Doses maiores

30 de maio de 2018

A humanidade e suas tentações suicidas

O título do livro “The Patterning Instinct”, de Jeremy Lent, pode ser traduzido por “Instinto padronizador”. Segundo o autor, ao contrário de outros mamíferos, nós possuímos um “apetite insaciável” por encontrar significados no mundo à nossa volta.

Este “apetite” seria instintivo porque emergiu em nossa espécie antes do aprendizado cultural. Segundo pesquisas neurológicas recentes, a região cerebral chamada córtex pré-frontal (CPF) seria a responsável por essa característica tão especial.

Fome, desejos sexuais, dor, agressão, cuidados com a prole seriam exemplos de experiências cognitivas que partilhamos com muitos outros animais.

Já coisas como conversar, ler, planejar a aposentadoria ou fazer música envolveriam modos de pensamento mediados pelo CPF. Formariam nossa consciência conceitual, responsável pelas mediações necessárias à nossa capacidade de planejar, conceituar, simbolizar, criar regras e impor significados.

Lent cita o antropólogo Clifford Geertz, para quem somos um animal cujo “esforço para compreender a experiência, para dar forma e ordem, é evidentemente tão concreta e urgente quanto as mais importantes necessidades biológicas”. Uma definição muito próxima à dos marxistas.

E de modo semelhante a Marx, Lent não acredita que os padrões criados por esse “instinto” seriam resultado inevitável da natureza humana. Para ele, nossa situação atual também é motivada culturalmente e produto de estruturas de pensamento que poderiam ser reformuladas.

Mais especificamente, o autor está preocupado com o fato de que nossa espécie vem colocando em risco a própria sobrevivência. Mas se nega a aceitar isso como resultado necessário e imutável das imposições de nosso “instinto padronizador”. 

É como se ele dissesse “Outra humanidade é possível. Sem essa de instinto suicida!”

Voltaremos ao tema nas próximas pílulas.

Leia também: A origem da propriedade privada e dos ângulos retos

29 de maio de 2018

O que o socialismo marxista não é

Faz parte da lógica do marxismo que os indivíduos cedam ao partido, o partido ceda ao Estado, e o Estado, a um monstruoso ditador.

Esta é outra crítica que Terry Eagleton busca responder no livro “Marx estava certo”, lembrando que no terceiro volume de “O capital”:

Marx afirma que o Estado como corpo administrativo continuaria a existir. Era o Estado como instrumento da violência que Marx esperava ver pelas costas. Conforme diz no Manifesto comunista, o poder público sob o comunismo perderia seu caráter político

(...)

A ordem social corrente é inerentemente injusta, nesse ponto o Estado também é injusto. É precisamente isso que Marx quer ver chegar ao fim, não os teatros públicos ou os laboratórios da polícia.

(...)

O que Marx rejeitava era o mito sentimental do Estado como uma fonte de harmonia, pacificamente unindo diferentes grupos e classes.

Afinal, o próprio Estado deixou de crer nisso:

A polícia que surra trabalhadores grevistas ou manifestantes pacíficos nem se dá mais ao trabalho de fingir ser neutra. Já, policiais que evitam que canalhas racistas surrem uma jovem asiática até a morte não estão agindo como representantes do capitalismo.

(...)

A democracia precisa ser local, popular e disseminada por todas as instituições da sociedade civil. Se estender tanto à vida econômica quanto à vida política. Precisava significar genuíno autogoverno, não um governo entregue a uma elite política.

(...)

Homens e mulheres têm que reivindicar em suas vidas cotidianas os poderes que o Estado lhes confiscou. O socialismo é a completude da democracia, não sua negação.

Qualquer coisa diferente disso não é o socialismo marxista.

Leia também: O ateísmo espiritual de Marx

28 de maio de 2018

Liberar a luta dos caminhoneiros do bloqueio patronal

Talvez, o atual momento seja o que mais se assemelhe a Junho de 2013. O País quase paralisado e muita confusão política quanto ao que fazer. Em especial, à esquerda.

De fato, o movimento dos caminhoneiros começou com uma pauta conservadora. À exceção de uma redução nos impostos sobre o consumo dos mais pobres, praticamente qualquer outra redução tributária acaba beneficiando empresários e tirando ainda mais potenciais recursos dos serviços públicos.

Mas um movimento que envolve 2 milhões de trabalhadores e muitos bilhões de reais não pode simplesmente ser considerado produto de uma conspiração de direita. E foi isso que fizeram vários setores, principalmente petistas, antes de descobrirem que era exatamente esta postura que estava entregando de vez o movimento aos conservadores.

Como em Junho de 2013, a esquerda está confusa e luta para sair da paralisia ou do denuncismo mais alucinado. A vantagem é que já não há a defesa incondicional de um governo petista a cegar as análises.

Agora, porém, existe o risco de a contaminação eleitoral transformar o apoio aos caminhoneiros em oportunismo. Aquele que apoia tanto o movimento que tomou as estradas como alianças eleitorais com MDB e outras organizações políticas mafiosas.

Em Junho de 2013, como agora, é preciso disputar as pautas que mobilizam milhões. Não apenas entre nós, da esquerda, mas com uma direita que, cada vez mais, sabe usar as ruas.

A greve anunciada pelos petroleiros contra a política de preços da Petrobrás e pela recuperação de sua produção surge como uma bússola. Iniciativas como esta podem começar a liberar o movimento dos caminhoneiros do bloqueio patronal.

Leia também:
As ruas e o tamanho de nossa ignorância

25 de maio de 2018

Homero narrando futebol seria uma tragédia

Em 17/06/1954, Carlos Drummond de Andrade iniciava sua crônica no Correio da Manhã assim:

Quando Bauer, o de pés ligeiros, se apoderou da cobiçada esfera, logo o suspeitoso Naranjo lhe partiu ao encalço, mas já Brandãozinho, semelhante à chama, lhe cortou a avançada. A tarde de olhos radiosos se fez mais clara para contemplar aquele combate, enquanto os agudos gritos e imprecações em redor animavam os contendores. A uma investida de Cárdenas, o de fera catadura, o couro inquieto quase se foi depositar no arco de Castilho, que com torva face o repeliu. Eis que Djalma, de aladas plantas, rompe entre os adversários atônitos, e conduz sua presa até o solerte Julinho, que a transfere ao valoroso Didi, e este por sua vez a comunica ao belicoso Pinga. A essa altura, já o cansaço e o suor chegam aos joelhos dos combatentes, mas o Atrida enfurecido, como o leão que, fiado na sua força, colhe no rebanho a melhor ovelha, rompendo-lhe a cerviz e despedaçando-a com fortes dentes, para em seguida sorver-lhe o sangue e as entranhas — investe contra o desprevenido Naranjo e atira-o sobre a verdejante relva calcada por tantos pés celestes. Os velozes Torres, Lamadrid e Arellano quedam paralisados, tanto o pálido temor os domina; e é quando o divino Baltasar, a quem Zeus infundiu sua energia e destreza, arremete com a submissa pelota e vai plantá-la, como pomba mansa, entre os pés do siderado Carbajal…

Assim gostaria eu de ouvir a descrição do jogo entre brasileiros e mexicanos, e a de todos os jogos: à maneira de Homero...

Felizmente, ninguém atendeu-lhe o pedido.

24 de maio de 2018

Quando um neoliberal está certo sobre Marx e a China

Marcos Troyjo é um neoliberal de carteirinha. Em sua coluna na Folha, de 09/05/2018, ele comentou uma sessão especial do Parlamento Chinês. Era 5 de maio e os parlamentares homenageavam os 200 anos de nascimento de Karl Marx.

Para Troyjo, as honrarias dispensadas a Marx eram totalmente descabidas. Afinal, diz ele:

Muito do êxito chinês nessas últimas quatro décadas não se conseguiu com o distanciamento do núcleo das economias capitalistas centrais. Bem ao contrário, foi com o incremento do acesso chinês a esses mercados, mediante a outorga que EUA e Europa ofereceram a exportações chinesas como oriundas de nação mais favorecida, que o país logrou alcançar o presente ranking de maior nação comerciante do planeta. Além disso, por anos a fio os chineses mantiveram artificialmente achatados os salários —como fatia do PIB— de modo a acrescentar ainda mais atratividade a suas exportações.

Ainda, ao contrário que sugeria Marx, a China coibiu —e continua a coibir— a associação independente de trabalhadores por meio de sindicatos. E o sistema de gestão do Partido Comunista nada tem que ver com uma expressão “administrativa” da representação dos trabalhadores. Trata-se muito mais de estrutura assemelhada à burocracia meritocrática e funcional do mandarinato das dinastias imperiais.

E para demonstrar que “o perfil contemporâneo da China é ainda mais distante de preceitos marxistas”, o colunista lembra que “Xi Jinping é hoje o principal defensor da globalização econômica”. Globalização neoliberal, na verdade.

Triste ter que concordar com alguém de direita. Mas o que fazer quando os argumentos apresentados demonstram um conhecimento da obra de Marx maior que o de muitos de seus supostos seguidores?

Leia também:
A China e os delírios que a cercam        

23 de maio de 2018

Eleições: de volta ao Segundo Reinado?

Em 21/05/2018, William Nozaki publicou o artigo “O recado das urnas e o erro dos analistas políticos” no portal Brasil Debate.

Nele, o economista e sociólogo considera que, no atual processo eleitoral, a distinção entre liberais e conservadores seria mais útil que a oposição esquerda x direita.

Nozaki exemplifica:

Se organizarmos a leitura das pesquisas eleitorais pelos termos acima sugeridos, o programa demandado pela sociedade, perceberemos que a amplíssima maioria dos eleitores deseja um projeto de sociedade com mais liberdades e igualdades e menos privilégios e vantagens indevidas. Quando Guilherme Boulos (PSOL) é interrogado sobre o que é o socialismo, quando Manuela D’Ávila (PCdoB) é questionada sobre o que é o comunismo, quando Ciro Gomes (PDT) é perguntado sobre o que é seu desenvolvimentismo e quando Lula é questionado sobre o seu “trabalhismo” todas as respostas passam por um mesmo ponto: a igualdade de oportunidades. Uma agenda, a propósito, que também tem a adesão de uma parcela dos eventuais eleitores de Marina Silva (Rede) e de Joaquim Barbosa (PSB), por isso esses candidatos tem tido melhor desempenho nas pesquisas.

Portanto, diz o articulista, a sociedade tem uma demanda liberal “desconfortável para a esquerda e ininteligível para a direita irracional dos parvos Bolsonaros, MBLs e afins”.

Em última instância, diz ele, esse cenário demonstraria que “o lulismo venceu, ele é hegemônico na sociedade brasileira”.

É, faz sentido. Mas também poderíamos lembrar a frase: "Nada mais parecido com um conservador do que um liberal no poder”, muito popular durante o Segundo Reinado.

Ou seja, se o lulismo venceu, foi sob uma hegemonia que vem do tempo da escravidão.

Leia também: O lulismo algemado à institucionalidade

22 de maio de 2018

Gandhi e Lênin: uma comparação

O que haveria de comum entre Lênin e Gandhi? É isso que discute um dos capítulos do livro “A Não Violência – Uma história fora do mito”, de Domenico Losurdo.

Segundo o autor, tal como ocorre no caso de Gandhi, “a disponibilidade ao sacrifício e o desafio à morte desempenham um papel importante também no partido de Lênin”.

Mas nesse último, a disponibilidade ao sacrifício, “é estimulada pela convicção de agir em consonância com a corrente irresistível da história”. Já no partido de Gandhi, opera “a convicção de contar com a ajuda divina”.

Além disso, no sacrifício da própria vida exigida ao militante do partido bolchevique “não há a convicção de que a morte terrena é só uma passagem e falta o culto do martírio e do seu valor de salvação”.

Diferente do líder indiano, Lênin era contra a participação na Primeira Guerra. Segundo ele, os trabalhadores e povos em geral seriam utilizados como carne de canhão pelos imperialistas no conflito.

Por outro lado, os bolcheviques queriam transformar a guerra imperialista em conflito civil entre os trabalhadores e seus patrões. Foi sob essa orientação que os soldados russos voltaram suas armas contra os próprios comandantes e derrubaram a burguesia.

Mas para alcançar tal objetivo milhares de militantes bolcheviques se alistaram para ir às trincheiras fazer propaganda do socialismo. De novo, o engajamento quase suicida desempenhou papel fundamental.

Nada disso justifica a criação de “esquadrões suicidas” como resposta à violência estatal e fascista. Trata-se de organizar a autodefesa. Mas o nível de barbárie imposto pelas classes dominantes, muito frequentemente, transforma a mais simples resistência em martírio.

Leia também: A sangrenta não-violência de Gandhi

21 de maio de 2018

O ateísmo espiritual de Marx

“O marxismo é um materialismo filosófico que nega tudo que não seja átomos e por isso reduz os homens à condição ontológica de pedras”.

Esta é mais uma acusação que Terry Eagleton procura refutar no livro “Marx estava certo”.

Claro que Marx era ateu, diz o autor:

...mas não é preciso ser religioso para ser espiritual, e alguns dos grandes temas do judaísmo — a justiça, a emancipação, o reino da paz e da abundância, o dia da prestação de contas, a história como uma narrativa de libertação, a redenção não apenas do indivíduo, mas de todo um povo destituído — embasam sua obra de forma convenientemente secularizada. Ele também herdou a hostilidade judaica aos ídolos, aos fetiches e às ilusões escravizadoras.

Em outras passagens do livro, Eagleton afirma:

O materialismo marxista não é um conjunto de declarações sobre o cosmos, do tipo “Tudo é feito de átomos” ou “Deus não existe”, mas uma teoria sobre como funcionam os animais históricos.

(...)

O espiritual tem a ver com o outro mundo, mas não o outro mundo conforme o concebiam os clérigos, e sim outro mundo que os socialistas esperam construir no futuro, para substituir aquele que nitidamente esgotou seu prazo de validade. Qualquer um que não seja do outro mundo nesse sentido obviamente não deu uma boa olhada à sua volta.

(...)

Quem costuma ver as questões espirituais como um domínio arrogantemente apartado da vida cotidiana são os burgueses prósperos, pois necessitam de um lugar para se esconder do próprio materialismo crasso.

Não à toa, a sabedoria popular costuma condenar o materialismo como um pecaminoso apego às riquezas.

Leia também:

18 de maio de 2018

O combate a Bolsonaro e outros “esquisitões”

“Western, educated, industrialized, rich, and democratic societies”. Em português, “Sociedades ocidentais, escolarizadas, industrializadas, ricas e democráticas”. Em inglês, as palavras formam o acrônimo “Weird”, cuja tradução é “esquisito”, “estranho”.

Esse conceito costuma ser utilizado por estudiosos de vários ramos científicos devido a distorções que causa em muitas amostragens e levantamentos científicos. Brancos, escolarizados, ricos e “cidadãos” representam quanto da população mundial? Certamente uma minoria bem pequena.

No entanto, é este público que muitos experimentos científicos tratam como representantes da humanidade. E não só nas ciências humanas. Já houve casos de medicamentos testados e aprovados para esse perfil populacional apresentarem graves efeitos colaterais em pessoas latinas, negras, asiáticas etc.

Mas na política e na luta de classes, muitos de nós, e por muito tempo, também adotamos essa partícula da raça humana como universal. Tratamos largos extratos demográficos como “minorias”. Políticas que consideramos universais, na verdade, desprezam dimensões fundamentais da vida e, principalmente, do sofrimento humanos.

Exemplo óbvio é o desprezo pelas questões femininas, raciais, homoafetivas em nome de um combate que considera “soldados preparados para a luta” apenas os operários, homens, heterossexuais e que permanecem alheios à discriminação racial que sofrem.

É verdade que o problema oposto também ocorre. Lutas setoriais abandonam completamente o combate ao caráter totalizante do domínio de classe. Mas nunca foi fácil lidar de forma dialética com as relações entre o particular e o geral. E, no entanto, é fundamental partir dessa compreensão para atuar na luta de classes.

Do contrário, continuaremos sendo derrotados por esquisitos e esquisitões da direita. E não apenas por aquele que, hoje, é o maior deles entre nós.

Leia também: A derrota de Bolsonaro não seria necessariamente uma vitória

17 de maio de 2018

A Abolição transformou vidas em coisas descartáveis

O Brasil foi o último [país a abolir a escravidão] porque foi o que mais importou africanos - 46% de todos que foram trazidos coercitivamente para as Américas. Esse volume assombroso de africanos que chegou aqui acorrentado era considerado propriedade privada. Isso cria uma dinâmica em que a propriedade escrava era muito importante. Muita gente tinha escravos. Nas cidades havia gente remediada que tinha um ou dois escravos. Os estudos mostram que a propriedade escrava no Brasil era muito mais difundida que na Jamaica ou no Sul dos Estados Unidos.

Estas palavras são do historiador Luiz Felipe de Alencastro, em entrevista publicada pela BBC Brasil, em 13/05/2018. Ele também informa que a proposta de uma reforma agrária que assegurasse terra aos libertos pela Abolição permaneceu engavetada.

Ou seja, o fim da escravidão ocorreu não como libertação, mas como descarte de ferramentas obsoletas.

Segundo estudo do Instituto Igarapé divulgado em 26/04/2018, a América Latina abriga 8% da população mundial, mas concentra 33% dos homicídios globais. Das 50 cidades mais violentas, 43 estão localizadas na região. Entre as dez primeiras, três brasileiras: Marabá, São Luís do Maranhão e Ananindeua. A grande maioria das vítimas, pretas e pobres.

Do confronto das informações acima podemos deduzir que os enormes índices de violência no Brasil não ocorrem apenas porque somos uma das sociedades mais injustas do mundo, ainda que uma das mais ricas.

Na verdade, vivemos sob uma lógica social que trata uma enorme parte da população como coisa, há séculos. E quando coisas já não servem, são descartadas. É isso que continuamos fazendo com as vidas de negros e indígenas.

Leia também:
Abolição: a liberdade como castigo

16 de maio de 2018

A sangrenta não-violência de Gandhi

O verdadeiro objetivo da nossa luta é o de matar o monstro do preconceito racial no coração do governo e dos brancos do lugar (...). Há apenas uma maneira de matar o monstro e é oferecendo-nos em sacrifício. Não há vida senão através da morte. Só a morte pode levantar-nos. É o único meio eficaz de persuasão. É um selo que deixa uma marca permanente.

Essas palavras são de Mohandas Gandhi e estão no livro “A Não Violência – Uma história fora do mito”, de Domenico Losurdo.

Com base nelas, os militantes da luta pela libertação colonial da Índia recebiam uma ordem precisa ao enfrentar qualquer repressão policial: “Vocês não devem levantar uma mão sequer para proteger-se dos golpes”. De fato, eles sentavam-se no chão e apanhavam até perder a consciência, sem esboçar a menor resistência.

Havia casos em que mulheres erguiam suas crianças para fazer com que levassem pancadas na cabeça desferidas pelas forças policiais. Impassíveis, entregavam seus filhos em sacrifício pela causa.

Tais “sacrifícios” causavam enorme indignação moral em favor de suas vítimas. Por isso, Gandhi os utilizava sem o menor constrangimento: “Para conseguir a liberdade tenho que oferecer um milhão de vidas. Estou disposto a esse sacrifício sem o mínimo remorso”. A não-violência não é para covardes, dizia.

Mas, para Losurdo, a não-violência revela-se conspurcada “por uma violência que acaba atingindo, ou entregando aos golpes que se preveem ou que são desferidos, vítimas inocentes, inconscientes e indefesas.”

Ou seja, meios não violentos são incapazes de evitar a violência. Por isso, é preciso avançar no debate sobre a resistência popular à repressão estatal e fascista.

15 de maio de 2018

O marxismo não é uma Teoria de Tudo

O marxismo pretende explicar tudo. Este é mais um mito sobre a tradição inaugurada por Marx que Terry Eagleton combate em seu livro “Marx estava certo”.

Apesar de alguns de seus seguidores acreditarem nisso, diz o autor, o fato de que:

...o marxismo não ter nada de muito interessante a dizer sobre uísque ou sobre a natureza do inconsciente, sobre a fragrância de uma rosa ou a razão pela qual existe algo em vez de nada existir não o desacredita. Ele não pretendia ser uma filosofia absoluta.

É verdade:

...que se pode tropeçar nas conexões mais improváveis entre a luta de classes e a cultura. O amor sexual é relevante para a base material, já que quase sempre leva à produção daquelas potenciais novas fontes de mão de obra conhecidas como filhos.

Mas o fato de ser uma teoria da ação revolucionária não quer dizer que o marxismo pretenda explicar toda a realidade a partir da manutenção ou não da ordem dominante. Seria incorreto dizer, por exemplo, “que todas as atividades de escolas, jornais, igrejas e do Estado alicercem o sistema social atual”.

Quando denunciam os imigrantes, os jornais estão defendendo interesses dominantes. Quando noticiam acidentes de trânsito, provavelmente não, diz Eagleton. O mesmo vale para escolas, ao ensinar seus alunos a amarrar cadarços.

O marxismo não explica tudo, mas pretende dar combate a tudo o que torna a vida humana injusta e destrói nosso potencial para alcançar a liberdade e a igualdade universais.

Teoria de Tudo, mesmo, é a economia burguesa, para a qual todas as nossas relações se resumem à circulação de mercadorias.

14 de maio de 2018

O sargento Silvio e o general Geisel

Não me venham com besteiras de dizer que herói não existe. Passei metade do dia imaginando uma palavra menos desgastada para definir o gesto desse sargento Sílvio, que pulou no poço das ariranhas, para salvar o garoto de catorze anos, que estava sendo dilacerado pelos bichos.

O garoto está salvo. O sargento morreu e está sendo enterrado em sua terra.

Que nome devo dar a esse homem?

Escrevo com todas as letras: o sargento Silvio é um herói. Se não morreu na guerra, se não disparou nenhum tiro, se não foi enforcado, tanto melhor.

Podem me explicar que esse tipo de heroísmo é resultado de uma total inconsciência do perigo. Pois quero que se lixem as explicações. Para mim, o herói -como o santo- é aquele que vive sua vida até as últimas consequências.

O herói redime a humanidade à deriva.

Esse sargento Silvio podia estar vivo da silva com seus quatro filhos e sua mulher. Acabaria capitão, major.

Está morto.

Um belíssimo sargento morto.

E todavia.

Todavia eu digo, com todas as letras: prefiro esse sargento herói ao duque de Caxias.

O trecho acima é da crônica “Herói. Morto. Nós.”, publicada por Lourenço Diaféria na Folha de S. Paulo, em 1977. O texto levou seu autor à prisão, por “ofensa às Forças Armadas”.

Episódios como esse mostram como a covardia com que os governos da ditadura militar torturavam e executavam prisioneiros também os tornava valentes diante de pessoas armadas apenas com máquinas de escrever.

E, “todavia”, figuras como Geisel morreram em seus leitos tranquilamente, livres de qualquer vergonha. Mas só elas ficaram livres. Nós não.

Leia também: A história como tragédia, farsa e fake

10 de maio de 2018

A origem da propriedade privada e dos ângulos retos

Em 08/05/2018, a neurocientista Suzana Herculano-Houzel publicou artigo na Folha sobre recentes estudos neurológicos relacionados a linhas e ângulos retos. Segundo ela, essas formas tão típicas das grandes cidades deixam o cérebro tenso, ao contrário do que ocorre com os contornos arredondados da natureza.

A hipótese lembra um trecho do livro “The Patterning Instinct”, de Jeremy Lent, ainda sem tradução. Ele afirma que o surgimento da agricultura introduziu os ângulos retos na história humana.

Quadrados e retângulos teriam ganhado importância com a demarcação das linhas divisórias separando não apenas as terras cultivadas das não cultivadas, mas também as propriedades de cada agricultor.

Foi também o cultivo que tornou a riqueza um valor essencial, e aqueles privados dela passaram a ser vistos como inúteis. A hierarquia ganha uma “nova ênfase”.

Nas culturas dos caçadores-coletores, as relações familiares eram mais fluidas e não estruturadas. Na sociedade agrária, surge a herança. Com ela, a ideia de honra ligada à virgindade e à fidelidade sexual. Aparece o patriarcado e as mulheres começaram a ser consideradas bens ou mercadorias.

Pausa para uma observação que não está na obra de Lent. A redação original do Nono Mandamento era: “Não cobiçarás a mulher de teu próximo, nem sua casa, servos, boi, jumento, nem coisa alguma que a ele pertença”.

Boa parte do que Lent afirma já estava em “A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado”, que Engels publicou em 1884. É a velha história da propriedade privada chegando e estragando tudo. Não à toa, nos anos 1960, os conservadores eram chamados de “quadrados”.

9 de maio de 2018

Marx, economia e comunismo despudorado

Heitor dos Prazeres
O marxismo reduz tudo à economia: arte, religião, política, direito, guerra, moralidade... Esta é mais uma crítica à qual Terry Eagleton procura responder em seu livro “Marx estava certo”.

Em “A ideologia alemã”, Marx diz que o primeiro ato histórico é a produção dos meios para satisfazer nossas necessidades materiais. Mas se isso significasse que tudo é determinado pela economia, o próprio marxismo seria impossível, afirma Eagleton.

Por outro lado, de fato:

...Marx insiste no papel central desempenhado até hoje pelo fator econômico (...) na história. Isso, porém, é uma crença que nem de longe lhe é exclusiva. Cícero defendia a tese de que a finalidade do Estado era proteger a propriedade privada (...). Um bom número de pensadores do Iluminismo via a história como uma sucessão de modos de produção, acreditando, também, que isso pudesse explicar status, estilos de vida, desigualdades e relações sociais, tanto dentro da família quanto do governo. Adam Smith encarava cada estágio de desenvolvimento social na história como gerador de suas próprias formas de direito, propriedade e governo. Jean-Jacques Rousseau afirma em seu Discurso sobre a desigualdade que a propriedade traz em seu rastro a guerra, a exploração e o conflito de classes. Insistia, ainda, que o chamado contrato social é uma fraude perpetrada pelos ricos contra os pobres a fim de proteger seus privilégios.

E segundo um grande pensador:

...sem o trabalho, ficaríamos simplesmente à toa o dia todo, cedendo aos impulsos de nossa libido de forma despudorada.

Foi Freud que disse isso e, mesmo sem saber, estava falando de algo muito parecido com a sociedade comunista defendida por Marx.

Leia também:
Para Marx, igualdade é coisa de burguês

8 de maio de 2018

Limpando a barra de Gandhi

No livro “A Não Violência – Uma história fora do mito”, de Domenico Losurdo, ficamos sabendo que, no final do século 19, Gandhi afirmou, por exemplo, que não era possível confundir o povo indiano, de raça ariana, com negros ou zulus.

Mas em 1919, em meio às celebrações pela vitória na Primeira Guerra, o poder colonial promove o massacre na cidade de Amritsar, na Índia. Seus moradores haviam se rebelado contra o poder colonial sem pegar em armas. Mesmo assim, centenas foram mortos e os sobreviventes sofreram terrível humilhação racial. São todos obrigados a entrar e sair de casa andando de quatro.

Em uma carta de 23 de novembro de 1920, Gandhi responde:

Pode ser que o temperamento inglês não se adapte a um estado de perfeita igualdade com as raças negras e de cor. Nesse caso, os ingleses devem ser obrigados a se retirar da Índia.

E arremata: “Renuncio a fazer distinções; não reconheço superioridade alguma, nem mesmo aos indianos. Temos as mesmas virtudes e os mesmos vícios”.

Já em 1942, em plena Segunda Guerra ele questiona:

Os Aliados não têm nenhum direito de proclamar sua causa moralmente superior à dos nazistas, enquanto mantiverem prisioneira a parte mais justa (...) [da humanidade] e uma das mais antigas nações da terra.

Ele ainda oferece ajuda ao esforço bélico britânico, mas começa a radicalizar sua luta pela emancipação nacional. Sempre por meio da resistência não-violenta que levará dezenas de milhares de indianos a aguentarem toda e qualquer repressão sem esboçar qualquer reação. E isso incluía mães oferecendo a cabeça de suas crianças ao porrete das forças policiais.

Continua...

7 de maio de 2018

A mãe de Marx era uma santa. Já, ele...

Há uma série de textos circulando na internete descrevendo Marx com um vagabundo que vivia às custas de Engels, seu amigo empresário, de mesadas dos pais e do estafante trabalho doméstico de sua mulher.

Dificilmente, pode ser considerado vadiagem dedicar mais de 12 horas por dia a ler, fichar, escrever, revisar, traduzir e dominar meia dúzia de línguas. Mas, realmente, Marx causava muita inquietação entre os que lhe queriam bem.

É o caso de sua mãe, sempre preocupada com a vida desgovernada do filho. É o que revela uma carta dela ao nosso personagem.

Ao saber que Marx tinha adoecido no início de 1836, Henriette escreveu, dando alguns conselhos práticos:

Tenho certeza de que se você se comportar direito, querido Karl, chegará a idade bem avançada. Mas para tanto precisa evitar tudo que possa piorar as coisas, não deve se aquecer demais, nem beber muito café ou vinho, nem comer nada picante, muita pimenta ou outros temperos. Não deve fumar tabaco, nem ficar acordado até tarde da noite, e levante cedo. Tenha cuidado também para não apanhar resfriado e, meu caro Carl, não dance enquanto não estiver totalmente bem. Você vai achar ridículo, querido Carl, que eu fique aqui bancando a médica, mas não tem ideia de como os pais se afligem quando veem que os filhos não estão bem, e quantas horas de ansiedade isso já nos custou.

Como se sabe, o filho jamais seguiu esses conselhos, atormentando com preocupações a pobre genitora. Como muitas mães, a de Marx também era uma santa. Felizmente, o filho que ela criou, não.

Leia também:
A loja de brinquedos de Eleanor e Karl Marx

4 de maio de 2018

Para Marx, igualdade é coisa de burguês

Em seu livro “Marx Estava Certo”, Terry Eagleton procura refutar as “dez das críticas mais frequentes a Marx”. E uma delas é a de que “o socialismo nos tornaria, todos, iguais”.

É verdade que, para Marx, “a igualdade abstrata” era um avanço bem-vindo com relação às hierarquias do feudalismo, diz Eagleton. Mas ele achava que essa pretensão igualitária não tinham chance de tornar-se concreta para todos enquanto o capitalismo ainda existisse.

Segundo Eagleton, Marx achava que “igualdade genuína não significa tratar todos do mesmo jeito, mas atender às necessidades diferentes de cada um de forma igual”.

O autor também diz que Marx era contra um tipo de comunismo que envolve um nivelamento social geral e o denuncia nos “Manuscritos econômicos e filosóficos” como “uma negação abstrata de todo o mundo da cultura e da civilização”. Ele:

...encarava a igualdade como um valor burguês. Via nela o reflexo na esfera política do que chamava valor de troca, em que uma commodity tem o valor nivelado com o de outra. Uma commodity, comentou certa vez, é a “igualdade concretizada”.

É esta a igualdade que prevalece numa sociedade que despreza a “individualidade das coisas e das pessoas”, diz Eagleton. Foi o capitalismo, e não o socialismo, que padronizou os indivíduos.

Eagleton não aborda a manutenção e radicalização dessa padronização pelo “socialismo” stalinista. Mas é possível dizer que trata-se daquele “comunismo nivelador” condenado por Marx. Uma das piores consequências do covarde cerco imposto pelo imperialismo à Revolução Bolchevique.

O resultado foi uma caricatura que, mais do que exagerar a igualdade burguesa, nos revela ainda mais razões para combatê-la.

Leia também: No comunismo, ainda haveria inveja, sofrimento, mau gosto…

3 de maio de 2018

Mais alguns “podres” de Gandhi

Mais informações desagradáveis sobre Mohandas Gandhi, retiradas do livro “A Não Violência – Uma história fora do mito”, de Domenico Losurdo.

Durante os 20 anos que morou na África do Sul, Gandhi liderou a resistência dos indianos contra o racismo colonialista. Foi nessa luta que ele aprofundou sua concepção segundo a qual o inimigo a ser derrotado é o princípio da violência.

Mas em uma carta aberta a parlamentares do estado de Natal, em dezembro de 1894, Gandhi deixa claro qual é seu maior objetivo naquele momento.

Protestando contra a exclusão de direitos políticos para os indianos residentes na África do Sul, ele observa que, assim como os ingleses, também os indianos brotaram do “tronco chamado indo-ariano”. Portanto, não aceita que o indiano seja “rebaixado à posição do cafre selvagem”.

Sendo que “cafre” era um termo ofensivo utilizado pelos colonizadores britânicos para se referir aos negros africanos.

Segundo Losurdo, a partir desse ponto é possível compreender a atitude do líder indiano em relação à Primeira Guerra. A evidência de que os indianos pertenciam ao tronco indo-europeu e ariano, em última análise, à raça branca, seria “demonstrada nos campos de batalha”.

Gandhi escreve em uma carta ao vice-rei, após manifestar a disponibilidade do seu povo para produzir o máximo esforço bélico pelo Império Britânico:

Com esse comportamento, a Índia tornar-se-á o parceiro mais favorecido no Império e as distinções raciais [contra os indianos] serão coisas do passado.

Ou seja, diz o autor, “a condenação do princípio da violência diz respeito somente à relação entre o povo indiano e o Império Britânico”.

Felizmente, mais tarde, Gandhi rejeitaria essas ideias.

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