais novo, Vladimir Lênin.

O dogmatismo que viria a dominar o marxismo oficial acusou os populistas de serem atrasados e fanáticos. Na verdade, Marx preferia corresponder-se com eles, imersos na luta do povo russo, do que com seus pretensos seguidores, frequentadores de salões luxuosos.

Leia também: Marx e um possível atalho russo para o comunismo

14 de abril de 2021

Marx e um possível atalho russo para o comunismo

Em um dos artigos do livro “Marx tardio e a via russa”, Teodor Shanin afirma que no final da vida, Marx ficava revoltado com leituras que atribuíam a sua obra uma visão evolucionista da história.

Segundo essas concepções, os modos de produção se sucederiam um após o outro: feudalismo, capitalismo, comunismo. Nesta ordem, sem variações.

Foi, principalmente, em seus escritos relacionados à Rússia que Marx procurou repudiar essa visão equivocada. É o caso da carta em resposta à Vera Zasulich, militante socialista russa. Ela perguntara se seria possível instaurar o comunismo na Rússia, sem que o país passasse por uma fase plenamente capitalista.

O parágrafo abaixo pode resumir a resposta de Marx:

A análise presente em O Capital (...) não fornece razões a favor ou contra a vitalidade da comuna russa. Mas o estudo específico que fiz a respeito (...) me convenceu de que a comuna pode ser o fulcro da regeneração social na Rússia.

As comuna russas, citada por Marx, eram organizações sociais locais muito comuns nas áreas rurais da Rússia. Nelas, os serviços essenciais eram administrados coletivamente.

Depois, no prefácio à segunda edição russa do Manifesto, ele e Engels afirmam que "se a revolução russa tornar-se o sinal para a revolução proletária no Ocidente, de modo que uma complemente a outra", então "a atual propriedade em comum da terra na Rússia poderá servir de ponto de partida para um desenvolvimento comunista".

Nada de história engessada em esquemas teóricos abstratos. Tudo depende da luta de classes. É isso que a ortodoxia marxista posterior desprezou até que, justamente na Rússia, os heterodoxos bolcheviques aprontaram uma revolução.

Leia também: Um Marx velho, cheio de novas ideias

13 de abril de 2021

Um Marx velho, cheio de novas ideias

“Marx tardio e a via russa - Marx e as periferias do capitalismo” é um livro organizado pelo economista britânico Teodor Shanin, professor das universidades de Moscou e de Manchester. A obra foi lançada pela editora Expressão Popular.

O “tardio” do título refere-se aos últimos anos da vida de Marx. Período que, segundo alguns biógrafos, teria sido marcado por ideais confusas, muito comuns entre idosos.

Mas como escreve Shanin, essa suposta senilidade nada mais era que a recusa do velho revolucionário alemão em se acomodar às próprias certezas. E entre estas, estava o desprezo que, na juventude, ele e Engels nutriam pela Rússia czarista. Ao contrário disso, no começo da década de 1870, diz Shanin:

...Marx tornou-se cada vez mais consciente de que ao lado da Rússia oficial retrógrada, que ele tantas vezes atacara como foco e guardiã da reação europeia, havia crescido uma Rússia diferente, de aliados revolucionários e acadêmicos radicais, cada vez mais envolvidos com seu trabalho teórico. Foi para o idioma russo que a primeira tradução de O Capital foi feita, uma década antes de ser lançada na Inglaterra. Foi da Rússia que vieram as notícias de ações revolucionárias, destacando-se ainda mais diante do declínio das esperanças revolucionárias na Europa Ocidental após a Comuna de Paris. Em 1870-1, Marx aprendeu russo sozinho com o propósito de abordar diretamente as evidências e os debates publicados nessa língua.

Ou seja, o veterano militante radical começava a farejar algo de incendiário nos ventos vindos das estepes eurasianas. Por isso, o livro dá ênfase à chamada “via russa”. Caminho pelo qual seguiremos nas próximas pílulas.

Leia também: Numa certa encruzilhada, Marx, Gramsci, Trotsky e Lênin

12 de abril de 2021

As mulheres iroquesas e o bafo da civilização

A última pílula comentava como Marx ficara impressionado com o poder das mulheres entre os iroqueses. Tais observações aparecem nos chamados “Cadernos Etnológicos”, que reúnem anotações sobre vários estudos antropológicos.

Veremos mais sobre essa questão no relato abaixo, retirado do artigo “Karl Marx and the iroquois”, de Franklin Rosemont.

Na verdade, entre os iroqueses, qualquer decisão final era tomada pelo Conselho de Chefes, inteiramente masculino. Mas às mulheres era permitido nomear um orador para expressar suas opiniões junto ao conselho e aprovar a nomeação de novos chefes.

Parece pouco, mas trata-se de “um grau de envolvimento social muito além do desfrutado pelas mulheres (ou homens!) de qualquer nação civilizada”, diz Marx. Afinal, ele está escrevendo em 1883. Nessa época, poucos países contavam com o sufrágio masculino universal e o voto feminino só começaria a ser respeitado amplamente muitas décadas depois.

Segundo Rosemont, essa tendência igualitária entre os sexos aparecia em registros referentes a várias outras sociedades ditas “primitivas”. Essa característica interessava muito a Marx. Afinal, quando jovem, ele escreveu em “A Sagrada Família” que a melhor forma de medir o progresso de qualquer sociedade é verificar o grau de liberdade e poder com que contam suas mulheres.

É por isso que ele argumenta em uma de suas anotações que "as comunidades primitivas tinham vitalidade incomparavelmente maior do que as sociedades semíticas, gregas, romanas e, posteriormente, as sociedades capitalistas". Acrescentando, ainda, que a sociedade iroquesa era muito mais elevada do que qualquer uma das sociedades "envenenadas pelo hálito pestilento da civilização".

Infelizmente, são essas últimas sociedades que continuam a prevalecer, sem nada perder de seu bafo insuportável.

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Marx e o poder das mulheres iroquesas
A luta de classes tem que ser feminista

10 de abril de 2021

Marx e o poder das mulheres iroquesas

Os iroqueses são um povo nativo do norte do continente americano, ainda muito numeroso. Alguns aspectos de seu modo de viver mereceram destaque especial nos chamados “Cadernos Etnológicos”, de Karl Marx. Trata-se de anotações sobre estudos de vários antropólogos, feitas por ele em 1883, pouco antes de morrer.

Esse material só foi publicado em 1974. Portanto, muito tempo depois de consolidada a imagem de um Marx eurocêntrico entre seus críticos, mas também entre alguns de seus seguidores.

Os trechos comentados aqui são do artigo “Karl Marx and the iroquois”, de Franklin Rosemont, ainda sem tradução do inglês.

Entre os cientistas estudados por Marx, estava Louis Henry Morgan, cujas observações sobre os iroqueses ganharam atenção especial. Na verdade, diz Rosemont, elas constituem uma das maiores seções dentre as anotações de Marx.

No entanto, afirma o autor, não era apenas a organização social iroquesa que atraía Marx, mas sim todo um modo de vida que se contrapunha nitidamente à civilização industrial moderna, em várias dimensões.

Marx cita particularmente uma carta enviada a Morgan por um missionário que vivia entre os Sêneca, um dos povos iroqueses. Segundo o relato transcrito por Rosemont:

As mulheres eram a grande força entre os clãs, como em todos os outros lugares. Quando a ocasião exigia, elas não hesitavam em “arrancar os chifres da cabeça de um chefe”, expressão utilizada para o ato de mandá-los de volta às fileiras dos comandados. A nomeação original do chefe também sempre foi atribuição delas.

Então, as mulheres eram as verdadeiras chefas entre os iroqueses? Não exatamente. Mas esta questão ficará melhor esclarecida na próxima pílula.

Leia também: Um Marx selvagem e uma esquerda domesticada

Errata: A primeira versão desta pílula dizia que o povo iroquês está "quase desaparecido". Graças à oportuna correção do camarada Sean Purdy, agora sabemos que os iroqueses vivem em grande número nas províncias canadenses de Ontário e Quebec e no estado de Nova York. E que suas reservas estão entre as maiores nos dois países, sendo bastante organizados e militantes.

8 de abril de 2021

Sonho ruim à base de cloroquina

“O que tira o sono dos especialistas em clima?”, pergunta reportagem de Samantha Baker, publicada na Deutsche Welle em 06/04/2021. A matéria tem por base uma enquete feita com uma dezena de especialistas envolvidos com os desafios climáticos.

A resposta da climatologista, Ruth Mottram, do Instituto Meteorológico Dinamarquês resume a preocupação que mais apareceu na consulta:

Estou menos preocupada de que estejam ocorrendo processos desconhecidos que não entendemos, e de que alguma catástrofe imprevista possa estar a caminho. Sabemos como será grande parte dos impactos. Acho que o que me deixa acordada à noite, no sentido metafórico, é realmente a interação entre o sistema físico e como as sociedades humanas vão lidar com ele.

De fato, não há nada mais preocupante no cenário atual que o elemento humano. Basta considerar a forma desastrosa como a pequena minoria que detém o poder no planeta vem lidando com a pandemia.

Não se trata apenas de alguns irresponsáveis que vêm desgovernando grande parte do planeta. Os governantes, em geral, têm tomado decisões preocupados muito mais com poderosos interesses econômicos.

Talvez, uma das origens desses problemas esteja nas décadas de desprezo dispensado às ciências sociais, enquanto se priorizam as chamadas “ciências duras”, com sua exatidão completamente míope em relação ao que ocorre na alma humana.

Quanto aos saberes das áreas biológicas, com destaque para a Medicina, tornaram-se cada vez mais enrijecidos por especializações tecnológicas que tratam órgãos, não pessoas. Abandonam a saúde para lucrar com a doença.

Não à toa, muitos médicos estão na vanguarda do atraso, receitando tratamento precoce à base de cloroquina.

Realmente, durma-se com um barulho desse.

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7 de abril de 2021

Os bolcheviques e o suicídio marciano

O tema da pílula anterior foi o romance de ficção científica “Estrela vermelha”, de Alexander Bogdanov, citado por Paul Mason em seu livro “Pós-capitalismo”.

Bogdanov comandou o partido no soviete de Petrogrado, durante a Revolução de 1905. Mas, em 1909, seria expulso devido a divergências com a linha leninista. Mason afirma que tais divergências aparecem no livro, no trecho em que seu autor:

...advoga a maturidade tecnológica como precondição para a revolução, a derrubada pacífica dos capitalistas por meio de acordo e compensação, um foco na tecnologia como meio de reduzir o trabalho a um mínimo e uma insistência inflexível na ideia de que é a própria humanidade que precisa ser transformada, não apenas a economia. Além disso, um tema importante em Estrela vermelha é que a sociedade pós-capitalista tem que ser sustentável para o planeta. Os marcianos cometem suicídio voluntariamente quando percebem que são em número excessivo para o planeta suportar.

Segundo Mason, os elementos acima seriam inaceitáveis para a concepção revolucionária de Lênin. Exagero, já que alguns deles talvez fossem viáveis, caso a Revolução Russa não tivesse sido sufocada por quase duas dezenas de exércitos imperialistas.

Mas, com certeza, Lênin jamais confiaria nos capitalistas para fazer um “acordo com compensação”. E os próprios capitalistas mostraram que não são confiáveis, ao aceitarem o fascismo como mal menor diante da vitória socialista na Rússia.

Desde então, a burguesia jamais escondeu que prefere a barbárie à mínima concessão em relação a seus interesses. Confiar em um pacto com os capitalistas equivale ao suicídio marciano de que fala o livro para a grande maioria dos terráqueos.

Leia também: Um bolchevique em Marte

6 de abril de 2021

Um bolchevique em Marte

O título acima pertence a um dos capítulos do livro “Pós-capitalismo”, de Paul Mason. Nele, o autor cita uma famosa obra de Alexander Bogdanov, um dos fundadores do partido bolchevique. Trata-se do romance de ficção científica “Estrela vermelha”, de 1909. Nele, um organizador do partido bolchevique russo é levado para Marte e, ao chegar lá, explica Mason:

Depara-se com fábricas marcianas modernas e impressionantes, mas a coisa mais assombrosa é o que ele vê na sala de controle: um monitor em tempo real fornece informações instantâneas sobre carências de força de trabalho em cada fábrica do planeta, junto com uma relação dos setores onde há excesso de mão de obra. O objetivo é que os trabalhadores se dirijam voluntariamente para onde são necessários. Como não há carência de produtos, a demanda não é mensurada. Não há dinheiro, tampouco: “Cada um pega o que precisar, nas quantidades que desejar”, explica o guia marciano. Os trabalhadores, controlando grandes máquinas, mas sem tocar nelas, também fascinam nosso terráqueo...

No romance, continua Mason:

...o comunismo marciano é baseado na abundância: há mais do que o suficiente de tudo. A produção se realiza com base em computação instantânea e transparente da demanda. O consumo é livre e gratuito. Funciona porque há uma psicologia de massa de cooperação entre os trabalhadores, baseada em sua instrução elevada e no fato de que seu trabalho é primordialmente mental. Eles trafegam entre os gêneros masculino e feminino, mantêm-se calmos e abnegados em face da tensão e do perigo, levando uma vida emocional e cultural exuberante.

Na próxima pílula, mais sobre essa obra muito interessante.

Leia também: Inflação, deflação, ficção científica e marxismo

5 de abril de 2021

Guerra híbrida e anticomunismo reciclado

Em seu livro “O Brasil no espectro de uma guerra híbrida”, Piero Leirner diz que os militares vêm travando uma “guerra híbrida” contra a esquerda no Brasil, há cerca de meio século. Nela, diz ele, “não se desperdiça nada, a reciclagem é 100% garantida”.

O material que passa por esse reaproveitamento integral nada mais é que um anticomunismo secular, que jamais enfrentou qualquer ameaça séria de implantação de um regime comunista no País.

Foi sempre um artifício criado para justificar o combate mais feroz a toda tentativa popular de obter mais liberdades, conquistas sociais e igualdade econômica.

Leirner atribui ao Exército papel protagonista na reatualização dessa doutrina extremamente reacionária. Mas nas últimas décadas, surgiram aliados importantes com elaborações próprias. Por exemplo, Olavo de Carvalho e lideranças religiosas que a disseminaram entre as classes médias e as camadas populares.

A verdade, porém, é que, como ensinou Gramsci, o papel de toda ideologia dominante sempre foi exatamente este. Juntar os elementos díspares e contraditórios que estão espalhados no senso comum para combiná-los de forma a justificar uma ordem injusta, exploradora e massacrante.

Desse modo, engana-se quem acha que pode apelar aos pretensos valores democráticos de setores da classe dominante para ganhar aliados no combate a esse ódio ao povo disfarçado de anticomunismo.

Generais, Olavos e Malafaias não inventaram nada do que sai cuspido e sujo de suas bocas. Só matraqueiam aquilo que empresários, banqueiros, autoridades e outros escravocratas reciclados apenas sussurram em seus salões e palácios.

Pode até chamar de guerra híbrida, mas trata-se da velha guerra de classes em que só um lado está armado e matando.

Leia também: Em meio à guerra híbrida, o PT e suas serpentes

1 de abril de 2021

Em meio à guerra híbrida, o PT e suas serpentes

A responsabilidade principal pelo golpe foi dos que o deram e não dos que o sofreram. Os vencedores contaram, no entanto, com a ajuda dos perdedores. Como um Ulisses às avessas, a esquerda tinha criado suas próprias sereias a cujo canto sucumbiu. Não foi preciso um Zeus para as enlouquecer.

As palavras acima são do historiador José Murilo de Carvalho, sobre o Golpe de 1964. Foram citadas no livro “O Brasil no espectro de uma guerra híbrida”, de Piero Leirner. O autor as escolheu para destacar a contribuição involuntária do PT para a derrota de seu próprio governo concretizada pelo impeachment de 2016.

Leirner lembra que ao assumir a presidência, em 2015, Dilma iniciou uma reversão dos rumos que haviam orientado seu primeiro governo. Passou a acenar com medidas “pró-mercado e pró-grandes corporações”.

Mas ainda no primeiro mandato, Dilma assinou uma série de leis e ratificou políticas que prepararam o terreno para o golpe. Entre elas, a liberação das prisões preventivas; a Lei das Organizações Criminosas (que legalizou as delações premiadas) e, claro, a Lei Antiterrorismo.

Desse modo, diz ele, a presidenta acabou criando os meios que possibilitariam o desfecho da “equação” montada pelos militares, que desde a formação da Comissão da Verdade, em 2012, declaravam publicamente: “O PT é uma organização criminosa que visa desestabilizar as Forças Armadas e com isso causar a divisão e o caos no País”.

“Dilma, enfim, caiu em dissonância cognitiva e suas ações passaram a operar em função dos interesses do consórcio militar”, conclui Leirner.

Mas, dessa vez, parece que não foram sereias que a esquerda criou. Serpentes não cantam.

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